Não é novidade que os grandes jornais brasileiros atuam como porta-vozes do mercado financeiro. Mas nesta semana a coisa atingiu um nível de descaramento maior que o habitual.
Vimos uma enxurrada de colunas, reportagens e editoriais exaltando os rumos ultraliberais da economia argentina e amplificando o pessimismo do mercado financeiro com os rumos da economia brasileira. Parece até que foi combinado: todos em uníssono exaltando Milei e o tratando como um exemplo a ser seguido por Lula.
Não importa que o Brasil de Lula tenha atingido os menores níveis de pobreza e pobreza extrema desde 2012. Não importa que a Argentina de Milei tenha empurrado mais da metade da sua população para a pobreza depois das medidas de austeridade.
O que importa para o mercado financeiro e seus porta-vozes é alcançar o maldito equilíbrio fiscal. Se o custo para atingi-lo for um aumento vertiginoso da miséria, que assim seja. E não há qualquer pudor em se afirmar isso abertamente.
Vejamos o editorial do O Globo da última segunda-feira, intitulado “Milei dá lição de disciplina fiscal para o continente”. Os donos do jornal começam o texto exaltando a queda da inflação e depois admitem que as medidas de austeridade fizeram os índices de pobreza dispararem: “Apesar de o choque ter levado a pobreza ao pior nível em 20 anos, Milei conta com a paciência dos argentinos”.
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Perceba os requintes de crueldade embutidos na expressão “apesar de”. O aumento da pobreza é tratado como um problema menor, um efeito colateral quase irrelevante. Como bem dizia a economista Maria Conceição Tavares para seus alunos, “se você não se preocupa com a justiça social, com quem paga conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata”.
Ao contrário das previsões do mercado, o Brasil teve aumento do PIB, queda no desemprego e está com a inflação controlada.
O país vizinho atingiu o maior nível de pobreza das últimas 2 décadas, mas o que é isso perto do equilíbrio fiscal exibido nas planilhas de Excel dos nossos tecnocratas? Para os engravatados que vivem no ar condicionado, o aumento da miséria é um remédio amargo necessário para se ter saúde fiscal.
Em outro trecho, O Globo afirma que “Milei ainda continua a falar como ‘o louco’ da campanha eleitoral, mas pelo menos no aspecto fiscal tem mantido um nível de sanidade que faz falta no Brasil”. O jogo de palavras entre “o louco Milei” e a “sanidade que faz falta no Brasil” é, além de cafona, ridícula.
As loucuras de Milei são tratadas quase que de maneira folclórica, pitoresca, engraçadinha. Fica parecendo que ele é só um doidinho inofensivo que conversa com o espírito do seu cachorro morto. Não. Estamos falando de um extremista de direita que, por exemplo, nega que a ditadura militar argentina, a mais sanguinária da história do continente, tenha existido.
Estamos falando de um homem autoritário que ataca sistematicamente a imprensa e está destruindo o estado argentino. Como se vê, tolera-se tudo em nome do equilíbrio fiscal, inclusive um extremista direita dos mais lunáticos.
Nossos jornalistões estavam realmente empenhados na defesa do indefensável nesta semana. No Estadão, o jornalista José Fucs escreveu: “Na contramão de Lula, Milei equilibra as contas públicas com corte robusto nos gastos na Argentina, derruba a inflação, estabiliza o dólar e recebe elogios do FMI e de grandes investidores e CEOs pelo mundo afora”.
Há que se estar completamente descolado da realidade para acreditar que a economia argentina atual seja um exemplo para o governo Lula. Ao contrário das previsões do mercado, o Brasil teve aumento do PIB, queda no desemprego e está com a inflação controlada.
Não são números que foram conquistados em cima do lombo dos miseráveis. Pelo contrário, graças à ampliação dos programas sociais e ao aumento da oferta de trabalho, a pobreza diminuiu no país. 8,7 milhões de pessoas deixaram de viver abaixo da linha da pobreza.
Mas, para os nossos tecnocratas, o ultraliberalismo econômico de Milei é o caminho que deveríamos seguir: aplicar um severo ajuste fiscal e aceitar o inevitável aprofundamento da crise social. Segundo eles, o fato da Argentina ter atingido o maior nível de pobreza das últimas décadas é algo passageiro.
No fim das contas, a mão invisível do mercado resolverá esse problema como num passe de mágica — trata-se de um engodo clássico da cartilha neoliberal.
A Folha também deu destaque para o texto da sua colunista Deirdre Nansen McCloskey — uma economista expoente da Escola de Chicago que foi professora de Paulo Guedes. McCloskey é uma tecnocrata sincera, que já afirmou que a desigualdade social não é um problema que lhe incomoda.
Em sua coluna da última terça-feira, a americana exaltou as medidas de Milei, ignorando que ¼ dos argentinos estão passando fome. Ela também clamou pela volta de Bolsonaro: “Volte, Jair. E coloque novamente um liberal no comando da economia” — este trecho ganhou destaque na página principal do jornal.
Esta senhora sonha com a volta de um golpista acusado de tramar o assassinato do atual presidente da República, do seu vice e de um ministro do STF. A tecnocrata americana deseja a volta de um criminoso para o comando do Brasil e a Folha não vê problema algum nisso. O que é um golpe de estado perto do equilíbrio fiscal? É esse o nível da desfaçatez dos ultraliberais. Não se envergonham em desprezar a democracia brasileira.
Além das comparações ridículas entre Brasil e Argentina, outra notícia que foi bastante divulgada pela imprensa foi uma pesquisa de opinião feita com o mercado financeiro sobre o governo brasileiro.
A imprensa continua amplificando as novas previsões apocalípticas do mercado.
A Quaest entrevistou 105 agentes do mercado, entre gestores, economistas, analistas e tomadores de decisão. Para 90% deles, o governo Lula é ruim. É um clubinho que vive em uma realidade paralela, onde o aumento do emprego, da renda e a diminuição da pobreza são indicadores pouco importantes e não refletem uma economia que caminha para a direção correta.
O combate à pobreza e a defesa da democracia não são uma preocupação dessa gente. É importante lembrar que, todas as projeções negativas feitas para a economia antes do governo Lula, se mostraram grosseiramente erradas.
Mesmo assim, a imprensa brasileira, que é controlada por essa turma, continua amplificando as novas previsões apocalípticas do mercado. O lucro dos acionistas, mesmo que seja sobre o cadáver de miseráveis, é a única coisa que importa.
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