Em abril de 2019, o músico Evaldo dos Santos Rosa foi fuzilado com 80 tiros de fuzil pelo exército brasileiro na zona norte do Rio de Janeiro. Ele levava sua família para um chá de bebê quando foi confundido com um assaltante por militares, que decidiram disparar 257 tiros de fuzil contra o carro da família.
Além de Evaldo, Luciano Macedo, um catador de lixo que tentou socorrê-lo, também foi morto pelos disparos.
Na última quarta-feira, 18, o Superior Tribunal Militar, o STM, teve o descaramento de absolver os oito militares que assassinaram à luz do dia dois cidadãos brasileiros. Foram absolvidos pela morte de Evaldo e condenados a uma pena de três anos em regime aberto pela morte de Luciano Macedo.
Venceu a tese de que os militares agiram em legítima defesa. O relator do caso, o tenente-brigadeiro Carlos Augusto Oliveira, concordou com a defesa dos militares e afirmou que os soldados tentavam “conter uma ação criminosa, ainda que imaginária”.
Ou seja, o tribunal entendeu que os homens atiraram 257 vezes em uma espécie de legítima defesa imaginária. Um carro foi metralhado com uma família dentro, mas os militares de toga decidiram que os militares que atiraram são inocentes. As forças armadas executaram civis e tudo ficará por isso mesmo. É um tipo de sadismo que está incrustado historicamente nas forças armadas brasileiras.
À época dos assassinatos, o então super ministro da Justiça, Sergio Moro, tratou o caso como se fosse um acontecimento banal. “Lamentavelmente esses fatos podem acontecer”, minimizou o lavajatista.
O então presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, com sua desfaçatez habitual, que “o exército não matou ninguém”. Não é difícil imaginar o que teríamos pela frente caso Bolsonaro tivesse tido sucesso em sua tentativa de golpe militar. Os assassinatos de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seriam talvez o estopim de uma série de assassinatos de civis.
O desfecho do julgamento não chega a ser uma surpresa. O corporativismo militar sempre se sobrepôs ao compromisso das forças armadas com a democracia. Não há registro na história do STM de condenação de integrantes das forças armadas por crimes graves praticados contra civis, como bem destacou o advogado das famílias das vítimas após o julgamento.
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A viúva de Evaldo se sentiu atacada mais uma vez pelas forças armadas: “(Eles) agiram da mesma forma que os militares que atiraram contra o meu carro. Se sentem superiores, se sentem melhores, é lamentável. 257 tiros, pra eles, foi legítima defesa”.
Além de todos os privilégios garantidos pelo Estado, a casta dos militares conta também com o privilégio da impunidade. A democracia garante aos militares o direito de serem julgados por um tribunal militar quando cometem crimes contra civis. É um escárnio.
Mas, na justiça comum, militares começaram a ser presos por tentativa de golpe. Até aqui já temos oito presos e 27 indiciados. A prisão de Braga Netto na última semana é histórica. Nunca um general quatro estrelas — último posto da carreira nas forças armadas — havia sido preso.
Ainda assim, todos eles têm direito a uma cela especial antes da condenação definitiva. Braga Netto, por exemplo, que está preso, hoje irá dormir em um quarto com armário, ar-condicionado, televisão e banheiro exclusivo.
A prisão fica em uma unidade militar que já foi chefiada pelo general. A família e os advogados têm livre acesso ao local. Esses são alguns dos muitos privilégios que a democracia garante, ainda que provisoriamente, para milicos que tentaram subvertê-la.
O ministro da Defesa, José Múcio, sempre disposto a passar pano para as forças armadas, insiste na tese de que os crimes de militares são cometidos pelos CPFs e não pelo CNPJ. É como se a instituição fosse vítima da ação de algumas maçãs podres. Nada mais falso.
Nem parece que os oito CPFs que executaram Evaldo e Luciano acabaram de ser absolvidos pelo CNPJ. A história nos mostra que o crime está no DNA das forças armadas e o desejo por tutelar a democracia continua vivíssimo mesmo após a redemocratização.
O Tribunal de Nuremberg demonstrou com clareza que não bastava julgar os indivíduos, mas principalmente as instituições que os comandavam. A SS, a Gestapo e o Partido Nazista foram julgados, considerados culpados e dissolvidos.
As forças armadas precisam passar por algo parecido. Não bastará punir o CPF dos golpistas e absolver o CNPJ que continuará sendo uma incubadora de golpistas. Este é um problema que a democracia precisa resolver com urgência. Não é possível que as forças armadas continuem se sentindo livres para ameaçar a democracia de tempos em tempos ou metralhar civis sem motivo.
A impunidade que livrou da prisão os militares que assassinaram civis inocentes é o principal motor do golpismo. Ela está enraizada na cultura militar brasileira e nada mudará caso prevaleça a tese do ministro da Defesa.
A realidade é que o governo Lula, até aqui, tem sido uma mãe para a instituição. Este, sem dúvidas, não é um problema de fácil solução, mas o governo precisa parar de pisar em ovos e atuar politicamente por uma reformulação completa das forças armadas. O momento é propício, a conjuntura é favorável e o presidente tem habilidade política necessária. Esta é uma batalha difícil, mas inadiável.
Múcio sinalizou que quer deixar o cargo. Não dá para escolher outro ministro frouxo que queira poupar a instituição e penalizar indivíduos. A Justiça e a Polícia Federal têm feito a sua parte. Há uma mudança em curso.
Mas ainda falta um ministério da Defesa atuante, que esteja disposto a passar toda a instituição a limpo, sem fulanizar as responsabilidades. Com a saída de Múcio, Lula tem uma oportunidade de ouro para iniciar esse enfrentamento e terminar o governo com uma marca histórica.
É preciso interromper de uma vez por todas esse ciclo interminável de impunidade e conciliação com os militares.
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