Nos últimos dias, a rede ABC News chocou a mídia tradicional ao concordar em pagar 15 milhões de dólares (90 milhões de reais) a Donald Trump em um acordo judicial para encerrar um processo por difamação, movido pelo presidente eleito dos EUA contra a emissora de notícias e seu âncora George Stephanopoulos. Na segunda-feira, 16, Trump anunciou que pretende atacar outro veículo de imprensa, dessa vez um jornal local muito menor: o Des Moines Register, no estado de Iowa.
Trump diz que pretende processar o jornal diário, com uma equipe de mais ou menos 50 jornalistas, e a responsável por pesquisas eleitorais Ann Selzer. Ele atacou Selzer e o Register por publicaram uma pesquisa, vários dias antes das eleições, que mostrava a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, derrotando Trump em Iowa com uma margem de 3 pontos percentuais. Trump venceu em Iowa por 13 pontos, e desde então vem dizendo que o jornal teria publicado uma pesquisa “falsa”.
“Não estou fazendo isso porque quero”, disse Trump, durante uma entrevista coletiva”, ao anunciar sua intenção de entrar com o processo. “Estou fazendo isso porque sinto que é minha obrigação.”
Os ataques judiciais, como os processos por difamação, não são novidade para os veículos de imprensa. Mas as ações judiciais movidas por ricos e poderosos, no entanto, não são tão comuns quanto se poderia imaginar — porque muitas vezes não funcionam.
‘Quando eles fazem um acordo, não só estão aceitando ser alvo, estão transformando os veículos menores em alvos também.’
Graças aos precedentes judiciais altamente favoráveis aos jornalistas contra os poderosos, muitos veículos defendem sua cobertura, lutando contra o processo na justiça, mesmo em prejuízo das finanças da organização. Agora que a ABC News abriu mão de sua própria batalha judicial contra Trump, no entanto, especialistas em mídia e juristas temem que Trump e outros indivíduos poderosos se sintam encorajados a retaliar contra veículos menores e mais vulneráveis, essenciais para uma cobertura jornalística crítica.
“Quando eles fazem um acordo, não só estão aceitando ser alvo, estão transformando os veículos menores em alvos também, mas sem esse tipo de recurso”, diz Seth Stern, advogado e diretor de incidência na Fundação pela Liberdade de Imprensa. “A ABC faz um cheque de 15 milhões amanhã, e pode fazer outro daqui a seis meses, e vai ficar tudo bem. Outros não podem ser dar a esse luxo. Por isso, é lamentável que o recado tenha sido de que a imprensa pode ser intimidada.”
Ao contrário da ABC, publicações menores e jornalistas individuais nem sempre dispõem de equipes jurídicas internas. Mesmo que as alegações acabem sendo rejeitadas, ou que os jornais saiam vencedores na justiça, custas processuais e honorários advocatícios podem ser caros. Uma grande operação, como a ABC News, de propriedade da Disney, tem mais flexibilidade financeira para lutar contra esses processos. Apesar das quedas no faturamento de publicidade que atingiram as redes de jornalismo televisivo nos últimos anos, a ABC News ainda teve quase 150 milhões de dólares (900 milhões de reais) em faturamento publicitário em 2022, segundo o Centro de Pesquisas Pew. E os juristas consultados também consideram que a emissora tinha condições de vencer o processo.
O principal argumento de Trump no processo, ajuizado em março, era de que Stephanopoulos teria mencionado no ar que Trump havia sido “condenado por” estruprar a escritora E. Jean Carroll. Na verdade, Trump foi responsabilizado civilmente por agressão sexual. Em decorrência da Primeira Emenda à Constituição dos EUA, e de outras proteções às organizações de imprensa, a ABC tinha uma defesa forte.
O próprio Stern defendeu um jornal de Chicago contra uma acusação semelhante. Em 2014, um professor da Universidade Northwest, acusado de agressão sexual contra uma aluna, se sentiu ofendido com uma manchete de jornal que descrevia as acusações como “estupro”, e processou o jornal. Um juiz indeferiu a ação, considerando que as palavras “estupro” e “agressão sexual” são intercambiáveis, segundo o periódico jurídico Chicago Daily Law Bulletin.
Exatamente porque o caso ABC tinha tantas proteções a seu favor, a decisão de fazer um acordo deixou espaço para especulações de que a emissora e a Disney não estariam reconhecendo um erro jornalístico, mas simplesmente queriam “estar do lado certo de Trump antes do governo Trump”, segundo Adam Winkler, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
“Isso mostra que alguns meios de comunicação estão dispostos a fazer acordos em casos de difamação se acharem que isso é melhor para seus resultados financeiros”, diz Winkler.
As empresas costumam reagir nesses casos para proteger sua credibilidade e a capacidade de continuar fazendo jornalismo no futuro, segundo Winkler. O acordo da ABC incentiva outros a praticarem ataques judiciais semelhantes.
Ele explica: “tradicionalmente, as empresas não querem fazer acordo nesse tipo de caso, exatamente pelo receio de que isso encoraje outras pessoas a processá-las”.
Lista de Processos Judiciais de Trump
Trump tem sido notoriamente prolífico em seus processos contra jornalistas e veículos de imprensa de todos os matizes. Em outubro, Trump entrou com uma ação por publicidade enganosa contra a CBS News, alegando que a emissora teria manipulado um segmento do telejornal “60 Minutos” para favorecer Harris em seus comentários. A ação, ajuizada no estado do Texas, pede 10 bilhões de dólares de indenização.
Em outra ação, ajuizada em 2022, Trump acusou o Conselho Pulitzer de difamação por defender suas decisões de premiar os jornais New York Times e Washington Post por sua cobertura dos vínculos da campanha de Trump com a Rússia em 2016. O processo ainda está em aberto.
Durante seu mandato anterior, Trump também demonstrou disposição para atacar jornalistas de outras formas, usando inclusive o Departamento de Justiça para monitorá-los.
‘Esses jornais e meios de comunicação são alvos fáceis atualmente, porque todos sabem que estão em dificuldades.’
Para defensores da imprensa, como Stern, a preocupação com o ajuizamento de ações de difamação semelhantes vai muito além de Trump. Mesmo antes do acordo da ABC, ele já observava um aumento dos processos por difamação com o objetivo de silenciar críticas. Ele aponta para um ambiente cada vez mais hostil em relação aos veículos de comunicação, em que mais setores da população não se oporiam a que uma pessoa rica processasse um deles. E existe ainda o problema mais amplo da crise econômica da indústria jornalística.
Ele espera que um novo projeto de lei bipartidário apresentado recentemente no Congresso ofereça proteção contra algumas consequências, especificamente para publicações de imprensa e jornalistas.
“Esses jornais e meios de comunicação são alvos fáceis atualmente, porque todos sabem que estão em dificuldades”, diz Stern. “O setor jornalístico, especialmente o de notícias locais, está em situação financeira bastante preocupante. Anos atrás, os milionários poderiam dizer: ‘sim, eu tenho milhões, mas o jornal também tem, não quero ter que enfrentar isso’.”
“Hoje em dia”, continua Stern, “é um pouco diferente — eles estão fazendo outro cálculo. Eles pensam: ‘tenho muito mais dinheiro para gastar do que esse meio de comunicação em dificuldades, então vou bater neles e ver o que acontece’.”
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até o ano-novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.