Criador de um instituto privado que apoiou a ditadura militar no Brasil e dono de um conglomerado empresarial que monopolizou por décadas a produção de listas telefônicas no país, Gilbert Jacob Huber Junior desapareceu em 2004 após ter a prisão decretada por dívidas milionárias de seus negócios. A justiça nunca o encontrou desde então. Até boatos de sua morte circularam.
Mas, 20 anos depois de ter sido declarado foragido, o Intercept Brasil descobriu o paradeiro de Huber Junior. Ele não havia deixado o país nem morrido. Pelo contrário, viveu por duas décadas em uma chácara em Biritiba Mirim, no interior de São Paulo, até morrer, em 4 de agosto de 2024, aos 98 anos.
As dívidas de suas empresas, entretanto, que incluem o calote de passivos ligados a direitos trabalhistas, até hoje não foram quitadas. A editora Ebid Páginas Amarelas está hoje na 76ª posição entre as 500 maiores devedoras da Previdência, com R$ 386,5 milhões a pagar, segundo levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional de janeiro de 2024. Já a dívida com credores totalizava R$ 898 milhões em 2020, de acordo com o Sindicato dos Publicitários.
Herdeiro da Listas Telefônicas Brasileiras S.A., empresa fundada em 1947 por seu pai, o estadunidense G. J. Huber, Gilbert Jacob Huber Junior consolidou um conglomerado empresarial que incluía tecelagem, metalúrgica, seguradora, sistema de processamento de dados, fábrica de papel, gráfica e editoras — entre elas, a Páginas Amarelas, que dominou a produção de guias telefônicos no país durante décadas.
No entanto, seu legado foi além dos negócios. Huber Junior – que já havia abrasileirado o nome para “Gilberto” nesta época – fundou em novembro de 1961, três meses após a renúncia do presidente da República Jânio Quadros, uma organização de fachada democrática, mas de âmago antitrabalhista e conservador: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPÊS.
Centro de estudos patrocinado por empresários, banqueiros, intelectuais de direita, oficiais ligados à Escola Superior de Guerra e agências governamentais dos Estados Unidos, o IPÊS foi um dos principais núcleos conspiradores que desestabilizou a gestão Goulart e abriu portas para a ditadura.
A intensa propaganda anticomunista – que incluía panfletos, artigos na imprensa e livros e filmes de cunho doutrinador – e as passeatas “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade” promovidas pelo IPÊS foram cruciais para o golpe de 1964. Com a ditadura instalada, o instituto se tornou, por decreto presidencial, órgão de utilidade pública.
A partir disso, parte de suas diretrizes políticas, econômicas e ideológicas foi adotada pelo regime militar – e os mapeamentos sobre o comportamento social da população levantados pelo IPÊS deram origem ao banco de dados do Serviço Nacional de Informação, o temido SNI.
Enquanto Huber Junior participava de reuniões com o ditador Castello Branco, muitos ipesianos, como eram chamados os integrantes do instituto, conquistaram postos-chave em corporações e no governo militar, como o jurista Luís Antônio da Gama e Silva, reitor da Universidade de São Paulo, USP, que se tornou ministro da Justiça e autor do AI-5, e o economista Roberto Campos, avô do ex-presidente do Banco Central, que assumiu o Ministério do Planejamento.
Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, como ministro da Fazenda, criaram o Banco Central, antiga demanda do instituto, como um órgão responsável pela administração das políticas bancárias e de crédito e pelo controle do capital estrangeiro.
Outros dois colaboradores do instituto ainda chegariam à presidência do Brasil: Ernesto Geisel e João Figueiredo – cujo primo, João Batista Leopoldo Figueiredo, foi o primeiro presidente do IPÊS. Ambos os mandatários seriam apoiados pelo general Golbery do Couto e Silva, mentor do SNI, como ministro da Casa Civil.
Alguns membros financiaram a fundação da Operação Bandeirante, a Oban, e do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o famoso DOI-Codi, principal órgão de repressão da ditadura. Outros apoiaram grupos paramilitares no Brasil e no Chile, auxiliando no golpe que destituiu o presidente chileno Salvador Allende em 1973.
Os tentáculos do IPÊS também alcançariam o Chile por meio de associações entre o empresariado dos dois países, fato relatado pelo Washington Post em nota intitulada The Brazilian Connection. Em sua obra 1964, A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe, de 1981, René Dreifuss afirma que o empresário chileno Luiz Fuenzalida veio ao Brasil em 1970 e foi treinado na técnica do IPÊS, e que executivos de grandes corporações daqui deram apoio financeiro para a deposição de Allende.
A embaixada dos Estados Unidos dava apoio indireto ao IPÊS. Em 1962, o embaixador Lincoln Gordon pediu ao presidente John F. Kennedy, em conversas registradas em áudio, US$ 8 milhões para financiar candidatos nas eleições, e para o IPÊS, “uma organização que temos lá”. O instituto imprimia materiais da Aliança Para o Progresso, projeto político executado pelo governo dos EUA para integrar os países da América frente à ameaça soviética.
O IPÊS tinha um “irmão mais velho” na figura do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o IBAD, fundado em 1959 por Ivan Hasslocher. Ambos tinham objetivos e membros em comum. Em 1963, o governo instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI, para investigar se o IPÊS e o IBAD praticavam financiamento ilegal de campanhas políticas. O deputado Rubens Paiva foi vice-presidente desta CPI. Ligado à CIA, o IBAD foi extinto no fim do mesmo ano. Mais discreto, o IPÊS foi poupado.
Apesar de ser seu idealizador, Huber Junior nunca assumiu a presidência do IPÊS, preferindo atuar nos bastidores. Com o tempo, ele se afastou das atividades da instituição, apesar de ter se mantido ligado a ela até o seu fechamento. O IPÊS São Paulo encerrou as atividades em 1970, e a unidade do Rio do de Janeiro, em 1972.
Dívidas e foragido da Justiça
Mesmo com mais tempo para se dedicar aos negócios a partir da década de 1970, Huber Junior passou a ter problemas com o grupo empresarial e com as estatais de telefonia. No início dos anos 1980, quando perdeu a primazia da publicação de listas telefônicas ao rescindir contratos que mantinha com concessionárias de serviços telefônicos, ele iniciou a Ebid Editora Páginas Amarelas, voltada a anúncios de empresas e serviços.
“A empresa era um poderio na comunicação, mas só teve sucesso enquanto existiu o regime militar. Havia muitos militares trabalhando no grupo”, conta o ex-vereador em São Paulo, atual suplente na Câmara Municipal e ex-funcionário da empresa, Dalton Silvano, que entrou no grupo de Gilberto Huber em 1971, com 19 anos.
Entre as várias companhias do grupo empresarial de Huber, direitos trabalhistas eram frequentemente negligenciados e valores recolhidos do INSS não eram repassados ao Estado. Em 1984, por exemplo, o empresário decidiu que não pagaria aos empregados o 13º salário, afirma Silvano. Na época, ele também atuava no Sindicato dos Publicitários, que deflagrou greve que envolveu 2 mil funcionários do grupo de Huber Junior.
No final da década de 1990, a privatização do sistema de telecomunicações abriu espaço para a criação de listas telefônicas por qualquer agente privado, e a Páginas Amarelas perdeu ainda mais terreno no mercado. Nos anos seguintes, a popularização da internet foi a pá de cal sobre o setor de guias impressos.
Uma reportagem do jornal O Globo, de 2016, revelou que os funcionários demitidos da editora não recebiam seus direitos desde antes da falência. “Eles não depositavam o Fundo de Garantia e não pagavam 13º. Isso era uma cultura no Grupo Gilberto Huber, que vivia fechando suas empresas e abrindo outras sem pagar os direitos dos trabalhadores”, relatou um ex-funcionário na matéria.
Conforme Silvano, nem mesmo os salários eram pagos integralmente. “O proprietário inventou um nome bacana – ‘crédito pendente líquido’ – para uma apropriação indevida. Ele calculava o valor do salário bruto, descontava os tributos e, depois, descontava 20% ou 30%, que era o ‘crédito pendente líquido’. Ele não precisava tributar esse crédito, que era acumulado e pago na rescisão. Invariavelmente, não pagava ou queria parcelar”, afirma.
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Até hoje, de acordo com Silvano, o Sindicato dos Publicitários cuida dos interesses dos ex-empregados, que são credores da massa falida e receberam apenas 15% de todos os seus créditos trabalhistas. Segundo a administradora judicial, o valor total da dívida é de R$ 898,2 milhões.
A própria União é uma credora, já que a empresa não repassava ao INSS as taxas descontadas do salário do empregado. A dívida é, hoje, de R$ 386,5 milhões, o que a coloca na 76ª posição entre as 500 maiores devedoras da Previdência Social.
Em 2004, Huber Junior, que havia parcelado o valor devido diversas vezes, ofereceu esmeraldas como garantia de uma dívida de R$ 19 milhões. Mas, quando o juiz ordenou que as apresentasse, ele alegou que não era o dono das pedras. Acusado de depositário infiel, ele teve a prisão decretada por 90 dias e tornou-se foragido da Justiça em setembro daquele ano. Em 2007, foi decretada a falência do grupo.
“Havia muitos boatos sobre seu paradeiro, mas não sabíamos onde ele estava. Pelo o que se sabe, não existem mais recursos nem bens para quitar as dívidas”, pontua Dalton Silvano.
Em sua certidão de óbito, ao qual tivemos acesso, o depoente, um dos filhos de seu primeiro casamento, declarou não ter conhecimento se Huber deixou bens ou testamento.
Paradeiro desconhecido até a morte
Nos anos seguintes à falência, houve rumores de que Huber vivia incógnito no interior de São Paulo. A historiadora e pesquisadora acadêmica Elaine Bortone, especialista no instituto IPÊS e que mantinha contato com um parente do empresário, acreditava que ele estava vivo e escondido.
Pesquisas por razões sociais de suas firmas revelaram endereços de uma agropecuária chamada Santa Fé em seu nome e no de sua companheira e sócia, Tisuko Nakano. Mas, ao pesquisar no Google Maps, um endereço indicava um campo de futebol de várzea e outro uma estradinha no interior do Rio de Janeiro. Não havia, portanto, qualquer confirmação do paradeiro de Huber Junior.
Até que, no dia 4 de agosto de 2024, Bortone obteve a informação de que o empresário estava internado havia duas semanas em um hospital na capital de São Paulo. No final da tarde do mesmo dia, chegou a confirmação de que ele havia falecido, aos 98 anos.
Na madrugada daquele domingo para segunda-feira, 5 de agosto, a data de sua morte foi alterada para 4 de agosto de 2024 no verbete sobre sua trajetória na Wikipédia – a mudança foi feita por um usuário cuja identidade é desconhecida. Entretanto, horas depois, a data voltou a ser 25 de fevereiro de 2003, como constava antes, equivocadamente.
A reportagem tentou contato com familiares de Huber Junior nos meses seguintes à sua morte, mas não houve retorno.
Vida discreta em chácara
Apesar de notificação da Justiça do Trabalho em 2023 ainda indicar que Gilberto Huber se “encontra em local incerto e não sabido para tomar ciência do despacho proferido nos autos”, o Intercept conseguiu encontrar o local onde ele viveu nestes 20 anos como foragido.
O seu refúgio era Biritiba Mirim, cidade de 30 mil habitantes no interior de São Paulo. Mais precisamente, a Chácara Santa Fé, situada no início da Serra do Mar. A confirmação da localização da residência consta no atestado de óbito de Huber Junior.
Estivemos na região em novembro. Moradores, que preferiram não se identificar, contaram que a propriedade onde Huber Junior vivia era grande, mas foi dividida e vendida ao longo dos anos. Um ex-vizinho afirmou que ele possuía bens, incluindo “carrões”.
E foi lá que também encontramos Tisuko Nakano, a companheira de 40 anos de convívio com o empresário. Ela contou que o casal adquiriu a propriedade há 30 anos, mas passou a viver nela há duas décadas, após deixar um apartamento no bairro Jardins, em São Paulo. “A cidade estava muito agitada”, disse Nakano, que divide a chácara com 16 cães retirados das ruas. Ela e Huber Junior não tinham filhos.
Segundo Nakano, o empresário manteve até o fim da vida lucidez e ótima memória. Ele não mantinha muito contato com a família de seu primeiro casamento, afirmou ela, e quase não saía da chácara. Pesquisar assuntos diversos na internet madrugada adentro, como política e ecologia, era algo que fazia com frequência, além de cultivar orquídeas. “Ele gostava do Brasil. Fez tudo que gostava na vida e dizia que viveria até os 100 anos”, contou.
Sobre a vida pregressa do empresário, Nakano é reservada. “Eu entrei na empresa com cerca de 18, 19 anos, nos anos 1970, então, não sabia muita coisa sobre seu passado”, ressaltou. Mas ela mencionou que Huber Junior, que nasceu em São Paulo em 1925, filho de mãe brasileira e pai estadunidense, foi para os Estados Unidos com cinco anos de idade. Depois, serviu como soldado na Segunda Guerra Mundial. “‘Eu fui para a guerra para matar japoneses’, ele costumava me dizer”, relembrou.
Em 1947, segundo Nakano, Huber Junior retornou ao Brasil. Dez anos depois, assumiu o comando da Listas Telefônicas Brasileiras, a LTB. Sobre assuntos relacionados ao grupo empresarial e ao IPÊS, ela pouco falou. “Ele viajava ao Rio, mas não me dizia nada. Ele procurava me preservar, com medo que alguém, como um militar, pudesse nos procurar”, disse.
Nakano ainda afirmou que Huber chegou a ter cerca de 30 empresas. “Eu não era sócia, mas ele me colocava de sócia”, contou. Antes de deixarmos a residência, ela comentou que Huber Junior chegou a declarar que possuía documentos do IPÊS guardados em uma outra casa, mas sem dar mais detalhes. Indagada se gostaria de compartilhá-los em algum momento, permaneceu em silêncio.
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