Em 2024, a plataforma Fogo Cruzado registrou 2.530 episódios de disparos de armas de fogo na Região Metropolitana do Rio. Fora de contexto, esse número pode soar absurdo, mas trocas de tiros e disparos, infelizmente, fazem parte do cotidiano do Estado do Rio de Janeiro.
De volta para um terceiro mandato, Rodrigo Neves, do PDT, busca oferecer uma resposta a esse problema para os cidadãos de Niterói. No entanto, essa tentativa corre o risco de ser mais um tiro que sai pela culatra.
No dia 10 de janeiro, o prefeito anunciou a compra de sensores sonoros para detecção de tiros da empresa americana SoundThinking, anteriormente conhecida como ShotSpotter. Esses microfones, conectados a um algoritmo de identificação de ruídos, prometem detectar disparos de armas de fogo e até mesmo identificar o calibre utilizado.
O prefeito afirmou que o uso dessa tecnologia é pioneiro no Brasil e destacou que a iniciativa faz parte de sua promessa de campanha de investir em tecnologia para melhorar a segurança pública da cidade.
O que Rodrigo Neves não mencionou aos cidadãos, no entanto, é que essa tecnologia já foi testada no Brasil antes – com resultados duvidosos – e que sua eficácia em melhorar a segurança pública é amplamente questionada, tanto nacional quanto internacionalmente.
Canoas, no Rio Grande do Sul, foi a “primeira cidade fora dos EUA” a usar os sensores ainda em 2010. O bairro de Guajaviras foi escolhido para receber os 33 pontos de detecção de tiros. O investimento de R$ 2 milhões foi custeado pelo governo federal por meio do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci. Luiz Paulo Barreto, ministro da Justiça na época, defendeu a expansão da tecnologia para outras cidades.
No ano seguinte, foi a vez de o Rio de Janeiro testar o ShotSpotter. Sensores foram instalados no bairro da Tijuca, Vila Isabel, Andaraí e nos arredores do Maracanã. Na época, mais de 70 sensores sonoros seriam instalados em pontos como telhados de prédios altos e nos acessos aos trens e metrôs. Naquele momento, a cobertura da imprensa era quase que totalmente positiva ao uso dos microfones ShotSpotter e havia pouca crítica sobre a eficácia e o investimento de recursos públicos nesses dispositivos.
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Apesar do cenário favorável, os problemas dos sensores da ShotSpotter apareceram mais rápido do que os entusiastas previam, levando ao questionamento do seu uso. Tanto em Canoas quanto no Rio de Janeiro, os microfones foram desligados logo depois do término da Copa do Mundo, em 2014.
No caso de Canoas, a prefeitura, ao ser questionada, disse que os microfones produziam muitos erros e que frequentemente confundiam fogos de artifício com tiros.
No Rio de Janeiro, os mesmos problemas foram notados, levando ao descarte desses sensores em 2023. Segundo relatório produzido pela própria Polícia Militar, em 2019, sobre o período em que usaram o sistema ShotSpotter, a experiência não poderia ter sido pior:
Na última década, nos EUA, cidades como Atlanta, Charlotte, Nova Orleans e San Antonio decidiram descontinuar o uso do ShotSpotter. O movimento é consequência de um número robusto de investigações que, em linhas gerais, revelam que o ShotSpotter não teve sucesso na redução de disparos de armas de fogo, fez aumentar o tempo de resposta da polícia em alguns locais e não auxiliou na busca por evidências de crimes.
Além disso, o uso desses sensores está relacionado com um aumento do policiamento excessivo em áreas pobres e de maioria negra. São esses bairros os mais policiados e os que frequentemente são apontados como violentos, sendo classificados como áreas prioritárias para receberem os sensores.
Como a distribuição dos equipamentos não é uniforme, os alertas de tiros, verdadeiros ou falsos, acabam criando distorções nos bancos de dados de violência armada, o que se desdobra em mais policiamento e maior foco nesses lugares, levando a super-policiamento.
Em última instância, os alarmes dos sensores podem levar a um aumento da violência policial, uma vez que os agentes serão despachados para a região em alerta máximo, por conta do possível incidente com arma de fogo, e podem se utilizar de força excessiva. A tecnologia aqui resultaria em aprofundamento de uma conduta já bem conhecida de uso da força desproporcional em áreas mais negras das cidades.
Um dos casos de abandono da tecnologia mais emblemáticos é o de Chicago. Por lá, a inspetoria-geral investigou a eficácia do sistema e descobriu que em apenas 9% dos alertas da ShotSpotter havia evidência física de disparos de armas de fogo.
Em diversos momentos de 2024, os gestores da SoundThinking apresentaram a seus acionistas seus planos de expansão internacional, focando em países como Uruguai, África do Sul e Brasil.
A recente entrada da tecnologia na cidade de Niterói é um passo nessa direção, mas eles não esperam parar por aí. O vice-presidente internacional, Jon Magin, enviou e-mail para a Secretaria de Polícia Militar do Rio de Janeiro pedindo uma reunião no final de 2024. Até o momento, não há notícias sobre o interesse de nova aquisição dos sensores sonoros para uso da Polícia Militar.
Não há dúvidas de que o Brasil, e especificamente o Rio de Janeiro, possui um problema sério com violência armada. Esses tiroteios vitimam crianças, adolescentes, mulheres grávidas e tantas outras pessoas nos últimos anos que acabamos conhecendo apenas pelo noticiário.
Em respeito a todas as vítimas de tiroteios, bem como à toda a população, que espera ansiosa por mais segurança, os governantes deveriam pensar duas vezes antes de gastar dinheiro com tecnologias falhas, caras e que não dão respostas à altura dos nossos problemas.
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