Monica deve dar à luz em julho. Identificada nos autos do processo por um pseudônimo, ela é um alvo fácil para a iminente campanha de deportação do presidente dos EUA, Donald Trump. Enquanto aguarda a entrevista de seu pedido de asilo, Monica mora no estado da Carolina do Sul com o status de proteção temporária, que Trump tentou excluir em seu primeiro mandato e ameaçou diretamente durante a campanha, no ano passado.
Apesar dos riscos, Monica entrou com uma ação para tentar impedir a tentativa de Trump de usar um decreto para eliminar unilateralmente a cidadania por local de nascimento, ou jus soli, um conceito constitucional fundamental nos EUA. Ela se uniu a outras cinco outras mulheres — algumas, sem documentos, outras com pedidos de asilo em análise — segundo os autos de dois processos judiciais. As mulheres, todas grávidas, com tempo de gestação entre dois e sete meses, chegaram aos EUA do México, da Guatemala, da Venezuela, da Colômbia, e da Rússia.
Monica falou na quarta-feira sobre sua decisão de ingressar na ação, apesar dos riscos de se tornar alvo do governo Trump.
“Nossos filhos devem pertencer ao país onde nascerem”, disse Monica, por meio de um intérprete, durante uma entrevista coletiva. “A este país.”
Uma grande coligação de estados, organizações de direitos civis e organizações de defesa de imigrantes entraram com ações contra o decreto de Trump, em um total de cinco processos judiciais até agora, que devem chegar rapidamente à Suprema Corte dos EUA.
Mas ninguém chega perto de enfrentar a exposição dessas seis mulheres, muito menos do que está pessoalmente em jogo para elas: se o Judiciário permitir que o decreto se sustente, seus filhos não nascerão como cidadãos dos EUA, um direito concedido pela 14ª Emenda à Constituição há mais de um século. Em vez disso, assim que nascerem eles já se tornarão alvo de operações de imigração, possíveis deportados para um país onde nunca estiveram.
‘O Judiciário permitirá que o presidente altere o significado estabelecido da Constituição com alguns rabiscos de caneta preta?’
Olhando de forma ampla, as ações vão muito além da discussão sobre a possibilidade de obter um número da Seguridade Social, por mais crucial que isso seja. Trata-se de um teste muito mais fundamental: o Judiciário permitirá que o presidente altere o significado estabelecido da Constituição com alguns rabiscos de caneta preta?
“Ao ignorar o processo de aprovação de uma emenda constitucional, esse decreto tenta reescrever unilateralmente a 14ª Emenda”, diz Karla McKanders, diretora do Instituto Thurgood Marshal do Fundo de Defesa Jurídica, em um comunicado que anunciou uma das ações na segunda-feira à noite.
Na segunda-feira, Trump assinou um decreto com o objetivo de reduzir o “privilégio da cidadania dos Estados Unidos” previsto na 14ª Emenda.
Ratificada após a Guerra Civil, em rejeição à decisão da Suprema Corte no caso Dred Scott, a 14ª Emenda concede a cidadania a qualquer pessoa “nascida ou naturalizada nos Estados Unidos, e sujeita à jurisdição do país”.
“Quando ratificamos a 14ª Emenda, rejeitamos a ideia de que algumas pessoas nascidas aqui valem menos do que as outras aos olhos da lei”, escreve Thomas Wolf, advogado no Centro Brennan pela Justiça. “Não há outra forma de compreender aquelas palavras.”
Dados os termos amplos da 14ª Emenda, e sua interpretação pela Suprema Corte já desde 1898, os abutres da imigração pré-Trump presumiam, com razão, que remover o direito à cidadania por lugar de nascimento exigiria uma emenda constitucional, como a que foi proposta pelo senador Lindsey Graham, do Partido Republicano da Carolina do Sul, in 2010.
Depois que Trump atacou esse direito durante sua primeira campanha, muitos juristas ditos originalistas, que buscam interpretar o texto constitucional a partir das intenções originais, se manifestaram sobre o significado claro da 14ª Emenda.
“Qualquer pessoa nascida nos EUA, sob a bandeira dos EUA, é um cidadão, mesmo que seus pais não sejam cidadãos, e na verdade, mesmo que seus pais não estejam aqui legalmente”, escreveu em 2018 o professor de direito Steven Calabresi, um dos fundadores da Sociedade Federalista.
Mas o decreto de Trump tenta limitar a cidadania injetando um novo significado na expressão “sujeito à jurisdição” dos Estados Unidos no nascimento, como alguns teóricos minoritários do direito começaram a discutir nos últimos anos.
‘O direito à cidadania por lugar de nascimento está fundamentalmente inserido no tecido deste país e de suas leis.’
O decreto alega, em oposição a mais de um século de prática, que um bebê nascido nos EUA não é um cidadão, se sua mãe “estava ilegalmente presente nos Estados Unidos e seu pai não era um cidadão dos Estados Unidos ou um residente permanente legal” no momento do nascimento. Da mesma forma, dizem que o bebê não é um cidadão se sua mãe estava nos EUA com justificativa “lícita, mas temporária” — por exemplo, com um visto de estudante, trabalho, ou turismo — e o pai não era um cidadão dos EUA, nem residente permanente.
“Estamos confiantes de que o Judiciário verá o decreto como o abuso que é”, diz Rupa Bhattacharyya, diretora jurídica do Instituto de Defesa e Proteção Constitucional do Centro Jurídico da Universidade de Georgetown, que está representando as mulheres grávidas e duas organizações de direitos dos imigrantes.
“O direito à cidadania por lugar de nascimento está fundamentalmente inserido no tecido deste país e de suas leis”, diz Bhattacharyya. “Esse não é o tipo de coisa que pode ser feita da noite para o dia por um decreto”.
N. da E.: na quinta-feira (23), o juiz federal John Coughenour suspendeu a aplicação do decreto, na ação ajuizada pelos estados de Washington, Arizona, Oregon e Illinois.
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