A receita clássica de todo movimento de extrema direita implica o apontamento de um “inimigo interno”. Algum grupo social, de preferência já vulnerabilizado, como os imigrantes e refugiados, por exemplo, deverá ser sacrificado para o entretenimento e regozijo das massas alienadas.
No dia 6 de maio de 1933, o governo nazista promoveu sua primeira queima de livros, algo que se tornou muito comum e intenso nos anos seguintes. Queimar livros era uma forma de tentar apagar o conhecimento produzido sobre aquilo que o regime não gostaria que se espalhasse, se tornasse público e de fácil acesso. Uma tática fascista.
Naquela data, em 1933, o primeiro alvo foi o Institut für Sexualwissenschaft (Instituto de Pesquisa Sexual), onde centenas de pesquisas sobre sexualidade e gênero foram incendiadas, incluindo os primeiros manuais sobre transição de gênero do Ocidente.
Agora, em 2025, nos primeiros dias do governo Trump nos Estados Unidos, algo muito parecido começou a acontecer. Não, livros físicos não estão sendo queimados em praça pública (ainda). O que está acontecendo é algo relativamente mais simples: todos os sites ligados ao governo federal dos Estados Unidos da América estão sendo reformulados, com todas as referências à comunidade trans e ao termo “gênero” sendo categoricamente deletadas.
Na sua página voltada ao turismo, o governo Trump alterou a aba “LGBTQI+ Travelers” para “LGB Travelers”. Teoricamente, lésbicas, gays e bissexuais ainda podem existir, enquanto pessoas trans estão sendo institucionalmente apagadas.
Outra receita muito usada pela extrema direita é o “separar para destruir”. Aliar-se à parcela conservadora das lésbicas, gays e bissexuais, que, por uma visão colonizada de sexualidade, acabam rejeitando a convivência com as dissidências de gênero da comunidade queer, é importante para avançar, de forma mais rápida e eficiente, nos processos de eliminação do “inimigo interno”.
Cerca de 90% da comunidade trans brasileira precisa recorrer à prostituição como meio de subsistência.
Independentemente das justificativas inventadas, o fascismo sempre foi e sempre será sobre isso: eliminar conhecimentos, apagar subjetividades, destruir existências. Termos como “proteger a família”, “salvar as crianças” ou “defender as mulheres”, quando usados pela extrema direita, são totalmente esvaziados de significado. Tornam-se cortinas de fumaça para camuflar os reais projetos de extermínio das vidas LGBTI, começando pelas pessoas trans.
Já no CDC, que é o órgão estadunidense de controle de doenças e pesquisas na área da saúde, eles foram mais explícitos e não pouparam nem as letrinhas LGB, embora o maior foco de ataques ainda seja a comunidade transgênero.
A nova diretoria do órgão determinou que seus cientistas “corrijam” pesquisas que contenham os termos “LGBT”, “gênero”, “não binário”, “biologicamente macho”, “biologicamente fêmea”, etc. Voltamos para 1933, na Alemanha. Pesquisas científicas sendo destruídas (mesmo que não seja por ação do fogo) ou descontinuadas, por pressão política reacionária e anti-científica.
Apagar menções às pessoas trans em documentos médicos não fará com que essas pessoas deixem de existir. Mas tornará mais difícil a implementação e a execução de políticas públicas voltadas para essa comunidade. Dificultará, ainda mais, a vida dessas pessoas e seu acesso a direitos básicos.
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Logo nos primeiros dias de governo, Trump também determinou que os passaportes dos Estados Unidos não contemplassem mais as pessoas não binárias. Elas terão que se enquadrar em “homem” ou “mulher”.
Isso não diminuirá os preços dos alimentos e da gasolina, não tornará os planos de saúde mais acessíveis e não melhorará em nada a qualidade de vida do cidadão médio estadunidense.
Mas saciará o ódio e a frustração que existem em tantos desses cidadãos, que, diante de uma realidade de crescente violência e de preços cada vez mais altos, decidem descontar suas amarguras e insatisfações não nos bilionários que os exploram, mas nos grupos já vulnerabilizados por uma sociedade totalmente opressora e desigual.
Aqui no Brasil, a extrema direita – que é movida por um forte complexo de vira-lata e total falta de identidade própria – tem tentado copiar os discursos transfóbicos do Norte Global.
A direita brasileira tem se especializado em projetos de retirada de direitos.
Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, em 8 de março de 2023, usou o púlpito da Câmara dos Deputados para propagar a ideia, associada a correntes do feminismo radical, de que a existência das mulheres trans representaria uma ameaça às mulheres cis. O que, obviamente, não possui nenhum respaldo na realidade.
Estima-se que as pessoas trans no Brasil sejam apenas 2% da população. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra, cerca de 90% da comunidade trans brasileira precisa recorrer à prostituição como meio de subsistência, devido à falta de oportunidades no mercado formal de trabalho.
Na política, nos esportes, na academia, no jornalismo, na cultura e no entretenimento – em todos os espaços públicos –, o tímido avanço de mulheres trans ainda é ínfimo e não representa, sob nenhum aspecto, qualquer risco para as demais mulheres. Pelo contrário, dois importantes princípios feministas são justamente a solidariedade e a interseccionalidade.
Mais recentemente, em São Paulo, o vereador Lucas Pavanato, do PL, o mais votado do Brasil em 2024, propôs três projetos de lei para cercear direitos de pessoas trans. A direita brasileira tem se especializado em projetos de retirada de direitos.
Você já viu alguém do PL defendendo passe livre? Já viu algum parlamentar do PP ou do Republicanos em defesa do SUS ou de melhorias das universidades federais? Não, nunca. A lógica reacionária brasileira (em que direita e extrema direita caminham juntas, formando, muitas vezes, um bloco só) é sempre a lógica da retirada de direitos e da marginalização dos “inimigos internos”.
É fundamental que o campo democrático brasileiro tenha atenção ao que está acontecendo com a comunidade trans nos Estados Unidos. Nos próximos meses, provavelmente veremos uma escalada da perseguição e até da criminalização das vivências queer.
E isso terá reflexos no Brasil e no restante do mundo. Portanto, é muito importante que a sociedade brasileira – aquelas e aqueles que não aderiram ao fascismo bolsonarista – esteja pronta para defender e caminhar ao lado das pessoas trans.
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