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Parece mobilização popular, mas é só esquema de pirâmide

Como as teorias da conspiração se apropriam das crises reais no capitalismo do mundo-espelho.

Podia ser mobilização coletiva, mas é Amway.

Em seu imprescindível livro de 2023, Doppelgänger, Naomi Klein estabelece a noção de um “mundo-espelho” da direita e das crenças conspiratórias que são reflexos falsos e distorcidos de crises reais.

Por exemplo, a obsessão do Qanon com o “tráfico de crianças” é uma versão do mundo-espelho das crises reais de pobreza na infância, trabalho infantil, separação de famílias na fronteira e crianças mantidas em celas nos EUA. O movimento antivacinas é a versão do mundo-espelho da história real dos Sacklers e outros barões dos opioides estadunidenses, que faturam bilhões com a oxicodona e o fentanil, com a conivência das autoridades de vigilância sanitária e de um sistema judiciário leniente.

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O pânico xenofóbico dos “imigrantes que roubam empregos” é a versão do mundo-espelho do fato bem documentado de que as grandes empresas terceirizaram empregos para territórios estrangeiros onde os salários são mais baixos, enfraquecendo a força de trabalho dos EUA e esmagando os sindicatos. O papo das criptomoedas sobre “descentralização” é a versão do mundo-espelho da deterioração de todos os setores (incluindo a tecnologia) em monopólios e cartéis.

Klein faz questão de apontar que outros pensadores políticos já descreveram esse fenômeno. No século XIX, a esquerda chamava o antissemitismo de “socialismo dos idiotas”. O socialismo — a ideia de que os trabalhadores são explorados pelo capital — se refletindo no espelho distorcido como “os trabalhadores são explorados por banqueiros judeus internacionais”.

O mundo-espelho é um conceito fundamental, porque mostra como a extrema direita e as crenças conspiratórias são frequentemente os vizinhos incômodos de movimentos políticos sérios e reais. Em outras palavras, os malucos de chapéu de alumínio têm alguma razão.

‘Muitos conspiracionistas poderiam ter sido direcionados para movimentos produtivos, se tivessem entendido que seus problemas eram com os sistemas, não com indivíduos.’

Uma vez que você entende o mundo-espelho, começa a perceber que muitos conspiracionistas poderiam ter sido direcionados para movimentos produtivos, se tivessem entendido que seus problemas eram com os sistemas, não com indivíduos nefastos (é por isso que Trump determinou a eliminação de todas as pesquisas com financiamento federal que contenham a palavra “sistêmico”).

Isso também explica por que os “clichês” do conspiracionismo de direita às vezes lembram o pensamento radical de esquerda. Certa vez, tive um diálogo (totalmente delirante) com um alemão que se autodenominava “progressista”, e que me disse que a crítica à indústria financeira como parasita da verdadeira economia era “estruturalmente antissemita”.  É por esse tipo de absurdo que o “mundo-espelho” de Klein ganha importância: se você não entende o mundo invertido, pode acabar acreditando que “progressista” só significa “defender qualquer coisa que a direita odeie”.

Erik Baker, historiador, é autor de um novo livro, chamado Make Your Own Job: How the Entrepreneurial Work Ethic Exhausted America (Faça seu próprio emprego: como a ética de trabalho empreendedora exauriu a América), e tem algumas coisas interessantes a dizer sobre o mundo-espelho.

Em uma edição recente do sempre excelente podcast Know Your Enemy (Conheça Seu Inimigo), os apresentadores entrevistaram Baker sobre seu livro, e a conversa seguiu para o tema dos esquemas de pirâmide, ou “sistemas de marketing multinível”, entranhados em tantos movimentos religiosos de direita.

A ascensão da extrema direita não pode ser separada da história do MMN.

O marketing multinível (MMN) tem tudo: evangelho da prosperidade (“Deus recompensa a virtude com riqueza”), atomização (“você é um empreendedor e todas as pessoas da sua vida são clientes em potencial”), e anticomunismo fervoroso (“a solidariedade é um truque para deixar você mais pobre”).

A ascensão da extrema direita não pode ser separada da história do MMN. O MMN contemporâneo começa com a Amway, um golpe em forma de seita nos EUA, que foi fundado por Jay Van Andel e Richard DeVos (sogro de Betsy DeVos, que foi secretária de Educação no primeiro mandato de Trump).

Os membros de baixo escalão do culto da Amway viviam em absoluta pobreza, convencidos de que eram responsáveis por sua situação financeira porque não seguiam fielmente o método “infalível” da Amway para construir um negócio. A envolvente narrativa de Andrea Pitzer sobre sua infância em uma família Amway dão uma amostra do custo humano da seita.

A Amway — como os outros MMNs — não apenas extorque seus membros, convencidos a comprar montanhas de porcarias inúteis que precisam vender a seus familiares, ao mesmo tempo em que enriquece as pessoas no topo da pirâmide, que os convencem. A “positividade tóxica” dos cultos de marketing multinível obriga os membros a se afundarem em dívidas para pagarem por seminários e retiros, onde supostamente aprenderiam a solucionar os defeitos pessoais que os impedem de serem “empreendedores de sucesso”. O objetivo do culto não é simplesmente ficar rico vendendo coisas — eles ganham dinheiro vendendo falsas esperanças, literalmente, em salões de baile de hotéis Hilton e centros de convenções em todo o país, onde as pessoas pagam milhares de dólares para ouvir um golpista de MMN repreendê-las por serem “empresários ruins”.

A Amway destruiu tantas vidas, que durante o governo Nixon a Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC) resolveu abrir uma investigação. A investigação não estava indo bem para a Amway, que enfrentou uma crise existencial e foi salva pela renúncia de Nixon à presidência. Ora, o sucessor de Nixon, Gerald Ford, havia sido parlamentar do ex-fundador da Amway, Jay Van Andel, que também era o diretor da Câmara de Comércio dos EUA, o mais poderoso lobista empresarial do país.

Sob orientação de Ford, a FTC isentou a Amway de todas as irregularidades. Mas é ainda pior: a FTC de Ford na verdade criou uma regra que diferenciava os esquemas de pirâmide lícitos dos ilícitos, a partir das práticas comerciais destrutivas da Amway. Por essa nova regra, qualquer esquema de pirâmide que tivesse a mesma estrutura da Amway era presumidamente lícito. Todos os MMNs em operação nos EUA atualmente se baseiam no modelo da Amway, e aproveitam a regra da Amway na FTC para operar abertamente, sem medo das repercussões jurídicas.

‘Um MMN é um sistema para transformar de forma destrutiva capital social em capital monetário.’

Os MMNs se aproveitam dos pobres e desesperados: mulheres, pessoas racializadas, pessoas em pequenas cidades à beira da extinção e cidades decadentes do cinturão da ferrugem. Não só essas pessoas estão desesperadas: elas só sobrevivem por meio das redes de ajuda mútua. Mulheres pobres dependem de outras mulheres pobres para ajudarem a cuidar das crianças, pessoas marginalizadas dependem umas das outras para ajudar na manutenção de casa, fazer pequenos empréstimos, ceder um lugar para dormir, após alguém ser despejado, ou para estacionar o trailer onde está morando.

Em outras palavras: as pessoas que não têm capital monetário precisam confiar no capital social para sobreviver. É por isso que essas pessoas são alvos dos MMNs: um MMN é um sistema para transformar de forma destrutiva capital social em capital monetário. Os MMNs encorajam seus membros a garimparem suas relações sociais em busca de “indicações” e “clientes”, e para usar seu discurso de solidariedade social (“mulheres ajudam mulheres”) para convencer por persuasão, culpa, ou insistência as pessoas da sua rede de apoio mútuo a comprarem coisas de que não precisam e pelas quais não podem pagar.

Mas é pior ainda: o que os MMNs realmente vendem são os MMNs. O verdadeiro objetivo de uma chamada de vendas de MMN é convencer o “cliente” a se tornar um vendedor de MMN, que precisa pagar uma comissão por cada venda que fizer e é encorajado a comprar (de quem convenceu) estoques de que não precisam para cumprir as cotas. E claro, seu verdadeiro trabalho é recrutar outros vendedores para trabalhar para eles, e assim por diante.

Um MMN, então, não é apenas um patógeno: é um contágio. Quando alguém da sua rede de apoio social contrai a doença do MMN, eles não apenas rompem todos os laços com você e as pessoas de quem você depende – eles convencem mais pessoas do seu grupo social a fazer o mesmo.

O que me leva de volta ao mundo-espelho, e à conversa de Erik Baker com o podcast Know Your Enemy. Baker começa a falar sobre quem cresce na Amway:

Pessoas que, pela força do seu carisma e da sua personalidade, já lideram muitas outras na vida. Certo? Porque você consegue vender para essas pessoas, e você consegue recrutar essas pessoas. Do que estamos falando? Bom, eles estão efetivamente recrutando organizadores, pessoas que têm uma capacidade natural de promover a organização, e enviando essas pessoas ao mundo para organizar em prol do capitalismo cristão.

Ouvindo isso, tomei um susto: os recrutadores de MMN são a versão do mundo-espelho dos sindicalistas. Em suas memórias da infância na Amway, Andrea Pitzer conta como sua mãe abordava estranhos e tentava persuadi-los por meio de uma espécie de discussão estruturada:

Em todos os lugares aonde íamos — ao shopping, aos parques, ao supermercardo — ela perguntava às pessoas se um pouco mais de dinheiro todo mês seria bom para elas. “Eu adoraria marcar um momento para conversar com você sobre uma animadora oportunidade de negócios.” As palavras deveriam parecer suspeitas. Mas as pessoas quase sempre lhe davam seu número. Sua confiança e seu profissionalismo eram tranquilizadores, e seu entusiasmo era contagiante, mesmo, inicialmente, para mim. “O que você faria com 1 milhão de dólares”, ela perguntava, dançando comigo na cozinha.

Esse tipo de pessoa, com esse tipo de diálogo, é exatamente como os sindicalistas atuam. No livro A Collective Bargain, o clássico de Jane McAlevey sobre organização trabalhista, ela descreve como procurava os trabalhadores carismáticos e extrovertidos em um local de trabalho, as lideranças naturais, e os recrutava para ajudar a convencer os demais.

O treinamento dos organizadores envolve aprender a manter uma “conversa de organização estruturada”, que McAlevey descreveu em um artigo de 2019, na revista Jacobin:

“Se você tivesse uma varinha mágica e pudesse mudar três coisas na sua vida nos EUA [ou na sua cidade ou escola], o que você mudaria?” O resto da conversa precisa estar ancorado nas respostas da pessoa a essa pergunta.

O diálogo de MMN e o diálogo de sindicato têm estruturas espantosamente semelhantes, mas enquanto aquele tem o objetivo de mercantilizar e destruir a solidariedade, este tem por objetivo reforçar e mobilizar a solidariedade. Visto sob esse prisma, o MMN é o sindicato do mundo-espelho, que converte solidariedade em miséria e impotência, em vez de alegria e força.

O movimento MMN não apenas transforma homens como Rich DeVos e Jay Van Andel em bilionários. Os chefões dos MMNs são financiadores importantes da direita, um cheque em branco para a Fundação Heritage. Trump é o novo presidente MMN, um vigarista que cresceu no credo de Norman Vincent Peale, uma figura fundamental na dinâmica do culto MMN, e diz aos seus seguidores que a riqueza é um sinal de virtude. Trump conta vantagem sobre todas as pessoas que enganou, e como passar a perna nelas sem consequências “significa que eu sou inteligente“.

O corolário é que ser enganado significa que você é idiota. A responsabilidade é sempre do comprador, o lema da indústria das criptomoedas (“não é sua carteira, não são suas moedas”), que gastou centenas de milhões de dólares para eleger Trump.

A tecnologia tem seu próprio mundo-espelho. As pessoas que usaram a tecnologia para encontrar outros esquisitos e fazer coisas incríveis e sensacionais estão refletidas nas pessoas que usaram a tecnologia para encontrar outros esquisitos e propor fascismo, limpeza étnica e campos de concentração.

Ouvir a entrevista de Baker e ler as memórias de Pitzer na semana passada foi o que me fez juntar os pontos. Não só o MMN destrói os laços sociais, mas dentro de cada pessoa que é sugada para um MMN, há um organizador comunitário que poderia estar construindo os laços que o MMN destrói.

N. da E.: Alguns trechos do artigo foram suprimidos para melhor compreensão pelo público brasileiro.

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