Vista aérea do Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no estado do Amapá. A região, localizada no extremo norte da costa brasileira, tem umas da maiores variações de maré do país. (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)

APOIE O JORNALISMO INDEPENDENTE!

O Intercept revela os segredos dos mais poderosos do Brasil.

Você vai fazer sua parte para que nosso jornalismo independente não pare?

Garanta que esse trabalho continue. Faça uma doação de R$ 20 hoje!

QUERO DOAR

APOIE O JORNALISMO INDEPENDENTE!

O Intercept revela os segredos dos mais poderosos do Brasil.

Você vai fazer sua parte para que nosso jornalismo independente não pare?

Garanta que esse trabalho continue. Faça uma doação de R$ 20 hoje!

QUERO DOAR

Petróleo na Margem Equatorial? Exploração da ‘Foz do Amazonas’ some de sites do governo, da imprensa e até do Google

Levantamento do Intercept revela estratégia para suavizar percepção pública sobre riscos e impactos socioambientais da exploração petrolífera na região amazônica

Vista aérea do Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no estado do Amapá. A região, localizada no extremo norte da costa brasileira, tem umas da maiores variações de maré do país. (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)

A BATALHA PELO FUTURO DA AMAZÔNIA está sendo travada não apenas em gabinetes e tribunais, mas também na linguagem. Em discursos políticos, relatórios técnicos e manchetes de jornais, um novo termo tem dominado as conversas sobre a exploração de petróleo na costa norte do Brasil: “Margem Equatorial”.

Um levantamento do Intercept Brasil, realizado a partir de informações extraídas de sites governamentais, dados do Google Trends e reportagens de veículos de imprensa, expõe uma estratégia sutil — porém impactante — de suavizar o polêmico projeto para explorar petróleo em plena Amazônia.

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar

Os números indicam que o termo “Margem Equatorial” vem substituindo progressivamente “Foz do Amazonas” para definir o projeto de exploração petrolífera na Amazônia que está em análise pela Petrobras e pelo Ibama – e virou alvo de indignação do presidente Lula, que disse nesta semana que não quer mais “lenga lenga” do órgão ambiental.

Mas por que essa mudança de expressões? Para ambientalistas e especialistas, essa alteração não é mero detalhe semântico — ela tenta redefinir a percepção do público e pode influenciar decisões cruciais sobre um dos ecossistemas mais sensíveis do planeta.

Vista aérea do Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no estado do Amapá. A região, localizada no extremo norte da costa brasileira, tem umas da maiores variações de maré do país. (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)
Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no Amapá, que fica próximo a uma das áreas que a Petrobras quer perfurar (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)

Enquanto “Foz do Amazonas” remete à região específica onde o Rio Amazonas encontra o Atlântico — área rica em biodiversidade, recifes de corais únicos e comunidades tradicionais —, “Margem Equatorial” é um conceito geológico amplo, que abrange cinco bacias sedimentares desde o Amapá até o Rio Grande do Norte.

É verdade que a Petrobras tem interesse em explorar petróleo em múltiplas áreas da Margem Equatorial, não apenas na região da Foz do Amazonas. Mas ela é um dos principais alvos, especialmente o bloco FZA-M-59, próximo à Guiana, onde há estimativas de reservas significativas (até 10 bilhões de barris).

Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no Amapá, que fica próximo a uma das áreas que a Petrobras quer perfurar (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)
Parque Nacional do Cabo Orange durante a maré baixa, no Amapá, que fica próximo a uma das áreas que a Petrobras quer perfurar (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress)

A estratégia, segundo ambientalistas e líderes indígenas ouvidos pelo Intercept, busca diluir a associação imediata com a Amazônia, bioma sensível e símbolo global de conservação, e ampliar a percepção de que a exploração ocorreria em uma região “genérica”.

Foz do Amazonas ‘some’ do site de ministério

O Intercept realizou uma análise da linguagem utilizada por três órgãos governamentais diretamente envolvidos no projeto de exploração petrolífera na Amazônia. Para isso, foram consultados os sites oficiais do Ministério de Minas e Energia, do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, todos com o domínio oficial “.gov.br”.

A pesquisa foi conduzida utilizando as próprias ferramentas de busca disponíveis nos sites desses órgãos. O objetivo foi identificar quantas vezes os termos “Foz do Amazonas” e “Margem Equatorial” apareceram em todo o histórico de publicações indexadas pelos mecanismos de busca internos. Isso incluiu uma ampla variedade de conteúdos, como notícias institucionais, comunicados de imprensa, documentos oficiais, agendas, pareceres técnicos e qualquer outro material disponível nos portais governamentais.

No site do Ministério de Minas e Energia, a expressão “Foz do Amazonas” foi encontrada apenas duas vezes, enquanto “Margem Equatorial” apareceu em 23 ocasiões. Já no Ministério do Meio Ambiente, a tendência se inverte: “Foz do Amazonas” foi mencionado 12 vezes, contra seis registros de “Margem Equatorial”.

No Ibama, que tem sido alvo de pressões para acelerar processos de licenciamento, o termo que remete diretamente à Amazônia também predominou, sendo registrado 10 vezes, contra sete menções à “Margem Equatorial”. Procurados pelo Intercept, MMA e MME não se manifestaram sobre o assunto.

‘Margem Equatorial’ tem mais buscas no Google

Os números indicam uma estratégia de linguagem que também influencia as pesquisas feitas por cidadãos na internet, conforme dados da plataforma Google Trends. 

A ferramenta mede o interesse por determinados termos ao longo do tempo, atribuindo uma pontuação que vai de 0 a 100, onde 100 representa o pico de popularidade de um termo em um período específico. O índice não reflete o número absoluto de buscas, mas sim a proporção relativa dentro do total de pesquisas feitas na plataforma.

Antes de 2023, “Margem Equatorial” praticamente não aparecia nas buscas, registrando valores próximos a zero. Isso começou a mudar a partir de maio de 2023, quando o debate sobre a exploração petrolífera na Amazônia ganhou força na mídia e na política. 

Até esse período, o termo mais associado ao projeto era “Foz do Amazonas”, que dominava as pesquisas. No entanto, à medida que o governo e as empresas do setor passaram a adotar a expressão “Margem Equatorial”, o interesse por esse termo cresceu significativamente.

LEIA TAMBÉM:

A mudança ficou evidente nos meses seguintes. Em setembro de 2024, por exemplo, “Margem Equatorial” alcançou 21 pontos no índice do Google Trends, mais que o dobro dos 9 pontos registrados para “Foz do Amazonas”. Esse crescimento reflete a consolidação da nova terminologia, impulsionada por declarações oficiais, reportagens e materiais institucionais. Em outubro de 2024, o interesse por “Margem Equatorial” subiu ainda mais, atingindo 26 pontos, enquanto “Foz do Amazonas” manteve-se em patamares mais baixos e instáveis.

O fato de “Margem Equatorial” ter superado “Foz do Amazonas” nas buscas, no entanto, deve ser contextualizado, já que a vantagem numérica nas pesquisas pode refletir não apenas o caso específico da exploração na Amazônia, mas também o interesse em outras áreas da Margem Equatorial. Mesmo assim, os dados mostram uma inflexão clara no uso do termo a partir de 2023, coincidindo com a mudança na comunicação oficial sobre o projeto de exploração de petróleo na região.

‘Margem Equatorial’ ganha espaço na imprensa

Na imprensa, o movimento de adoção do termo “Margem Equatorial” foi ainda mais evidente. Para analisar essa tendência, realizamos uma pesquisa no acervo digital da Folha de S.Paulo, utilizando a ferramenta de busca disponível no site do jornal. A pesquisa foi feita filtrando os resultados ano a ano e utilizando aspas nos termos buscados, garantindo que apenas menções exatas às expressões fossem consideradas. O levantamento abrange o período a partir de fevereiro de 2022.

Os dados mostram que, entre fevereiro de 2022 e fevereiro de 2023, a expressão “Foz do Amazonas” apareceu em apenas sete ocasiões nas publicações da Folha, enquanto “Margem Equatorial” foi mencionada cinco vezes. No ano seguinte (fevereiro de 2023 a fevereiro de 2024), o termo associado à Amazônia teve um salto expressivo, sendo citado 203 vezes, contra 104 ocorrências da expressão mais abrangente. Já entre fevereiro de 2024 e fevereiro de 2025, essa relação mudou novamente: “Foz do Amazonas” foi mencionado 125 vezes, enquanto “Margem Equatorial” registrou 109 aparições.

A diferença reduzida na ocorrência dos dois termos no último ano sugere que “Margem Equatorial” vem ganhando cada vez mais força na cobertura jornalística, se consolidando como um termo preferencial, ainda que mais genérico. Isso reforça a mudança de linguagem promovida por órgãos governamentais e pelo setor petrolífero, tornando “Margem Equatorial” uma expressão cada vez mais presente no debate público sobre a exploração de petróleo na região.

‘Embelezar não muda nada’

“Não temos conhecimento desta tentativa de mudar os nomes, mas isso só reforça o interesse no avanço de um projeto predatório”, diz Toya Manchineri, coordenador-geral da Coiab, organização que representa 160 povos indígenas da Amazônia. “Trocar de nome, ‘embelezar’ a proposta, não muda o fato de que é um empreendimento com riscos irreversíveis para a Amazônia, essencial para barrar as mudanças climáticas”, completa.

A exploração de petróleo na região também viola a Convenção 169 da OIT, a agência da ONU para questões de trabalho, que determina que os os povos originários participem de uma “consulta prévia, livre e informada” em qualquer projeto que cause impacto em seu modo de vida e em seu território – o que não ocorreu neste caso.

Esse movimento não é inédito. Grandes corporações frequentemente ajustam a terminologia de seus projetos para reduzir resistências e tornar suas iniciativas mais palatáveis ao público e às autoridades.

Nos Estados Unidos, por exemplo, empresas de combustíveis fósseis passaram a falar em “gás natural” em vez de “gás fóssil” para suavizar a imagem da indústria. No Brasil, mineradoras adotam expressões como “barragens a montante aprimoradas” em vez de “barragens de rejeitos” para evitar a associação direta com tragédias como Mariana e Brumadinho.

No caso da exploração de petróleo na Amazônia, em uma entrevista concedida ao ICL Notícias, Jean Paul Prates, ex-presidente da Petrobras, admitiu que, durante sua gestão, recebeu sugestões para alterar a nomenclatura relacionada à exploração de petróleo na costa norte do Brasil. A proposta ia além de tirar a referência à Amazônia, mas também evitar “Margem Equatorial” – que, segundo críticos, induziria a população a acreditar que os blocos exploratórios estariam mais próximos da costa do que realmente estão.

“Eu vi gente propondo muda isso, muda aquilo. Muda o nome da Margem Equatorial porque parece que está perto do mar”, afirmou Prates. Depois, o ex-chefe da estatal admitiu que a mudança de nomes não basta. “São nomes consagrados pelos compêndios geológicos, pelo mapa geológico nacional, é difícil mudar. Você tem que enfrentar a realidade, e informar as pessoas”, declarou.

‘Lenga-lenga do Ibama?’

A exploração petrolífera na Amazônia é um imbróglio antigo, mas tem escalado rapidamente desde que, em maio de 2023, o Ibama negou à Petrobras a licença para pesquisar petróleo na Foz do Amazonas, alegando “inconsistências técnicas”, como falhas no Plano de Proteção à Fauna.

Agora, quase dois anos depois, em fevereiro de 2025, Lula esquentou ainda mais o conflito: “O Ibama é um órgão do governo parecendo que é um órgão contra o governo”, criticou, defendendo a pesquisa na região, que consiste na primeira fase de perfurações na área. A motivação é clara: estima-se que a área guarde 30 bilhões de barris de petróleo, o que elevaria o Brasil ao posto de 4º maior produtor global, atrás de EUA, Arábia Saudita e Rússia.

Rárisson Sampaio, porta-voz de Transição Energética do Greenpeace, alerta justamente para essa substituição do termo ‘perfuração’ por ‘pesquisa’. “O próprio Lula vem fazendo isso. Como se a perfuração em si já não trouxesse riscos e danos ambientais”, disse.

Mas os riscos persistem. Claudio Angelo, coordenador de política internacional do Observatório do Clima, lembra: “Nenhum marketing dilui a ligação entre petróleo e colapso climático”. Ele é enfático: “O Brasil precisa entender que a única chance de limitar o aquecimento a 2°C é parar a expansão de combustíveis fósseis. Como disse Gustavo Petro [presidente da Colômbia]: ninguém venderá petróleo se os clientes estiverem mortos”.

“Explorar petróleo aqui [na Amazônia] é inviável sob todos os pontos de vista: social, ambiental, econômico e climático”, resume Toya Manchineri.

A lista de perigos inclui vazamentos em corais, inchaço populacional, grilagem de terras indígenas e contaminação de rios. O Ibama sabe: em outubro de 2024, exigiu da Petrobras detalhes sobre veterinários em embarcações e helicópteros para emergências — exigências ainda não cumpridas. Mas isso não parece ser um problema para Lula.

Para Sampaio, do Greenpeace, “a estratégia semântica de se passar a usar termos como Margem Equatorial e até Amapá Águas Profundas é uma tentativa de desconectar a exploração do petróleo dos danos socioambientais, mudar a percepção pública e vencer – por pressão popular – o processo contra o Ibama, que é um órgão técnico”. 

A disputa entre “Margem Equatorial” e “Foz do Amazonas” não é só sobre palavras. É sobre quem paga o preço do progresso: as populações tradicionais, os corais desconhecidos e o clima do planeta — ou os acionistas da Petrobras.

JÁ ESTÁ ACONTECENDO

Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.

A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.

Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.

A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, dependemos do apoio de nossos leitores.

Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.

Apoie o Intercept Hoje

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar