Aviso de gatilho: este texto contém relatos de tortura
A POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS afirmou ao Intercept Brasil que afastou os policiais envolvidos na abordagem que resultou na morte de Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos, em 14 de novembro de 2024. Mas documentos da própria polícia contam outra história. Boletins internos atestam que alguns dos policiais – inclusive os responsáveis por imobilizar a jovem, que morreu estrangulada – seguiram em atividade após o ocorrido. Testemunhas corroboram.
No dia 27 de janeiro, o Intercept revelou que laudos contradiziam a versão dos policiais sobre a morte da jovem. Segundo alguns dos agentes, Thainara passou mal na viatura e, então, foi levada a uma unidade de saúde. Mas os exames mostraram que a jovem foi violentamente espancada, e que sua morte foi decorrente de asfixia provocada por estrangulamento.
A corporação, inicialmente, se recusou a responder os pedidos do Intercept sobre as providências tomadas. Recorremos, então, à Lei de Acesso à Informação para ter uma posição oficial sobre o caso. A resposta foi enviada um dia após a publicação da nossa primeira reportagem: a PM afirmou que agentes foram “imediatamente afastados” desde o ocorrido.
“Os policiais que tiveram contato direto com a vítima e figuram como suspeitos no Inquérito Policial Militar foram imediatamente afastados das atividades operacionais”, diz a posição oficial da Polícia Militar, assinada pelo major Davidson Lopes de Oliveira e pelo coronel Douglas Antônio da Silva, respectivamente, secretário e chefe de gabinete do Comando-Geral da PM. Segundo a polícia, o afastamento será mantido até que as circunstâncias sejam completamente esclarecidas e as medidas cabíveis sejam devidamente adotadas.
Mas, mais uma vez, o Intercept teve acesso a documentos que contradizem a versão policial. Boletins internos da Polícia Militar e relatos de vizinhos de Thainara mostram que 20 dos 21 policiais envolvidos continuam trabalhando normalmente – e até fazendo publi para a polícia em redes sociais da corporação. Apenas um agente está afastado, mas por licença médica e não por conta da investigação, segundo uma fonte que não será identificada por questões de segurança.
Os boletins da PM – onde os agentes registram as ações que participaram – mostram que policiais envolvidos no caso Thainara têm atuado em operações recentes, inclusive no fim de janeiro e no início de fevereiro.
O sargento Elias Antonio Dias e o soldado Uthant Vieira de Andrade Júnior, por exemplo, seguem na ativa, porém agora em Periquito e Alpercata, cidades próximas de Governador Valadares. Os dois estavam entre os responsáveis por imobilizar Thainara e colocá-la na viatura, de acordo com os depoimentos deles próprios e de seus colegas à polícia.
Além disso, os três policiais que estavam com Thainara no veículo onde ela foi colocada viva e saiu já sem vida também continuam atuando normalmente: o cabo Thiago Antunes Barbosa e os sargentos William Pomaroli e Robson Pierre de Assunção Costa.
Os boletins internos mostram, por exemplo, que o sargento Elias participou de uma apreensão de veículo irregular, em Periquito, no dia 28 de janeiro de 2025, enquanto o soldado Uthant esteve em uma abordagem policial envolvendo três pessoas em Alpercata, na tarde do dia 2 de fevereiro.
Já Thiago, William e Robson participaram, de acordo com os registros, de uma ocorrência na noite de 5 de janeiro deste ano em Governador Valadares, na qual um jovem foi baleado, em sua própria casa, por um motociclista.
Os documentos também indicam a atuação do tenente Belizário Lott, responsável pela operação que resultou na morte de Thainara – a mais recente em que ele é mencionado ocorreu no dia 4 de janeiro, envolvendo uma denúncia de ameaça e intimidação.
PM na ativa nas ruas e nas redes sociais
Alguns dos policiais envolvidos não apenas seguem atuando como também aparecem nas redes sociais. É o caso do sargento Elias, que protagoniza um vídeo institucional divulgado em 23 de janeiro no Instagram do 6º Batalhão da Polícia Militar de Minas, para divulgar um novo serviço aos moradores de Periquito, a 52 km de Governador Valadares.
O vídeo, postado também pela prefeitura de Periquito, promove um canal de comunicação direto, via WhatsApp, entre a PM e os moradores. A conta de Whatsapp divulgada no vídeo foi criada há um mês, ou seja, quando o sargento já deveria estar afastado de acordo com resposta oficial dada pela corporação.
Questionamos a Polícia Militar, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, a Secretaria de Comunicação e a prefeitura de Periquito sobre os boletins internos da PM e a presença do sargento Elias no vídeo institucional.
No entanto, os órgãos não responderam a nenhum dos mais de 20 contatos feitos pelo Intercept, por telefone e e-mail, solicitando respostas. A Polícia Civil afirmou que quem responderia seria a Polícia Militar, e vice-versa.
O jogo de empurra seguiu com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, que afirmou que a PM iria se pronunciar. No entanto, a PM informou que a responsável por responder seria a Secretaria de Comunicação do governo, que confirmou ter recebido nosso contato, mas nunca retornou.
Os moradores do condomínio onde vive a família de Thainara também refutam a versão oficial de que os policiais foram afastados. Os vizinhos relatam que viram alguns desses PMs circulando no local.
“Eles passam aqui direto. Parece que estão marcando presença de propósito, como se quisessem intimidar a gente. Depois que tudo aconteceu, ninguém se sente seguro mais”, conta um vizinho, – que pediu para não ser identificado. Outro morador reforça o clima de medo e desconfiança: “A gente vê eles na rua, fardados, armados, trabalhando normalmente.”
Contradições entre os PMs
Thainara, uma jovem negra e mãe de uma criança de quatro anos, morreu após ser levada pela polícia em uma operação realizada no prédio onde morava, no dia 14 de novembro de 2024. Ela foi detida após tentar defender de uma abordagem policial violenta o seu irmão de 15 anos, autista, deficiente intelectual e diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade.
Segundo laudo parcial da perícia feito pela Polícia Civil e obtido com exclusividade pelo Intercept, Thainara morreu por asfixia e tinha hematomas no crânio, hemorragia, além de escoriações em várias partes do corpo.
Policiais envolvidos na ação afirmaram que Thainara, ao ser colocada na viatura, teria apresentado fraqueza e ânsia de vômito, e, por isso, foi levada a um posto de saúde. No entanto, o laudo, imagens e depoimentos de testemunhas e de médicos obtidos pela reportagem revelam contradições no depoimento dos policiais e mostram que a jovem já chegou morta à Unidade de Pronto Atendimento.
“A paciente deu entrada na UPA já em óbito”, declarou o médico plantonista. Vizinhos que testemunharam a cena afirmaram, no depoimento à polícia, que ela foi colocada “desfalecida” na viatura.
‘Somente pegou pelos braços’
O sargento Elias, que os boletins internos e post no Instagram mostram que segue na ativa, aparece em vídeos gravados pelos vizinhos de Thainara no dia da operação empurrando a jovem contra a parede e a imobilizando.
Em seu próprio depoimento à Polícia Civil, o sargento afirma que fez “o ‘controle de contato’ em Thainara, afastando-a das agressões contra os colegas policiais”, mas nega que tenha utilizado força excessiva. “Somente ‘pegou Thainara pelos braços’ e afastou, não sendo necessário o uso de força física ou agressões contra a mesma”, diz o depoimento.
Ainda segundo o inquérito, Elias declarou ter informado “ao tenente [Belizário] Lott sobre as agressões que viu Thainara desferindo contra os policiais, sendo dada voz de prisão à mesma, a qual de prontidão colocou os braços para trás, a fim de ser algemada”.
“Thainara foi conduzida pelo declarante e pelo soldado Uthant até uma outra viatura […], sendo esta condução feita de forma padrão, em que segurou Thainara com uma das mãos em seus braços e a outra mão nas algemas”, afirmou Elias no inquérito.
Questionado se observou algo de anormal no estado de saúde de Thainara, declarou que a jovem “saiu caminhando e [que] não visualizou nada de anormal durante o trajeto até a viatura.” Elias disse ainda que ajudou Thainara a entrar no compartimento traseiro do veículo.
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Elias e Uthant foram os únicos a comparecer à Polícia Civil acompanhados de advogados – fato que chamou a atenção do Ministério Público, que recomendou que ambos sejam ouvidos novamente, já que eles não mencionaram em seus depoimentos “se foi utilizada alguma manobra ou golpe na região do pescoço da vítima – seja esganadura, mata-leão ou qualquer outro método de sufocamento”.
“É significativo notar a omissão, no depoimento de ambos, da utilização de algum tipo de golpe ou manobra que envolva esganadura ou asfixia, o que parece ter sido uma escolha deliberada”, afirmou o MP em uma solicitação enviada à Polícia Militar, na qual também pediu mais informações e investigações para esclarecer contradições.
“Parece fugir ao senso comum que uma pessoa recupere seu fôlego, chegue a proferir algumas palavras, fique de pé e caminhe, para depois, sem agressões posteriores (ao que tudo indica), vir a falecer por asfixia sem a interferência imediata e direta neste sentido”, afirmou o promotor Guilherme Heringer de Carvalho Rocha ao destacar a incongruência na versão dos agentes. O órgão ressalta ainda o fato de o envolvimento dos dois PMs na contenção de Thainara ter sido confirmado pelos outros policiais, além de o próprio Uthant ter dito que auxiliou Elias na contenção.
A Polícia Civil de Minas Gerais afirmou que segue investigando a morte de Thainara, tendo realizado 41 oitivas e solicitado novos laudos. No entanto, não informou quando o inquérito será concluído.
‘Ela tinha arrumado um emprego, estava feliz’
Para a família de Thainara, o fato de os policiais ainda estarem atuando reforça a sensação de impunidade e a falta de transparência no caso. “Me sinto muito triste quando eu vejo o vídeo da minha filha todo momento pedindo [aos policiais] para deixar ela ir embora, que ela tinha que trabalhar. Ela tinha acabado de arrumar um emprego. Tinha três dias mais ou menos que ela tinha arrumado o emprego, estava feliz”, desabafa Reginaldo Francisco, pai da jovem.
“A covardia foi tanta que, ao invés de deixar ela ir trabalhar, tiraram a sua vida. E entregaram na UPA já morta, toda machucada, espancada.”
Para um amigo de Thainara, que pediu para não ter o nome divulgado temendo represálias, o fato de os policiais envolvidos não terem sido afastados mostra que a morte da jovem não está sendo tratada com seriedade. “Thainara foi violentamente morta por policiais do estado de Minas Gerais, já comprovado em exames anexados no inquérito. Isso já dava direito ao comandante de afastar os policiais da rua. E não transferir de cidade, e alguns continuarem na rua trabalhando como se nada tivesse acontecido.”
Movimentos sociais e amigos da família têm organizado protestos para pressionar as autoridades por respostas. No domingo, 19 de janeiro, data em que Thainara completaria 19 anos, um ato tomou as ruas de Governador Valadares. A manifestação terminou na delegacia da Polícia Civil, onde o delegado Luciano Cunha, responsável pelo caso, prometeu finalizar as investigações em breve. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania divulgou nota, em novembro, lamentando o ocorrido e cobrando uma “apuração rigorosa e transparente” – e agora os familiares esperam um encontro com a ministra Macaé Evaristo para discutir o caso.
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