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ENTREVISTA: Punir apenas indivíduos é um risco – chegou a hora de reformar as Forças Armadas

Responsabilização de militares por tentativa de golpe é avanço histórico, mas não basta para afastar tutela militar sobre a política, diz Rodrigo Lentz, professor da UnB e conselheiro da Comissão de Anistia.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

As recentes denúncias contra militares de alta patente por envolvimento em uma tentativa de golpe de estado marcaram um ponto de inflexão na história das relações civis e militares no Brasil. Pela primeira vez desde a redemocratização, oficiais-generais estão sendo formalmente acusados e poderão enfrentar julgamentos que podem levar à perda de suas patentes e à prisão. 

No entanto, essa responsabilização, embora simbólica e necessária, é insuficiente para resolver o problema estrutural da intervenção militar na política, avalia Rodrigo Lentz, advogado, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília, a UnB, e pesquisador do Instituto Tricontinental. 

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Segundo ele, o governo Lula, diante do desafio de reconstruir a relação entre o poder civil e as Forças Armadas, tem adotado uma abordagem cautelosa, priorizando uma negociação interna que permite punir os militares mais alinhados à extrema direita enquanto preserva outros oficiais de alta patente que, mesmo omissos, não foram diretamente envolvidos na conspiração. 

Essa estratégia, diz Lentz, pode garantir alguma estabilidade, mas também perpetuar a cultura de impunidade dentro das instituições militares.

O professor e pesquisador também argumenta que a solução definitiva para afastar o risco de novos ensaios golpistas passa por reformas estruturais nas Forças Armadas. Ele é também conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e tem acompanhado de perto os desdobramentos do caso.

Para Lentz, a separação entre militares e a política é essencial. Ele defende que oficiais que se licenciam para disputar eleições devem ser automaticamente transferidos para a reserva, evitando que os quartéis se transformem em bases eleitorais. 

Outra proposta fundamental, em sua avaliação, é a revisão do artigo 142 da Constituição, que, na prática, ainda permite interpretações que legitimam uma suposta função moderadora das Forças Armadas sobre os demais poderes.

No entanto, Lentz alerta que a resistência dentro das próprias Forças e no Congresso Nacional é grande. Mesmo dentro do governo, há divisões sobre a melhor estratégia a ser adotada. O ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante do Exército, general Tomás Paiva, têm sinalizado apoio a reformas pontuais, enquanto setores mais conservadores, incluindo o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, general Amaro, trabalham para frear mudanças mais profundas.

Em entrevista ao Intercept Brasil, Lentz também analisa os desafios da responsabilização dos militares envolvidos no golpe fracassado, as limitações da estratégia atual do governo e as reformas institucionais necessárias para garantir que o Brasil não volte a viver sob a sombra da tutela militar.

Intercept Brasil – Como você enxerga a responsabilização dos militares pela tentativa de golpe de estado?

Rodrigo Lentz – É inegável que o que vem acontecendo, do andamento da responsabilização jurídica de militares de alta patente – aqui eu destaco sobretudo oficiais generais –, é uma inflexão histórica do ponto de vista das relações civis e militares no Brasil. Isso é muito. O fato de os inquéritos terem resultado em uma denúncia da Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal e os indicativos da busca pela celeridade do julgamento dessa denúncia, sobretudo o fatiamento delas, visando facilitar essa celeridade, indica que nós estamos seguindo esse caminho de uma inflexão histórica.

Isso tem um recado muito importante porque, na medida em que um indivíduo que está à frente de uma organização armada decide conspirar contra a República, contra a Constituição, contra o governo legitimamente eleito, contra as instituições, ele será responsabilizado.

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Isso é muito diferente do que vivemos na história do Brasil, sobretudo com o que aconteceu nas tentativas de golpe republicanas, mas especialmente de 1964, que é o grande motor identitário, ideológico desses militares e dos civis também que participaram como integrantes da alta cúpula da conspiração.

É, de fato, uma grande inflexão histórica e vai indicando que nós estamos virando uma página de impunidade e de irresponsabilidade de altas patentes das Forças Armadas quando se trata da sua postura golpista tradicional da instituição.

Você enxerga lacunas ou aspectos problemáticos na responsabilização como está sendo feita?

Eu faria dois poréns aqui. O primeiro seria que essa responsabilização está sendo muito bem negociada. Para se responsabilizar os militares mais militantes, identificados com a extrema direita, o judiciário e a própria política, mas sobretudo o judiciário, que é quem está liderando e sendo responsável por esse processo de responsabilização jurídica, decidiu poupar os militares titubeantes – os militares que ficaram em cima do muro e que ficaram de fora da denúncia.

Entre eles, estão o general Freire Gomes, que era o comandante do Exército, e o general Dutra, ex-comandante militar do Planalto. Nós podemos falar também do próprio comandante da Guarda Presidencial [Paulo Da Hora] – ou seja, aqueles militares que estavam diretamente envolvidos no pré, no pós e no 8 de Janeiro, e que foram poupados da denúncia.

Por que você acha que isso ocorreu?

Para se responsabilizar esses militares à extrema direita, está se poupando os que ficaram em cima do muro – e, com isso, também buscando fortalecer os militares que eu chamaria aqui de liberais do ponto de vista político, ideológico, mas nós poderíamos chamar eles como, os militares legalistas, aqueles que não aderiram e não chegaram nem a ficar em cima do muro, ou seja, nem chegaram a subir no muro. Os militares mais ligados ao profissionalismo militar e que, hoje, comandam as forças e que nós podemos indicar o comandante Tomás como o grande expoente desse grupo interno. 

A minha leitura é de um controle negociado, em que está se responsabilizando a extrema direita militante do alto oficialato, sobretudo os oficiais generais e os coronéis, e poupando esses militares que ficaram em cima do muro para fortalecer internamente os militares que ficaram de fora, os que se postaram numa condição mais profissional.

E aqui a segunda ponderação emerge: fazendo assim, o Judiciário de certa maneira está aderindo à estratégia do ministro da Defesa [do governo Lula, José Múcio] e dos próprios comandos das forças, que é a tese de separar o CPF do CNPJ. E aqui é uma maneira de preservar a tutela militar que busca afastar a ideologia do poder moderador e preservar a autonomia política da instituição em relação ao poder executivo, ao poder legislativo e à própria sociedade no geral.

Ou seja, praticamente não mudou nada dessa grande autonomia que permite a tutela na política de defesa: os militares continuam no Gabinete de Segurança Institucional, há uma continuidade das forças especiais, do currículo, do modelo de ensino, da militarização de uma série de áreas civis, a falta de transparência no orçamento, a falta de participação social na elaboração da política de defesa e da estratégia de defesa.

Os militares continuaram preservando todo aquele conjunto de autonomias que historicamente foi construído e que teve como uma das graves consequências esse golpismo introjetado, quase que naturalizado dentro das forças a partir da ideologia do poder moderador e da identidade com 1964.

‘O ninho da serpente segue vivo’.

Há um risco de que a sociedade se contente apenas com essa responsabilização individual e jurídica, que é muito importante, que tem um impacto muito grande – inclusive dentro da caserna – porém não vai resolver as causas dos nossos problemas, dessa natureza da intervenção na política e de uma postura de tutela militar em relação ao poder político civil.

Daí a importância de que os passos seguintes venham conjugados com uma agenda institucional de reforma institucional. Que reformas institucionais são essas? São justamente para atacar as causas, ou seja, para nós, como sociedade, como democracia, produzir garantias de não repetição do que ocorreu no governo Bolsonaro e no 8 de Janeiro. 

Que reformas são essas?

Na agenda legislativa, há uma disputa interna dentro do Exército e outra dentro do governo. Existem duas agendas legislativas. A primeira é a de fazer uma reforma em que os militares que se licenciam para se candidatarem a cargos eletivos não possam mais voltar para a força, que um militar que se candidate vá para a reserva automaticamente.

O ministro José Múcio, da Defesa, tem feito uma defesa enfática dentro do governo de que isso seja uma agenda de governo. Essa é uma agenda também do comandante do Exército, mas não é uma agenda do general Amaro, que está como ministro do GSI, e, por isso, o Jaques Wagner tem militado contra essa agenda dentro do Senado. 

Essa reforma é importantíssima e a sociedade precisa cobrar. Isso vai evitar que a política partidária vá para os quartéis, que os quartéis se transformem em currais eleitorais.

A segunda reforma é a reforma do artigo 142. O próprio Múcio também se disse aberto a conversar sobre isso para afastar a ideologia do poder moderador, que, mesmo não estando lá de forma explícita, acaba sendo de forma implícita evocado dentro da caserna e por esses militares da reserva e da ativa. 

Há uma proposta de emenda constitucional do deputado Carlos Zarattini, do PT de São Paulo, e essas seriam duas grandes medidas do ponto de vista legislativo, grandes agendas de reformas institucionais importantes. 

Quais atitudes poderiam ser tomadas pelo governo Lula?

Nós temos também, do ponto de vista da do poder executivo, duas agendas muito importantes. A primeira é produzir uma grande conferência sobre a política de defesa – ou seja, abrir para a academia, para a sociedade, para os partidos políticos, o debate e a participação da formulação da política de defesa nacional.

Isso é fundamental primeiro para desmilitarizar essa política e torná-la efetiva do ponto de vista da soberania do país, mas também para depois estabelecer as grandes diretrizes de eventuais reformas da organização militar. A partir da definição da política vai ser possível, então, promover mudanças na estratégia e, por sua vez, no instrumento de execução dessa estratégia que é a organização militar..

Inclusive, aqui há as forças especiais que continuam com a ideologia dos kids pretos, que é, por natureza, por constituição, voltada ao golpe de estado. O ninho da serpente segue vivo lá. 

A segunda agenda seria dar continuidade ampliando a implementação da carreira civil no Ministério da Defesa na política de defesa. Isso seria muito importante do ponto de vista político para participar dessa produção de garantias de não repetição.

Para além do julgamento de Bolsonaro e dos militares denunciados pelo golpe de estado, como o Judiciário poderia assumir um papel nessas reformas?

Do ponto de vista do judiciário, nós temos, para além dessa responsabilização jurídica individual dessa alta cúpula e de outros militares civis que participaram do plano golpista, que responsabilizar os crimes da ditadura.

Já há um debate maduro dentro do STF sobre possibilidades de fazer essa responsabilização. Nós temos um ambiente político favorecido pelas circunstâncias históricas e também pela proeminência do filme Ainda Estou Aqui. 

Isso é fundamental para atacar a identidade de 1964, que é a identidade do Exército Brasileiro, que é a identidade da Força Aérea Brasileira e da Marinha. Essa responsabilização vai virar uma página muito importante, que é fundamental para essa reformulação, essa refundação da instituição Forças Armadas. Fazendo isso, a sociedade e a república vão dar um grande passo para produzir essas garantias de não repetição.

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