Fabiana Moraes

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No estupro coletivo de um homem, o recado sobre o valor de uma mulher

Em tempos em que a ‘energia masculina’ está em alta, o estupro coletivo de um torcedor em Recife não é somente um ataque a um homem.

No estupro coletivo de um homem, o recado sobre o valor de uma mulher

  • Você viu?
  • Não, eu não quis ver.

*

  • Você viu?
  • Vi. Foi horrível. Horrível.

*

Em uma Recife assombrada pela barbárie, os diálogos que se sucederam ao primeiro dia de fevereiro deste ano começaram frequentemente assim. Mas, já no sábado, as cenas de grupos de torcedores do Sport e do Santa Cruz entrando em confronto nas ruas da cidade, quebrando lojas, aterrorizando pedestres e motoristas e, muito chocante, espancando e estuprando coletivamente um torcedor (o presidente da Torcida Jovem do Leão, João Victor da Silva), deixaram boa parte da população confinada dentro de casa.

Eu fiquei arrasada. Ver à luz do dia um espetáculo de brutalidade e desumanidade relacionado a algo que em teoria deveria ser o oposto – ir ao estádio com seus pares e torcer coletivamente e alegremente pelo seu time de futebol – foi a fotografia de um passado que nunca deixou de ser presente. Em 2009, o Brasil alcançou o primeiro lugar mundial no ranking de mortes confirmadas de torcedores devido a confrontos entre gangues e vândalos infiltrados em torcidas organizadas, conforme revela esta pesquisa.

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Naquele mesmo sábado à noite, postei no Instagram uma notícia a respeito. Também escrevi: “tem tanta coisa nesse ato bárbaro e eu não consigo vocalizar nenhuma”. Estava, percebo agora, tentando compartilhar e elaborar meu terror, pois não o aguentei sozinha. Uma pessoa havia sido empalada no meio de uma avenida movimentada, hora do almoço, tudo filmado e extremamente compartilhado nas redes sociais.

Nos Stories, algumas pessoas trocaram seus próprios assombros comigo: “Eu vomitei. Isso ultrapassa a barbárie”, disse uma colega. “A raiva masculina é assustadora”, comentou um homem bastante jovem.

Mas uma boa parte das mensagens enviadas chamava atenção para um fato: será que a visibilidade nacional daquela crueldade não estaria no fato de a maior vítima ser um homem, uma vez que milhares de mulheres são estupradas todos os dias? “É como se as pessoas pensassem ‘peraí! agora foi demais!’”, escreveu uma moça sagaz com quem interajo frequentemente.  “Meninas são estupradas todos os dias, mas não geram esse tipo de comoção”, me disse um rapaz que eu ainda não conhecia, mas que interagiu comigo nas redes sociais.

Não resta dúvida que as mulheres –- ou melhor, as meninas –- são as pessoas mais violadas sexualmente no país. A maioria das vítimas de estupro é do sexo feminino (88,2%), negra (52,2%) e tem no máximo 13 anos (61,6%). Jovens de até 17 anos representam 77,6% dos casos. Entre os meninos, a maior incidência de estupros ocorre entre 4 e 6 anos, diminuindo com a idade. Quanto aos agressores, 84,7% são familiares ou conhecidos, e os crimes ocorrem principalmente nas residências das vítimas (61,7%). O perfil das vítimas e dos agressores (majoritariamente homens) se mantém semelhante ao de anos anteriores. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 

Como mostram historicamente as pesquisas, homens adultos como João Victor são os menos vitimizados por estupros no Brasil. Mas é importante dizer que, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (2022), a violência sexual contra homens é subnotificada no país. Números indicam que 1,8 milhão de adultos e meninos já sofreram abusos sexuais em algum momento da vida.  

A brutalidade vista nas ruas recifenses foi uma forma de feminilizar o presidente da torcida organizada.

Só que devemos prestar atenção a um fato: a tortura realizada contra o líder da torcida organizada não se reduz ao ato bárbaro em si. Ela também significa o espetáculo da emasculação em praça pública, a exposição do que é valorizado como virilidade – e, principalmente, o que não é. Penetrar o homem de maneira violenta e sem mútuo consenso, é algo que se relaciona, figurativamente, a uma castração física.  É uma tentativa brutal de diminuir o poder e/ou a autoestima masculina hegemônica. Nessa lógica, o cara que tem o ânus violado se torna “menos homem”.

Resumindo: a emasculação daquele homem significa também aproximá-lo simbolicamente de “ser uma mulher”. Torná-lo alguém que é visto socialmente como fraco, sem poder, risível e, claro, passível de ser sexualmente violado.

É preciso dizer que essa emasculação não reside apenas na violência física: no artigo Nós Matamos o Cão-Tinhoso: a emasculação da África e a crise do patriarca negro, o pesquisador Mark Sabine analisa a desvirilização do homem negro pela ocupação colonial portuguesa em Moçambique (o artigo é baseado no clássico livro de Luís Bernardo Honwana).

Na emasculação colonial, travou-se uma disputa pelo domínio masculino, na qual a “civilização portuguesa” buscava afirmar sua supremacia. Para manter-se no poder, impôs a eliminação do homem negro, recorrendo principalmente à violência pública e à humilhação através de castigos — a mesma lógica que presenciamos em Recife em 1º de fevereiro de 2025. 

Sabine destaca que a masculinidade colonial não apenas apagou o homem negro, mas também marginalizou valores atribuídos à masculinidade indígena, reforçando um modelo excludente de poder. Nele, ser viril significava se afastar de todo e qualquer signo associado ao visto como “feminino”.

É importante observar tais questões no episódio recifense para assim não entendê-lo somente como um ataque a um homem, mas ainda como um reiterado recado para as mulheres, sejam cisgêneras ou transgêneras. Esse recado também vale para homens transexuais, gays, pessoas bissexuais etc. 

Autora do livro Como morre uma mulher? (Editora Universitária/UFPE), a socióloga Ana Paula Portella acredita que, na percepção dos agressores, a brutalidade vista nas ruas recifenses foi uma forma de feminilizar o presidente da torcida organizada. “É um ato de humilhação e diferenciação determinando dois lados de um campo: os que agridem e podem matar e os que são submetidos. Imagino que os agressores atuam de forma consciente para colocar os agredidos no lugar de mulheres e gays, entendidos como o polo ‘fraco’ da sociedade”.  Em seu Instagram, a publicitária e estudante de história Caroline Sarda também escreveu a respeito.


Quando vários machos se juntam para estuprar outro macho, eles também estão se dirigindo a nós. Ao que nós significamos. Ao quanto, enfim, nós mulheres somos vistas como fracas e  estupráveis.

Em tempos de saudades de uma “energia masculina” que nunca esteve fora do jogo, em tempos da popularização dos red pills, armamentistas e predadores, a emasculação transmitida ao vivo por um grupo de estupradores é o estandarte no qual lemos: somos os verdadeiros machos e podemos fazer aquilo o que quisermos com vocês.

‘Músculo, poder, tóxico’

Encontrei um estudo realizado especificamente entre alunos do ensino médio em Pernambuco a respeito da representação social de masculinidade. Ele é muito bom para pensar como a ideia de “macho” reverbera no imaginário social, uma pedagogia que nos ensina desde cedo quem é o poderoso e quem é o fraco.

O teste (realizado por Leandro de Almeida e Maria Eulina Pessoa de Carvalho) de associação livre de palavras associadas à masculinidade  resultou no seguinte conjunto: 

“Homem”, “força”,  “machismo”, “frágil”,  “violência”, “preconceito”, “heterossexual”, “tóxico”, “poder”, “respeito”, “macho”, “caráter”, “desrespeito”, “coragem”, “sexualidade”, “músculo”. 

Segundo a dupla que realizou o estudo (feito com 82 mulheres e 39 homens respondentes), esse resultado indica os diversos sentidos que os/as estudantes dão à masculinidade. “As palavras sugerem que, para os/as participantes  desta  pesquisa, a  masculinidade  é  a  posição  dos  homens  no  interior  das  relações  de  gênero  expressa  pela  força,  que  busca  esconder  sua  fragilidade por meio do machismo”.

Muito interessante, não? E reforça uma questão: a dobra na aposta do “ser homem” (músculo, respeito, macho) se dá em um momento no qual mais pessoas e grupos variados foram para ruas e redes explicitar que já não vão mais jogar o jogo –- sim, outro jogo –- há tanto realizado. O de se manter subalterno aos comandos da masculinidade que preza o grito, a violência, a porrada. 

O tipo de homem predador que há milênios violenta mulheres de maneira similar ao que aconteceu no primeiro dia de fevereiro, como espetáculo público de crueldade e demonstração de poder. Pessoas que molestaram mulheres utilizando foices, bastões com pregos, raquetes, fósforos, martelos, pedaços de pau e armas de fogo. 

Esses e outros objetos foram apreendidos pela delegada Carolina Funchal Terres na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher de Canoas, Rio Grande do Sul. A partir dessa coleta, foi organizada uma exposição que evidencia como itens aparentemente comuns do dia a dia podem ser transformados em armas brutais, representando uma ameaça letal, especialmente para mulheres.

Para saber mais:

*Uma ótima reportagem reportagem da Marco Zero Conteúdo traz o passo a passo da tragédia anunciada

*O livro Entre os vândalos, de Bill Buford (dica de Ana Paula Portella). Nele, o escritor narra sua convivência com os Hooligans, grupos de torcedores britânicos que repercutiram em todo mundo nos anos 1990 por conta da violência extrema.

* Treze pessoas foram detidas em flagrante após a pancadaria e o estupro nas ruas. Até o dia 13 de fevereiro, João Victor seguia internado. Levou mais de cem pontos na cabeça. Teve prisão decretada.

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