O policial civil do Distrito Federal Honney Cordeiro, de 51 anos, dá palestras em diferentes regiões do Brasil sobre o seu livro Nunca toque o sino, em que ensina a ser aprovado em cursos de operações especiais, aqueles tipos de treinamento que ficaram famosos após o filme Tropa de Elite.
Honney é considerado uma referência nesse meio militarizado, mas também atinge um público de estudantes de concursos, já que o seu livro trata as operações especiais como um “manual para alcançar sonhos” e as compara com desafios da vida cotidiana.
O que ele não conta aos seus seguidores é que é acusado por um major da Polícia Militar de Goiás de ser parte de um grupo de policiais que o torturou por três dias consecutivos, utilizando um pedaço de madeira para desferir golpes nas costas, pernas e nádegas.
Segundo o major, que denunciou o caso ao depor em um inquérito policial militar e não será identificado na reportagem por causa do risco à sua segurança, as agressões ocorreram enquanto ele fazia o 12º Curso de Operações do Batalhão de Operações Especiais, Bope, de Goiás, na base aérea da FAB em Anápolis, em outubro de 2021.
O Curso de Operações Especiais, COESP, é o treinamento para se tornar um “caveira” do Bope, promovido pelas polícias militares dos estados. Alguns cursos abrem vagas para policiais civis. Em um vídeo divulgado em 2019 pelo Sindicato dos Policiais Civis do Distrito Federal, o Sinpol, Honney definiu o COESP como o “doutorado das operações especiais”.
Além de Honney, outros oito agentes estavam envolvidos nas sessões de tortura, de acordo com o major, incluindo sete policiais militares (leia mais abaixo) e o policial federal Mauro André Porto Cardoso, amigo de Honney. O agente Porto é membro da Polícia Federal e, assim como Honney, foi aluno em diversos cursos de operações especiais pelo Brasil.
Enquanto os sete militares se tornaram réus e o processo contra eles tramita em sigilo na Justiça Militar, Porto e Honney não foram alvo de ações judiciais. Além disso, o fato de os dois também terem sido denunciados pelo major não era de conhecimento público. Até agora.
Todo roxo, sem consciência e com marcas de corda
O major ficou tão ferido por causa de espancamentos que teve um quadro grave de rabdomiólise – uma condição na qual há ruptura do tecido muscular e a consequente liberação de substâncias tóxicas na corrente sanguínea, o que pode causar lesão renal aguda.
Segundo a Promotoria da Justiça Militar do Ministério Público de Goiás, que denunciou o caso ao judiciário, ele foi retirado do curso após perder a consciência e internado, sem que sua família fosse informada, no hospital Santa Mônica, na cidade de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital.
Os policiais, de acordo com a Promotoria Militar, teriam abandonado o colega espancado na unidade de saúde juntamente com um diagnóstico falso de contaminação por covid-19, na expectativa de que não seria feita uma autópsia após a morte – como era a regra vigente em outubro de 2021, durante a pandemia.
Os envolvidos na tortura teriam levado o major para um hospital a cerca de 75 quilômetros de Anápolis, onde ocorria o curso, para facilitar o acobertamento do crime, apontou a promotoria. A razão seria o fato de o hospital ser da família do coronel David de Araújo Almeida Filho, médico do curso do Bope e um dos sete militares denunciados pela tortura.
“Certos de que o estado de saúde do ofendido havia atingido níveis críticos e que, por certo, ele não se recuperaria, preferiram aguardar até o seu esperado falecimento quando poderiam entregar o seu corpo em um caixão lacrado à família, alegando contaminação por Covid e impedindo que os fatos viessem à tona e fossem investigados”, afirma um trecho da denúncia da Promotoria da Justiça Militar.
O documento foi assinado por três promotores diferentes como medida de segurança, prática comum em investigações que envolvem risco de ameaça e intimidação.
A situação do major mudou quando sua esposa, que é promotora de Justiça, descobriu por meio de um amigo militar que o marido estava no hospital e conseguiu que ele fosse transferido e tratado em outra unidade de saúde. Antes disso, porém, ela enfrentou resistência do coronel David que dificultou a liberação do paciente, de acordo com a denúncia.
Segundo a Promotoria Militar, David tentou impedir a remoção do major para outro hospital escolhido pela família ao tentar esconder os ferimentos com uma manta, se recusar a entregar os documentos pessoais da vítima e ao alegar que o paciente estava com os pulmões comprometidos pela covid-19, o que impediria a remoção.
Mesmo após a transferência, conforme a Promotoria Militar, um colaborador civil do Bope tentou retirar, sem autorização da família, a documentação do primeiro atendimento médico do major — o que poderia revelar a farsa. Além disso, afirma a denúncia, um policial do serviço reservado tentou entrar sem permissão no quarto do paciente no novo hospital.
A esposa do major disse em depoimento na Corregedoria da Polícia Militar que ficou em choque quando viu a real situação do marido entubado na UTI. “Ele estava todo machucado, todo roxo, todo esfolado, com marcas em todo corpo. Queimaduras nos cotovelos e joelhos; pés e unhas machucados; olho, cabeça e mandíbula tudo roxo; nos braços tinha marcas de corda”, afirmou.
Após vários dias entubado na UTI com lesões gravíssimas e ferimentos nos órgãos internos, o major sobreviveu, mas ficou com sequelas pulmonares e renais crônicas – fora o abalo emocional por ter sido alvo de violência por parte dos próprios colegas.
Em nota enviada ao Intercept, o Hospital Santa Mônica afirmou que preza pela qualidade e segurança da assistência prestada aos pacientes e que não divulgará informações sobre os pacientes em respeito ao sigilo médico. “Ressaltamos que neste caso citado, seguindo nossas diretrizes de atendimento, todas as informações necessárias foram imediatamente repassadas à família/responsável”, afirmou no comunicado.
‘Momento pedagógico’
As agressões, segundo a denúncia da Promotoria Militar, aconteceram em uma parte do curso batizada de “momento pedagógico” – que, na prática, era quando os alunos recebiam castigos físicos.
Em uma entrevista em agosto de 2021 para o Fala Glauber, podcast voltado para policiais concurseiros, Honney Cordeiro falou em tom bem humorado sobre outros “perrengues” dos cursos de operações especiais.
“Geralmente, nesses cursos, as pessoas são submetidas a coisas não muito agradáveis”, afirmou. Cerca de dois meses depois, ele teria, segundo o major, sido um dos responsáveis por uma agressão durante um curso semelhante.
De acordo com a Promotoria Militar, enquanto Honney agrediu o major com um pedaço de madeira e tapas no rosto, o policial federal Porto usou um bastão, também de madeira, para aplicar golpes na vítima. As agressões ainda incluíram, de acordo com a promotoria, golpes com cordas, principalmente nas costas, nádegas e membros inferiores.
Além de Honney e Porto, o major cita em seu depoimento outros quatro policiais militares que o torturam diretamente, agredindo de forma semelhante durante três dias seguidos.
No início do curso – e das torturas relatadas pela vítima –, o major disse que foi levado para tomar banho sozinho à noite em um lago de água gelada com a justificativa de “amenizar suas lesões”. Isso ocorreu, segundo ele, depois que comentou com um colega que a equipe de instrução estava sendo rigorosa demais. Depois disso, as agressões foram ainda mais severas, pontuou a Promotoria Militar na denúncia.
Sem punição
Apesar de o episódio denunciado pelo major ter ocorrido em 2021, o caso só foi parar na imprensa em maio do ano passado, quando a Promotoria da Justiça Militar denunciou os sete policiais militares apontados pela vítima. Mas o mesmo não aconteceu com Honney, o policial civil coach, e Porto, o policial federal.
O motivo é que a investigação da tortura e da tentativa de homicídio ocorreu por meio da Promotoria de Justiça Militar e de um Inquérito Policial Militar, IPM, coordenado pela corregedoria militar, e que, portanto, não tem atribuição para analisar a situação de policiais civis e federais.
No entanto, em seu relatório final, a Corregedoria da Polícia Militar de Goiás citou que houve a “presença e a participação direta” de Honney e Porto na tortura – ambos eram instrutores do curso.
A Promotoria Militar também apontou a participação do policial civil e do federal, juntamente com quatro militares, como responsáveis por torturar diretamente o major. Já outros três policiais militares foram acusados pelo órgão de tortura por omissão e de tentar forjar uma possível morte por covid-19.
Como a corregedoria da PM e a Promotoria Militar não tinham atribuição de investigar os não militares envolvidos no caso, os laudos, exames médicos, fotos e depoimentos que mencionam a participação de Honney e Porto na tortura foram enviados para outros órgãos: Ministério Público Federal, Ministério Público do DF e direções da Polícia Civil do DF e da Polícia Federal. Apesar disso, até agora não há registro de ação judicial contra eles.
Em março de 2022, o Comando de Correições e Disciplina da Polícia Militar de Goiás encaminhou a íntegra do IPM para a direção da Polícia Civil do Distrito Federal.
Em nota enviada ao Intercept, a Corregedoria Geral da Polícia Civil do DF informou que foi instaurado um procedimento disciplinar sobre o caso, que concluiu que não foi demonstrada a responsabilidade de Honney nos fatos apurados no IPM. A reportagem pediu acesso ao relatório final do procedimento, mas a PCDF negou sem apresentar uma justificativa.
Já o Ministério Público do DF afirmou que sua função é apenas verificar a regularidade da instauração e cumprimento das formalidades da investigação e julgamento, que ficam por conta da Corregedoria Geral da Polícia Civil.
O Ministério Público de Goiás disse que existe um procedimento em andamento em relação a Honney, mas que ainda não houve denúncia e que o caso está em sigilo. “Foram necessárias informações complementares”, justificou o MPGO, em nota.
Já o policial civil Honney reforçou, em nota enviada ao Intercept, que o procedimento interno na Corregedoria da PCDF foi arquivado e que ele não é réu no processo que tramita na Justiça de Goiás. Ele afirma que não praticou qualquer agressão contra o major ou qualquer outro participante do curso, nem presenciou ato que pudesse justificar as lesões.
“Não há qualquer prova que sustente as acusações contra mim. (…). Sinceramente, não tenho interesse pessoal em comentar os fatos”, escreveu em trecho da nota.
Já o caso do policial federal Porto ficou sob análise do Ministério Público Federal. Em nota, o MPF informou apenas que a investigação está sob sigilo. A PF, por sua vez, respondeu que não comenta informações sobre procedimentos administrativos disciplinares em que seja possível identificar a pessoa investigada.
No entanto, o Intercept teve acesso aos documentos sigilosos da Justiça Federal e da Corregedoria da PF e descobriu que dois procedimentos para apurar a participação do policial federal Mauro Porto no caso foram arquivados.
O relatório final da corregedoria contém depoimentos de policiais militares que estavam no curso e questionam a sanidade mental da vítima. Das 13 páginas do documento, nove são uma síntese da defesa do policial federal e depoimentos favoráveis a ele. O advogado de Porto, Bernardo Fenelon, chega a sugerir que o major estava “diante de falsas memórias por ele idealizadas”.
O procurador do MPF Sérgio de Almeida Cipriano cita que o laudo pericial confirma que as lesões na vítima foram causadas por instrumento contundente, mas argumenta que foi uma possível “reação com o desgaste físico previsível pela dinâmica do curso policial realizado, haja vista que se tratava de formação policial de alto nível”.
Após o MPF se manifestar pelo arquivamento da denúncia, o juiz federal Marcelo Meireles Lobão, da Vara Federal de Anápolis, homologou a medida em junho do ano passado. “As testemunhas foram unânimes em dizer que não houve agressões e que as lesões sofridas pelo major teriam sido próprias das atividades instrutórias extenuantes e pertinentes ao curso, como rastejamentos etc”, escreveu na decisão.
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Tanto o arquivamento homologado pela Justiça Federal como o da Corregedoria da PF chegam a conclusões totalmente divergentes da denúncia da Promotoria Militar. A vítima confirmou os relatos de tortura em depoimento na Delegacia de Polícia Federal em Anápolis.
Procurado pelo Intercept, Bernardo Fenelon, advogado do policial Mauro Porto, enfatizou que seu cliente já foi absolvido na esfera administrativa e judicial. Sobre a divergência entre a conclusão da Promotoria Militar e do MPF sobre o mesmo crime, Fenelon destacou que Porto não é militar. “Ele foi julgado onde o Estado determinou que ele deveria ser julgado após um declínio de competência. Isso efetivamente ocorreu e o processo transitou em julgado. Não cabe à Justiça Militar, portanto, repisar uma vírgula sobre o nome dele, pois tal ato configuraria uma transgressão de competência jurisdicional. A justiça militar não possui atribuição para opinar sobre cidadãos inocentados pela Justiça Federal”, afirmou.
Questionado sobre a divergência em relação ao entendimento da Promotoria Militar, o MPF informou que se manifesta no curso dos processos e que é vedada a divulgação de conteúdo de investigações ou processos que tramitem em segredo de justiça.
O órgão federal ainda pontuou que apenas a conduta do policial federal como instrutor da atividade durante três dias do curso foi analisada. “Outros fatos anteriores e posteriores à atuação do policial federal não foram analisados pelo MPF”, pontuou, em nota. Apesar de se manifestar pelo arquivamento, o MPF ressaltou, na época, a possibilidade de reabertura do caso diante de novas provas.
Militares respondem na Justiça
Entre os militares, foram denunciados por tentativa de homicídio e tortura por omissão o médico coronel David de Araújo Almeida Filho, o coronel Joneval Gomes de Carvalho Júnior e o tenente-coronel Marcelo Duarte Veloso. A tortura por omissão se deu, segundo a Promotoria Militar, porque esses militares estavam em posições de comando durante ações em que houve a tortura e permitiram que ela acontecesse.
O coordenador do curso, capitão Jonatan Magalhães Missel, foi denunciado por tortura direta e tentativa de homicídio. Já o sargento Erivelton Pereira da Mata, o cabo Leonardo de Oliveira Cerqueira e o sargento Rogério Victor Pinto foram denunciados por tortura direta.
A denúncia cita, inclusive, que policiais envolvidos foram promovidos ou condecorados mesmo após as acusações da vítima, mas não especifica quais foram – o Intercept apurou que apenas o coronel David de Araújo Almeida Filho não recebeu promoção entre outubro de 2021 e abril de 2024, quando a Promotoria Militar denunciou os PMs.
O processo tramita na Auditoria Militar Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás e ainda não teve julgamento. A Promotoria Militar do Ministério Público pediu o afastamento dos PMs, mas a Justiça rejeitou o pedido por entender que era desproporcional.
Em seus depoimentos à corregedoria da PM, os policiais militares denunciados negaram qualquer tipo de agressão física contra o major ou qualquer outro aluno do curso do Bope. Eles ainda disseram que não houve agressões físicas como forma de castigo durante as instruções.
O advogado Akauã de Paula, que representa os sargentos Mata e Pinto e o cabo Cerqueira, informou que a defesa só se manifestará nos autos processuais. Já o advogado Demóstenes Torres, que representa o tenente-coronel Marcelo Duarte Veloso, se limitou a responder que não tem “nenhum interesse” na matéria. O Intercept tentou contato com o capitão Missel e com os coronéis Joneval e David, mas não houve retorno até a publicação da matéria.
‘Não volto aqui nunca mais’
Honney Cordeiro e Mauro Porto participaram juntos de um curso do Bope em Goiás em 2018. Eles contaram com orgulho, em entrevistas, como se prepararam e conseguiram ser aprovados, mas deixaram claro que a experiência não foi boa.
Em participação ao Queiroz Podcast, outro programa voltado para concurseiros, em abril de 2024, Honney admitiu que ficou em “pânico” durante o processo. “Graças a Deus eu me formei, porque eu acho que não faria duas vezes, não. Quando começou o curso, falei: ‘cara, tenho que me formar dessa vez, porque eu não volto aqui nunca mais'”.
Porto citou mais detalhes do curso que fez com o amigo em entrevista ao Fala Glauber, quando chamou de “jornada” diferente de todos os outros cursos de operações especiais que já havia feito.
“Não dá para fazer plano a longo prazo ali dentro. É sobrevivendo minuto a minuto ali – e é ruim”, afirmou. “Não tem família mais, não tem ninguém contigo. Você consegue ter a plena noção ali dentro que seu maior inimigo no mundo são os caras [da equipe de instrução]. Ninguém te odeia mais do que aqueles caras ali, [por causa] das adversidades que você é submetido por eles. Mas no final fica tudo claro”, destacou.
Porto ainda completou que o curso é “um pote de merda para cada um”, que o “é um tempo mais doído de passar” e que “tem horas que você pensa ali que ‘caramba, até Deus me abandonou aqui’”, “de tão sofrido e tão doído que é”.
Três anos depois de se formarem no curso do Bope em Goiás, foi a vez de Honney e Porto assumirem a função de instrutores no mesmo curso.
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