A paralisação nacional de entregadores iniciada nesta segunda-feira, 31, marca uma nova etapa na luta dos trabalhadores por reajustes nos valores das taxas de entrega e limites às distâncias para entregas feitas por bikes. O breque dos apps, como ficaram conhecidas as paralisações da categoria após a primeira mobilização, em 2020, seguirá até esta terça-feira, 1º de abril, com a expectativa de adesão de entregadores em todas as capitais e cerca de 200 cidades.
O objetivo do breque atual não é causar dano financeiro às empresas de entrega, que faturam bilhões de reais por ano, mas sim à imagem delas, explicou ao Intercept Brasil Nicolas Souza Santos, entregador, secretário da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora, a Ammejuf, e membro da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos, a Anea, uma das organizações que articula a greve.
Desde 2020, quando a categoria realizou o primeiro breque, outras paralisações foram articuladas, mas muitas não tiveram a adesão esperada, embora tenham revertido em conquistas para os trabalhadores.
Em 2022, por exemplo, a paralisação levou o iFood, empresa que controla 80% do mercado de delivery no Brasil, a ajustar as taxas por entrega — que depois disso não foram mais corrigidas. No ano seguinte, o breque teve como pauta a resistência à proposta de regulamentação da atividade apresentada pelas empresas no grupo de trabalho montado pelo Ministério do Trabalho para discutir o tema.
Santos considera que a categoria saiu vitoriosa, já que não houve acordo para os motofretistas, enquanto motoristas por apps aceitaram a proposta. Para ele, o grupo de trabalho foi um “fracasso retumbante” que expôs a falta de preparo do governo federal para lidar com o assunto, ainda que esta tenha sido uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A discussão pelo fim da escala 6×1, que ganhou projeção com o movimento Vida Além do Trabalho, encampado pelo vereador Rick Azevedo, do PSOL carioca, está “intimamente ligada” às reivindicações dos trabalhadores por apps, avalia Santos.
Ele explica que muitos trabalhadores caem na chamada uberização para fugir de um mercado de trabalho formal engessado que, nivelado por baixo, é insuficiente para viver. Na avaliação de Santos, se as condições do mercado formal forem melhoradas, o trabalhador por aplicativo também tende a ganhar.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista :
Intercept Brasil – Nicolas, quem é você no movimento dos entregadores? Você pode explicar um pouco a sua trajetória?
Nicolas Souza Santos – Sou motoboy, moro em Juiz de Fora e trabalho por aplicativo desde 2019, quando comecei a trabalhar como motorista de Uber. Antes disso, eu era instrutor de auto-escola. Saí dessa profissão e do emprego com carteira assinada porque a promessa de ganhar R$ 8 mil, R$ 9 mil, me encantou.
Não precisou mais de dois meses trabalhando para perceber que alguma coisa ali não é exatamente o que estava sendo dito, que a conta não fecha. Ainda dei um azar danado porque, no primeiro dia, tentaram roubar o carro, forçaram as quatro portas. Então, eu comecei com uma dívida do aluguel do carro e outra da funilaria, que deu R$ 800, o que me obrigou a trabalhar igual um cavalo por um bom tempo.
Qual foi o raciocínio que eu tive? Devo estar fazendo algo de errado. E o que a gente faz normalmente? Procura no YouTube. Lá você vai achar vários influencers falando como ganhar R$ 12 mil, R$ 15 mil. Fui tentar seguir aquele passo a passo já no segundo mês. Deu errado também. Até que pensei: deve ser o custo do carro que é alto – o da moto é menor. Aí eu migrei de modal.
Eu tinha o resto do dinheiro do FGTS guardado, comprei a moto e comecei a trabalhar logo no início da pandemia como entregador. Meu primeiro cadastro foi na Rappi. E aí foi a mesma coisa: não precisa de dois, três meses para poder perceber onde está o erro. No caso da Rappi, eram vários.
A gente começa a perceber onde estão as falhas do aplicativo, embora existam muitas vantagens. E essas vantagens vão segurando a gente, a gente vai moldando nossa vida em torno dessas vantagens. De fato, eu posso ligar o aplicativo na hora que eu quiser. Eu decido que vou levar meu filho no colégio às 11h da manhã e ligo o aplicativo às 11h30.
Então, você acaba construindo sua vida em torno daquilo e nunca mais se imagina dentro de um ambiente fechado onde você não pode, por exemplo, levar seu filho pra escola. Então, depois que as pessoas bebem dessa água, fica muito difícil sair.
Hoje você é secretário da Ammejuf e uma das lideranças da Aliança Nacional dos Entregadores, a Anea. Como você chegou a esse lugar?
As desvantagens são visíveis, são problemas reais e concretos que a gente precisa resolver. Comecei a juntar alguns companheiros para começar a resolver esse tipo de problema, o que nos levou a fundar a Ammejuf. E por ser da Ammejuf, eu faço parte também da Aliança Nacional dos Entregadores, que é onde tem várias associações, de vários estados, lideranças que vêm sendo forjadas nessa briga há um bom tempo.
Existiram várias tentativas que naufragaram, muita disputa, muita briga, muita diferença de sotaque. E aí chegou o momento em que a gente precisou se juntar em torno de uma proposta porque o grupo de trabalho da regulamentação estava começando. Então, como isso era necessário, a gente solidificou um grupo e batizou de Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativo.
“Ontem, até mais ou menos meia-noite, eu estava na pista e, hoje, acordei 8h para trabalhar na organização do breque”
Desde então, nos reunimos semanalmente para discutir quais são os problemas da categoria. Na Aliança, todo mundo é ativo no trabalho. A Aliança não é formalizada com CNPJ, não é uma entidade sindical, portanto, não existe liberação [sindical] nem salário. O que quer dizer que ontem, até mais ou menos meia-noite, eu estava na pista e, hoje, acordei 8h para trabalhar na organização do breque.
A Aliança faz parte do processo do breque, mas não é a única organização ou coletivo envolvido, é um esforço de várias pessoas. Temos a Organização Nacional dos Motofretistas Profissionais, a Família Motoboys, que é um coletivo nascente presente em alguns estados, e percebemos que era o momento de se juntar e deixar diferenças de visão de mundo de lado por um propósito mais objetivo, mais concreto, que é a construção desse breque para trazer melhorias imediatas para a categoria.
Desde o primeiro breque, em 2020, houve outras mobilizações, mas que não engajaram tanto. O que mudou de lá pra cá?
Eu tenho uma discordância muito breve de que todos os breques não tenham funcionado. Nenhum deles atingiu plenamente o que a gente queria, mas isso é muito para a vida, né? A gente realmente vai puxando, e eles puxam de lá também. A gente não está jogando sozinho, pelo contrário.
É um Tupi de Juiz de Fora jogando contra o Real Madrid, e a gente tem plena consciência disso. Então, no nosso jogo, em alguns momentos é estacionar dois ônibus na frente do gol e não deixar eles fazerem mais nada.
Se é o que dá para fazer, é o que vamos fazer. O contexto vai mudando, mas nós tivemos, por exemplo, o breque de 2021 que foi uma mobilização muito grande também, em vários estados.
O breque de 2020 tem algumas coisas que fizeram ele ter um impacto muito grande. Ele foi o primeiro, então, carrega o pioneirismo. Tem o fato de ter se iniciado em São Paulo, que é a maior metrópole da América Latina. Então, vários fatores contribuem para que o breque de 2020 tenha tido o impacto que teve. Além, claro, de que as pessoas se juntaram a esse breque, os clientes e a sociedade entenderam isso como necessário. Tinha ainda o contexto da pandemia, onde a gente não era necessário, mas vital.
E o que mudou nos breques seguintes?
A gente teve esse problema em São Paulo nos outros breques, algum racha entre as lideranças, diferença de visão de mundo. E aí a gente tem que colocar isso como fator preponderante para as dificuldades que tivemos depois. Porque, de 2020 para frente, a categoria não viveu dentro de uma bolha. Estava envolvida na polarização política que o Brasil passou e passa assim como todo mundo.
As discussões nos grupos de WhatsApp de motoboys deixaram de ser discussões concretas de como a gente melhora a nossa vida para falar ‘Bolsonaro isso, Lula aquilo’, e ninguém estava discutindo as coisas que realmente iriam mudar a vida.
Então, muita gente entrou para dentro desse debate de cabeça, perdemos muito tempo discutindo esse tipo de coisa e acabou atrapalhando. Não quer dizer que não seja importante, só quero dizer que não é prioridade para o nosso movimento, que é um movimento que não tem esse lado, nós somos um movimento de trabalhadores.
A gente ficou perdido nisso por um tempão. Ainda conseguimos fazer um breque em 2o22, que gerou o aumento da taxa [do iFood] de R$ 6 para R$ 6,50 e trouxe alguns outros prejuízos. Em 2023, a gente também fez um breque no intuito de resistir à proposta de regulamentação que as empresas estavam oferecendo e que tinha uma visão muito favorável do governo de que era uma boa proposta.
A gente não aceitou essa proposta e deu certo. Tanto é que a proposta que saiu foi somente para os motoristas. Os motofretistas e motoboys, entregadores que estavam resistindo a essa proposta, saíram do movimento vitoriosos. É aquilo que falei: é o momento de jogar na contenção. Já que não dá para ganhar, se a gente pudesse não perder era muito bom e foi isso que aconteceu.
Em 2024, não teve breque. A gente esteve envolvido na política, porque diz respeito à nossa vida mais concreta, cotidiana, porque aí a gente tem acesso aos candidatos a prefeito, aos candidatos à Câmara [de Vereadores, então, as lideranças se envolveram nesse tipo de debate. Só que isso não quer dizer que os problemas deixaram de existir.
Então, tão logo 2025 começou, a gente tinha que cobrar esse breque que ficou atrasado de 2024 com as pautas que já estão atrasadas há muito tempo. A gente está sem reajuste há três anos.
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No breque de 2020, vieram à tona as práticas desmobilizadoras do iFood para tentar rachar o movimento por dentro. Isso gerou uma investigação no Ministério Público e, posteriormente, o iFood teve que assinar um termo de ajuste de conduta. Essas práticas acabaram?
No Rio de Janeiro, o iFood vai subir a taxa mínima para moto para R$ 12 e a de bike para R$ 10. Eles esperaram o nosso movimento para poder fazer uma coisa que a gente sabe que eles têm capacidade de fazer. E qual o intuito disso? Muito simples: é desmobilizar a categoria, é tirar a revolta que faz com que ela vá para a rua. Agora é ver qual é a ideia da plataforma, se é manter isso até o dia do breque, e isso é proibido, eles assinaram um TAC dizendo que não podem fazer isso, ou se eles vão manter só até aí para poder ver se jogam uma água fria nessa fervura.
Não é uma surpresa, a gente não fica decepcionado, a gente não esperava nenhum tipo de atitude diferente por parte do iFood. E, quando eu falo iFood, é porque ele domina o mercado de delivery no Brasil e, consequentemente, impõe suas políticas aos seus concorrentes.
Justamente por não esperar nada de diferente que a gente já acionou o Ministério Público do Trabalho, que está acompanhando toda a nossa mobilização para poder garantir que esse tipo de coisa não aconteça.
Quais foram os aprendizados dos outros breques que vocês incorporaram na organização deste de agora? Por exemplo, os breques anteriores foram de final de semana, e agora vocês marcaram para segunda e terça-feira.
Isso foi uma proposta que a gente teve no agrupamento da Aliança. Levamos isso até o grupo maior, que a gente chama de Comando Nacional, e demos nossas razões. É basicamente o seguinte: uma coisa que a gente não quer fazer de forma nenhuma é promover briga entre trabalhadores. A gente quer brigar com as empresas.
“Ah, mas eu vou coletar de qualquer jeito, não é você que paga minhas contas”. Esse é um tipo de cena comum, e não estou dizendo que não vai acontecer, mas é uma cena muito mais comum no fim de semana porque o trabalhador conta com aquela meta, realmente é onde a meta aumenta, é quando você paga o aluguel de uma moto, consegue abastecer para a semana toda, fazer uma compra de mercado. Então, tem esse problema, além do fato de gente que tem trabalhos fixos ou é celetista durante a semana e só tem o final de semana para fazer coleta. Então, vira um tumulto que a gente não estava muito disposto a passar.
No final de semana, a demanda é maior, e a gente provoca um prejuízo maior no iFood. Gente… a receita do iFood no ano passado foi de R$ 7 bilhões. Eu estava conversando com uns colegas que estavam questionando porque não fazer no final de semana.
“O trabalhador está tão no limite que a gente não pode esperar ou exigir da categoria uma paralisação que vá durar um mês”
Eu falei: meu amigo, se você tivesse moedas de R$ 1 e fosse contar uma moeda por segundo, quantos segundos você ia demorar para poder contar o valor da nossa taxa? Aí ele falou: seis segundos. E R$ 7 bilhões? Aí a gente normalmente não sabe, mas dá 220 anos. Quando falamos R$ 7 bilhões, não fazemos ideia do que isso significa.
Portanto, as pessoas ainda têm a noção de que é possível provocar algum dano financeiro ao iFood parando no fim de semana. A gente não quis cair nessa de novo, e também não queremos alimentar esse tipo de desinformação de que é possível provocar dano. A gente quer aproveitar esse breque para poder ensinar a distância que a gente está do iFood hoje em matéria de poderio econômico.
Como é que a gente poderia provocar um impacto financeiro visível? Se a gente parasse um mês – e hoje a gente não tem condição de fazer isso porque o trabalhador vive no limite. Na semana passada, o iFood atrasou o repasse em torno de seis a oito horas. A gente não sai para trabalhar porque aquele dinheiro está esperando para entrar e já ir pro tanque de gasolina, para troca de óleo. Se eu não recebo aquele repasse, como eu vou botar gasolina? Eu perco a capacidade de continuar trabalhando.
O trabalhador está tão no limite que a gente não pode esperar ou exigir da categoria uma paralisação que vá durar um mês.
Se não é para atingir o lucro das plataformas, qual é o impacto que vocês preveem quando articulam o breque?
Onde a gente pode bater é em uma coisa que é muito cara para eles: a imagem. Não é à toa que eles patrocinam o BBB, o Carnaval de Salvador, o Rock in Rio. Isso é o soft power, eles estão vendendo a imagem deles como uma grande empresa de comida do Brasil, de delivery, que não tem nenhuma panela e nenhuma moto e não se explica como é que eles são a maior empresa se não têm nada disso.
E aí a gente precisa conseguir atingir isso de alguma forma. Casou então de que é muito mais importante que a gente faça um movimento massivo, que tenha uma adesão muito ampla – e segunda e terça favorecem isso – com o fato de que a data pode ser muito boa, porque é o 1º de abril. Pode ser um bom momento para poder expor essas mentiras que o iFood conta.
Outro assunto importante é a cooptação de lideranças. Você mesmo falou que, quando começou e não sabia como ganhar dinheiro, foi para o YouTube. E tem lideranças no YouTube, TikTok, Instagram, e o iFood entendeu o poder dessas vozes nas redes sociais e aí começou, de alguma maneira, a tentar estabelecer conexões. Leva para dar curso, para evento com tudo pago aqui na sede em São Paulo. Como isso afetou a mobilização? E como as empresas capitalizam em cima dessas lideranças?
Quem paga a banda, escolhe a música. Eu estou aqui, sou secretário da Associação dos Motoboys de Juiz de Fora, e aí alguém pode pensar: o trabalho do Nicolas é ser dirigente de uma associação e, portanto, ele está tranquilo da vida. As pessoas não fazem a menor ideia da quantidade de dinheiro que vai embora dentro de uma associação porque ela simplesmente não tem uma estrutura financeira própria para sustentar suas atividades.
O que acontece é que eu separo alguns dias. Hoje é um para o meu trabalho ativista, de militância em prol da minha categoria, e aí eu tiro segunda, terça, quarta, às vezes quinta para poder fazer esse tipo de trabalho. Mas chegou quinta, sexta, sábado e domingo, eu tenho que cair pra dentro da pista, fazer dinheiro.
E aí fica muito fácil pro iFood, fica fácil demais, porque ele vem e fala: “você não está querendo aí se firmar como liderança, botar sua associação na boca da galera, chegar como referência? Por que você não pega aqui essas 150 mochilas e distribui?”. E aí chega a mochila mesmo, com a marca do iFood, e o cidadão vai lá e distribui. É o jeito que ele tem de conseguir capitalizar politicamente. Só que agora ele está devendo para o iFood 150 mochilas.
Eles não vão fazer nada de graça. E aí em vez de ser uma crítica um pouco mais contundente, é uma crítica um pouco mais tranquila. Aí se estabelece uma relação um pouco mais próxima com os representantes do iFood, é tudo muito suave, não é nada que possa parecer ilegal, errado, que possa parecer que eles estão fazendo esse tipo de cooptação.
E sobre as lideranças influencers, que é também algo que as empresas observaram? O iFood inclusive criou um programa de capacitação de influenciadores em 2023.
Com relação aos influencers, chega a ser risível, porque você vê que alguém ter 500 inscritos é suficiente pro iFood vir e pegar aquele cara ali e já botar ele para dentro do circuito. E depende muito do que movimenta as pessoas, de até qual ponto ela está convencida da luta.
Felizmente, hoje temos um agrupamento muito convicto, muito convencido mesmo onde a gente faz toda a sorte de sacrifícios para poder desempenhar nossa atividade – porque, como eu disse, todo mundo da Aliança é entregador.
“Não é só com o iFood, é do capital”
Qualquer coisa que possa ser oferecida não muda o fato de que a gente é entregador, que é dali que a gente tira nosso sustento e que a gente precisa, portanto, ser honesto e convencido da nossa luta. Mas é uma dificuldade, não é só com o iFood, é do capital.
E, obviamente, o iFood também aprende. Ele faz isso agora como reflexo do breque de 2020. É mais fácil ele conquistar do que difamar, porque, se ele fica sabendo, aí vira notícia de novo, vira outro TAC. Porque foi assim que ele fez em 2020. Em vez de cooptar, ele resolveu difamar nossa liderança na época, Paulo Galo, tentou queimar ele.
No ano passado e também nesse ano, surgiu um movimento bastante relevante que é o VAT – Vida Além do Trabalho, e a discussão da escala 6×1. Você enxerga uma conexão entre esses dois movimentos?
É uma conexão que as pessoas às vezes têm uma certa dificuldade de entender, mas é intimamente ligado. Não tem como a gente fugir desse debate porque, olha, é muito comum as pessoas virarem e falarem: “mas o motoboy não quer CLT” ou “hoje os jovens não querem ser CLT” e joga tudo isso na conta da desinformação, da manipulação, mas não param para prestar atenção que a CLT hoje, quando nivelada pelo mínimo, é uma desgraça.
O que a gente foge é do assédio moral do patrão, é de ouvir “você tá dois minutos atrasado”, fazer questão de centavos. Foge de ter salário mínimo, porque o salário mínimo é horroroso. Foge porque o tanto que a gente precisa trabalhar para poder conseguir receber um salário mínimo e, ao final, ver tudo isso indo embora, com uma carga tributária gigantesca em cima do pobre, em cima do consumo. Pretendo mesmo sobreviver com um salário mínimo desse jeito? E pior: trabalhando com uma folga?
Sou robô? O que eu vou fazer nessa folga? E piora, porque hoje em dia a gente já não tem capacidade de acessar bens físicos também. Antes você tinha um prazerzinho, recebia seu salário e ia comprar um CD. Aí terminava com uma coleção de CD, comprava um filme. Terminava com uma coleção de filme, um livro, você terminava com uma biblioteca. Hoje não tem nada que é seu. Você assina Netflix, um Kindle, sei lá o quê, você não tem nada. Basicamente, trabalha para poder pagar todas as assinaturas, comer, aí você vai lá e usufrui das assinaturas no seu dia de folga. Essa virou sua vida. Essa virou a vida do trabalhador brasileiro.
Ou seja, o trabalhador brasileiro está muito mais próximo de morar na rua do que de subir de vida. Porque, se ele perder o emprego, ele não acumulou nada, não tem nada pra se desfazer pra ganhar um dinheiro e aguentar sobreviver dois meses. Hoje em dia, o trabalhador está mais próximo da indigência. Eu, se cair de moto, estou indigente. Tenho que morar na rua, não consigo arcar com o aluguel do mês que vem.
E o trabalhador que trabalha na escala 6×1 é basicamente a mesma coisa. E aí eu fujo dessa escala 6×1 para onde? Eu fujo para uma escala 7×0, mas que pelo menos eu consiga tentar, por minha própria conta, fazer uma grana a mais. Pelo menos eu posso tentar trabalhar uma hora a mais por dia e ver se eu consigo tirar um dinheiro, porque ali [na escala 6×1] eu estou engessado, não consigo fazer nada.
Vira a lógica do menos pior.
E aí que vem a parte interessante: se melhora, se a gente tiver uma política real de valorização do salário mínimo somada a uma política de valorização do trabalho com uma redução da jornada, de repente aquele trabalho ali começa a ficar mais atraente pra mim, e isso entra numa disputa com o trabalho uberizado.
Agora a gente fica trabalhando sem perspectiva porque a gente tem necessidades imediatas, que é comer, pagar um aluguel, tentar ter um mínimo de diversão em algum momento. Como o mercado formal está amplamente sucateado, com gestores e patrões que têm a mentalidade mais retrógrada que a gente pode imaginar na vida, pré-1930, que te obriga a fazer uma série de coisas abusivas, sua saúde mental, sua saúde física e você ainda tem que trabalhar seis dias para folgar um, recebendo muito mal. Aí a pessoa fala: “de algum jeito, tenho que fugir dessa coisa” e aí vai para o mercado uberizado.
Se melhorar as condições do mercado formal, certamente melhora para a gente. Diminui a quantidade de uberizado na pista e, automaticamente, sobra para quem fica uma condição melhor de negociação porque você tem menos pessoas disputando com você o mesmo espaço. Então, essa luta está intimamente ligada. A Aliança Nacional dos Trabalhadores por Aplicativo esteve no ato na Cinelândia, puxada pelo vereador Rick Azevedo, porque a gente entende que essa luta é nossa também.
Você comentou que foi uma vitória rejeitar a proposta das empresas no grupo de trabalho de regulamentação do trabalho por apps. Desde que o GT foi encerrado, parece que virou uma não-pauta para o governo essa questão, embora tenha sido uma promessa de campanha do presidente Lula. Esse breque de agora traz uma cobrança às empresas, mas também é uma forma de cobrar o governo?
O Jô Soares tinha uma frase muito boa nesse sentido que era: de onde não se espera nada, daí é que não sai nada mesmo. Decepcionado, eu não estou.
A gente tinha que estar lá porque era um espaço onde a discussão seria feita e é interessante estar por dentro, é importante colocar argumento e contra-argumentos. Mas é muito importante que não iriam levar a gente ali para entrar na foto não. A gente só vai vir aqui se for para fazer a discussão de acordo com as pautas que a gente acha necessárias. A gente levou 12 pontos para ser discutidos e não passamos do primeiro.
O governo está raciocinando de trás para frente nessa. Que diabos seria um autônomo com direitos? Direito à previdência? Isso não é direito, eu estou pagando. Qual o sentido? E como é que isso é colocado como questão prioritária? Pode ser para o governo, mas para mim não é.
É sério que o governo acha que eu estou mais interessado no valor da pensão que minha viúva vai receber caso eu morra do que em não morrer? Eu prefiro não morrer. Então, de saída, saúde e segurança eram mais importantes do que previdência.
“Na hora que chega o dinheiro, eu tenho que escolher se vou pagar a conta de luz de casa ou se troco o pneu”
Saúde e segurança estão intimamente ligados à remuneração, porque, se eu recebesse uma taxa justa, precisava tirar a diferença aqui no acelerador? Não precisava.
Eu tinha condição de deixar minha moto em condição melhor, seguindo todas as recomendações. Por que eu não faço isso? Porque na hora que chega o dinheiro, eu tenho que escolher se vou pagar a conta de luz de casa ou se troco o pneu. Eu dou uma olhada e acho que dá mais uma semana. E aí vou correndo desse jeito mesmo. Tenho escolha? Não posso ficar uma semana sem luz em casa.
Era um negócio ridículo porque, se aquilo ali fosse um jogo, o governo era o juiz, e era isso que estava escrito no decreto – onde não tiver consenso, o governo irá arbitrar. Como ele podia permitir que as empresas jogassem dessa forma, dando carrinho, jogando as pessoas pro alto? Um dos adversários tava fazendo gol de mão, dando porrada em todo mundo e o juiz não estava fazendo nada.
A gente chegava lá para a reunião numa situação de disparidade absurda. Porque, afinal de contas, nós estamos falando de Executivo que, se quiser pousar ali na hora, basicamente eles podem, enquanto a gente viajou de ônibus a noite inteira.
Eu lembro que eu estava dentro do avião ainda e, um pouquinho antes de pousar, chegou a proposta da empresa para aquela reunião. Era assim: meia hora antes, cinco minutos antes que eles distribuiam as propostas deles. Como que isso permitia uma análise séria para que a gente pudesse colocar nossas posições? E tudo isso o governo deixando.
Foi um fracasso retumbante e é por isso que é um tabu. É por isso que o governo não quer falar sobre. Porque, se ele quiser, a gente tem material suficiente para dizer “não, pera aí”. Você já teve acesso, Laís, ao relatório desse GT?
Não tive.
Sabe quem teve? Ninguém, porque não existe. Você é obrigada a acreditar em mim ou não porque não tem um relatório de um mecanismo que é oficial, de um decreto que custou dinheiro público, nem que seja uma água que é servida, no café que é servido, no ar condicionado, na sala, nas passagens de avião. Ou seja, custou dinheiro público para, no fim das contas, a sociedade que estava acompanhando esse debate de muito perto não ter acesso a um relatório. Isso é uma vergonha.
Temos uma oportunidade, e ela pode ser a última:
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