Uma das organizações envolvidas na fraude do INSS, esquema bilionário que descontou dinheiro indevidamente de aposentados no Brasil, é uma ONG que atua com indígenas – mas é presidida por um proeminente pecuarista ligado ao centrão.
O empresário mineiro Carlos Roberto Ferreira Lopes é dono de uma empresa de melhoramento genético de gado e uma holding nos EUA, e tem na família também uma empresa de mineração.
Mas a organização que preside, a Conafer, Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares do Brasil, foi fundada em 2011 com a pretensão de representar agricultores familiares sem “ideologias políticas”.
Hoje, essa entidade está presente em terras indígenas de todas as regiões do país, bancando atividades sociais e movimentos locais. A Conafer é um dos alvos da Operação Sem Desconto, deflagrada pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União em abril e que levou ao afastamento do diretor do Instituto Nacional de Seguridade Social, o INSS, Alessandro Stefanutto.
A entidade e outras dez organizações investigadas eram parceiras do INSS com a justificativa de ajudar mais pessoas a acessar benefícios previdenciários.
Com os convênios, podiam descontar valores diretamente dos benefícios de aposentados e pensionistas — muitas vezes sem autorização — sob pretexto de oferecer serviços como assistência jurídica e odontológica. O esquema começou em 2016, cresceu após uma normativa de 2022 e gerou R$ 6,3 bilhões em descontos sobre 6 milhões de beneficiários.
Além do presidente do INSS, outros quatro servidores do Instituto foram afastados, além de um policial federal. Diante da investigação, o INSS suspendeu temporariamente os acordos com essas entidades e a autorização de novos descontos.
Em nota, o INSS informou que aposentados e pensionistas que tiveram desconto indevido terão o dinheiro devolvido na próxima folha de pagamento. “Esses descontos vinham ocorrendo em governos anteriores. Na atual gestão, ações imediatas foram tomadas”, afirmou o órgão.
‘O modo operante deles é oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças’.
A Conafer vem se expandindo nos territórios indígenas pelo menos desde 2018. Diferentemente de setores mais tradicionais do agro, a Conafer demonstra alinhamento com pautas dos povos indígenas, como na defesa do fim do marco temporal para assegurar a demarcação de terras dos povos originários. Mas, de acordo com líderes indígenas ouvidos pelo Intercept Brasil, o livre acesso da Conafer a comunidades é movido pelo poder financeiro.
“O modo operante deles é oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças”, me disse um cacique do povo Pataxó, na Bahia, na condição de anonimato por temer represálias.
As ações da Conafer em terras indígenas vão de entregas de cestas básicas a organização de campeonatos de futebol, passando pelo patrocínio de assembleias. Nas redes sociais, a entidade coleciona vídeos de indígenas declarando apoio à Conafer.
Em paralelo às alianças com lideranças indígenas, Carlos Lopes viu seus negócios pessoais prosperarem. Ele administra sua empresa de melhoramento genético de gado, a Concepto Vet, e seu filho toca uma empresa de mineração e agropecuária em Minas Gerais, a Lagoa Alta.
Nos últimos anos, Lopes ainda fundou uma holding nos Estados Unidos chamada Farmlands (terras agrícolas, na tradução livre) e a Jaguar, uma empresa de produtos artesanais indígenas, que tem uma unidade no Aeroporto Internacional de Brasília desde 2024 – e que já planeja expandir para os aeroportos de Madrid e Lisboa.
Milhões de descontos no INSS – e milhares de reclamações por isso
A Conafer tem aval do próprio governo federal para fazer ações dentro dos territórios de promoção de aposentadorias, como uma espécie de assessoria para os indígenas conseguirem o benefício.
Em 2022, por exemplo, a Conafer ajudou a organizar um mutirão com uma Unidade Móvel Flutuante da Previdência Social para comunidades indígenas na região de Barcelos, no Amazonas.
Pelo menos parte do dinheiro da entidade vem dos descontos de aposentadorias dos associados. Para se ter uma noção, só em 2023 a Conafer recebeu R$ 202,3 milhões a partir de valores descontados de aposentadorias do INSS, segundo relatório do Tribunal de Contas da União, o TCU.
O relatório chama a atenção para o importante aumento de associados em poucos anos, passando de 231 mil em 2021 para 641 mil em dois anos. Cada associado representa um desconto e um ganho a mais na conta da organização.
O INSS realiza acordos de cooperação técnica com entidades da sociedade civil desde 2014 com o objetivo de aumentar o acesso a benefícios previdenciários. A Conafer tem um acordo firmado com o órgão desde 2021, no governo Bolsonaro. A parceria começou a ser negociada em 2017, no governo Michel Temer, do MDB, e segue ativa no governo Lula.
O acordo permite o desconto direto na aposentadoria de associados da entidade, desde que autorizado pelo aposentado. Mas não é isso que vem acontecendo, de acordo com as investigações da Polícia Federal e processos judiciais consultados pelo Intercept.
A Conafer é a organização que mais recebe reclamações por descontos sem autorização, segundo auditoria-geral do INSS do ano passado.
O levantamento do TCU mostra ainda que, em apenas um ano, foram registradas 3.726 reclamações contra a Conafer no site Reclame Aqui, sendo que a maioria (67,9%) é por cobrança indevida. A PF investiga a possibilidade de falsificação de documentos de filiação e autorização.
A relação entre o governo federal e a Conafer não se limita ao INSS. Em dezembro de 2024, o Ministério das Comunicações, então chefiado pelo ministro Juscelino Filho, do União Brasil, fechou um acordo de cooperação com a Conafer para realizar cursos profissionalizantes com trabalhadores da agricultura – o que, na visão da Conafer, inclui os indígenas.
Só no ano passado, a Conafer conseguiu 31 reuniões oficiais com representantes do governo federal, a maioria com os ministérios da Agricultura e das Comunicações. Também no final do ano passado, a Conafer assinou um protocolo de intenções com o Incra chamado “Aliança Pelo Campos”.
Entidades não reconhecem Lopes como liderança indígena
Carlos Roberto Ferreira Lopes se diz filho e neto de indígenas. Em eventos, costuma usar cocar e adereços indígenas. Embora não tenha nenhuma relação com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, o empresário, segundo indígenas, costuma usar as alianças da Conafer com lideranças para ele mesmo se colocar como uma.
“Todo apoio à Conafer fica condicionado ao compromisso de divulgação da Conafer e de associação a ela”, explicou ao Intercept um indigenista que vive com o povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, onde a organização também está presente – seu nome não será divulgado porque ele teme represálias.
O presidente da Conafer chegou a ser convocado como representante dos indígenas para participar de uma audiência no Senado sobre a concessão da Rodovia BR-163 no Pará. Lopes ainda participou de outra reunião na Funai, fazendo reivindicações em nome dos indígenas.
Na cerimônia em que Lopes recebeu o título de cidadania sergipana na Assembleia Legislativa de Sergipe, o deputado estadual Luiz Fonseca, do PP, disse que o presidente da Conafer é “reconhecido como liderança indígena de Xingu, Yanomami e Pindorama”.
A Conafer defende uma visão mais ampla do pequeno agricultor, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Dessa maneira, a organização tem uma possibilidade maior de associados. Apesar do nome de “confederação”, a entidade não é ligada a sindicatos, a CUT ou à Contag.
Um dos principais aliados do presidente da Conafer, a quem ele chama de “amigo e orientador”, é o senador Chico Rodrigues, do PSB de Roraima.
O parlamentar já foi flagrado com dinheiro na cueca em uma operação da PF e defendeu o garimpo em terras indígenas. Além disso, teve um avião de sua propriedade flagrado circulando em garimpo ilegal em terra Yanomami, em 2018.
Nada disso foi empecilho para, no ano passado, Rodrigues e Lopes lançarem juntos uma frente parlamentar mista em defesa do empreendedorismo rural.
Lopes defende uma autonomia dos indígenas em explorar seu próprio território, sem explicitar claramente em quais modalidades. Em sua fala no lançamento da frente parlamentar, ele associa seu programa de melhoramento genético com o empreendedorismo rural e cita os indígenas como um público-alvo.
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“Fizemos o maior programa de melhoramento genético do mundo, acontecendo simultaneamente em 4.500 municípios. Hoje, com mais de 37 mil bezerros nascidos, com mais de 92 mil vacas prenhas confirmadas. Esses animais irão empreender essas propriedades. Empreender é criativizar e realizar. Hoje temos povos indígenas que têm a total capacidade de se assumir e se representar economicamente no mundo”, declarou.
Em fevereiro deste ano, uma ex-funcionária da Conafer, Maria Cícera Salustriano Caeteano, da aldeia Xukuru do Ororuba, lançou a Embaixada dos Povos Indígenas, em Brasília.
A entidade se coloca como uma organização de defesa dos indígenas em contraponto à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, que tem como uma de suas fundadoras a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
Na ocasião do lançamento da Embaixada, a APIB divulgou uma nota informando não ter relação com a nova organização: “Não temos nenhum vínculo com a mesma, nem de seus reais propósitos”.
O Intercept entrou em contato com a Conafer e com o senador Chico Rodrigues, mas não houve um retorno até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.
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