O fantasma do crescente nacionalismo de extrema direita em todo o mundo, e em especial na Europa central, suscita preocupações quanto ao ressurgimento do antissemitismo — por motivos óbvios e compreensíveis. Mas, até agora, os líderes da maioria desses partidos nacionalistas — crescentemente inspirados e energizados pelo sucesso uns dos outros — demonstraram grande hostilidade com relação a muçulmanos, acompanhada de forte apoio a Israel e repúdio retórico ao antissemitismo.
Seja por questões táticas repletas de cinismo ou por verdadeira convicção, os mais bem-sucedidos líderes desse movimento emergente — embora incitem o medo contra muçulmanos de forma irresponsável — não apenas repudiam o antissemitismo em seus discursos, mas estão incorporando sólido apoio a Israel a suas agendas políticas. E, em muitos casos, o próprio governo israelense — que exibe muitos atributos de extrema direita semelhantes — tem expressado apoio a eles em retribuição.
A Áustria tem o mais recente exemplo de um partido xenofóbico de extrema-direita prestes a obter aquilo que era, até pouco tempo atrás, um poder inimaginável. Por ser a terra natal de Hitler, e tendo elegido recentemente líderes com conexões nazistas, esse talvez seja o exemplo mais visceralmente alarmante até o momento. O New York Times de hoje descreve com evidente preocupação a palpável possibilidade de que Norbert Hofer (acima), do Partido da Liberdade, derrote seu adversário do Partido Verde nas eleições desse fim de semana e se torne o presidente da Áustria. O jornal menciona uma fala de um colunista conhecido do Der Standard dizendo que a “Áustria ficará irreconhecível” se o Partido da Liberdade chegar ao poder. A liderança do partido, compreensivelmente, atribui suas grandes chances de sucesso à eleição de Donald Trump e à aprovação do Brexit, a saída do Reino Unida da União Europeia.
O Partido da Liberdade “foi criado por um grupo de ex-nazistas nos anos 50”, e sua ascensão, nos anos 90, gerou polêmica por todo o mundo devido a seu carismático líder, o extremista e admirador de Hitler, Jörg Haider. Hoje, Hofer demonstra hostilidade demagógica a muçulmanos nos já conhecidos formatos: comparando imigrantes a “jihadistas”, alertando quanto à “islamificação” da Europa e afirmando que o “Islã não é parte da Áustria”.
Mas Hofer não apenas repudia o antissemitismo por completo e insiste que não há espaço para ele em seu partido — o líder do partido chegou às manchetes no começo do ano por defender a demolição da casa onde Hitler morou na infância e seu partido patrocinou uma “Conferência sobre o Novo Antissemitismo” com destaque para o espião israelense que capturou Adolf Eichmann —, mas o Partido da Liberdade, nas palavras de um especialista citado pelo NYT, “fez da aproximação com Israel parte de sua estratégia”. Em 2014, Hofer peregrinou até Jerusalém, depositando uma coroa de flores no monumento à memória do Holocausto de Yad Vashem, e divulgou sua viagem a Israel em sua campanha de forma tão extravagante que causou um miniescândalo ao exagerar o relato de um incidente terrorista por ele testemunhado no Monte do Templo, em Jerusalém. Hofer prometeu priorizar uma viagem para Israel se for eleito.
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Oficiais de Israel notaram a postura de Hofer de aproximação com Israel e alguns retribuíram o apoio. “Eles são um dos partidos que mais apoiam Israel na Europa”, disse o ex-membro do parlamento de Israel, Michael Kleiner, que discursou para um painel na conferência sobre antissemitismo do Partido da Liberdade. O líder do Partido da Liberdade, Heinz-Christian Strache, visitou Israel a convite do primeiro-ministro Netanyahu, e passou sua estadia se reunindo com líderes de assentamentos, planejando como se opor a um movimento na União Europeia que visa marcar as mercadorias vindas de assentamentos ilegais de Israel e prometendo fazer todo o possível para se opor a todos os boicotes a Israel. O líder de um dos assentamentos disse emocionado: “Ele apoia Israel, é contra a marcação [de mercadorias] e contra o boicote. Não ouvi ninguém dizer isso no Reino Unido”.
A mesma dinâmica é observada de forma ainda mais impressionante na França, onde o partido de Marine Le Pen, Frente Nacional — fundado por seu pai, que minimiza a gravidade do Holocausto, e repleto de simpatizantes do Nazismo — expulsou antissemitas de seus quadros e declarou firme apoio a Israel. Há anos, ela vem reposicionando seu partido de extrema-direita como favorável a Israel, baseada na antipatia por “extremistas muçulmanos” que compartilham. Além disso, reportagens de jornais israelenses e judeus descrevem cada vez mais as intenções de judeus franceses de votarem nela. Isso deve-se, em grande parte, ao medo e hostilidade aos franceses muçulmanos que compartilham. Esses partidos de extrema-direita se opõem uniformemente a qualquer movimento de boicote que vise por fim aos assentamentos de Israel.
Uma das maiores controvérsias sobre o antissemitismo na história recente dos EUA também ilustra vividamente essa mesma dinâmica. Quando Donald Trump nomeou Steve Bannon como estrategista chefe da Casa Branca, alguns grupos americanos de judeus (como a Liga Antidifamação) foram contra, citando seu flerte (ou talvez endosso completo) com temas antissemitas. No entanto, o grupo mais importante dos EUA — AIPAC — ainda não se pronunciou a respeito de Bannon. Embora Trump, no começo de sua campanha, tenha chocado a opinião pública ao sugerir que os EUA seriam “neutros” quanto ao conflito entre Israel e Palestina, seu discurso na AIPAC — supostamente escrito por seu genro, Jared Kushner, que é favorável a Israel e, agora, extremamente influente — estava repleto de clichês pró-Israel, e muito pior.
E ainda mais importante do que isso é o fato de que muitos oficiais de Israel não somente defenderam Bannon de tais acusações, mas o encheram de elogios. Quanto à controvérsia em torno de Bannon, o embaixador de Israel nos EUA, Ron Dermer, disse “não ter dúvidas que o presidente eleito Donald Trump é um verdadeiro amigo de Israel” e estar ansioso por trabalhar com Bannon para “fortalecer mais do que nunca a aliança entre EUA e Israel”. O ministro da Agricultura de Israel, Uri Ariel, foi ainda mais enfático e escreveu: “Prezado Sr. Bannon, gostaria de declarar meu apoio e gratidão por sua amizade com Israel”, e agradeceu especificamente a “abertura de um escritório em Jerusalém quando era chefe da Breitbart para promover o ponto de vista de Israel na mídia”.
Um dos mais importantes apoiadores americanos de Israel, Alan Dershowitz, defendeu Bannon enfaticamente: “Não vi qualquer evidência de antissemitismo pessoal por parte de Bannon”. Segundo ele, “as evidências certamente sugerem que Bannon tem muito boas relações com judeus”. (Dershowitz, posteriormente condenou Bannon por intolerância com mulheres e muçulmanos.) Joel Pollack, editor da Breitbart, defende Bannon da seguinte forma: “Posso dizer, sem dúvida, que Steve é amigo do povo judeu e um defensor de Israel, além de ser um patriota americano apaixonado e um grande líder”. No site da Breitbart, o famoso antimuçulmanos Pam Geller declarou Bannon um “judeu honorário”. De fato, apesar da cobertura da Breitbart ter sido violentamente antimuçulmana sob a liderança de Bannon ao longo dos anos, o apoio a Israel sempre foi constante, com a contratação de escritores como Pollack e Ben Shapiro, que apoiam abertamente as políticas de extrema-direita israelenses. Um dos fundadores da Breitbart, o advogado judeu Larry Solov, prometeu tempos atrás que o site “seria flagrantemente pró-liberdade e pró-Israel”.
A mesma dinâmica pode acontecer com movimentos ultranacionalistas e de extrema-direita cada vez maiores fora do Ocidente e que geralmente copiam os extremos da direita ocidental. No Brasil (que provavelmente abriga a frente mais descontrolada e instável da direita, incluindo grupos que defendem explicitamente a volta da ditadura militar), os líderes da extrema direita são majoritariamente a favor de Israel. Logo após a vitória nas urnas, o prefeito eleito do Rio de Janeiro, um evangélico de extrema-direita, foi imediatamente a Israel, onde afirmou encontrar com oficiais israelenses para saber mais sobre “segurança”. O líder do movimento em favor da ditatura, Jair Bolsonaro, foi batizado em Israel e apresenta uma retórica fortemente em favor do país em sua visão de mundo. É comum que críticos de Israel no Brasil sejam rotulados de antissemitas pela extrema-direita brasileira.
No entanto, alguns alertas devem ser ressaltados. Em nenhum momento, sugere-se que não exista o risco do ressurgimento do antissemitismo, quer seja por parte desses partidos mencionados ou no Ocidente de forma geral. As raízes favoráveis ao nazismo de alguns desses partidos são em si um motivo de preocupação e é justificável suspeitar da honestidade de seus esforços de reformulação. Além disso, a mentalidade que esse movimento vem estimulando usa minorias como bode expiatório, o que pode ser facilmente redirecionado a judeus, ainda que os alvos originais sejam muçulmanos ou outros grupos religiosos. Discute-se amplamente entre grupos judeus e facções israelenses a aceitação desses grupos pelo fato de adotarem uma postura em favor de Israel.
Mencione-se também o fato de ser possível que um grupo ou indivíduo seja, ao mesmo tempo, pró-Israel e antissemita. Esse paradoxo pode ser observado na aliança cínica e grotesca entre americanos pró-Israel, como Joe Lieberman, e evangélicos que afirmam que judeus vão para o inferno depois do arrebatamento, tal como Jonh Hagee, que é veementemente favorável a Israel. Com a polêmica criada em torno de Bannon, Naomi Zeveloff do The Forward analisou essa dinâmica cada vez mais comum, dizendo que “A Breitbart News não é o único lugar onde o antissemitismo e o sionismo andam lado a lado. Por exemplo, as atitudes antissemitas são abundantes na Polônia, a despeito de seus fortes laços diplomáticos com Israel”. Alguns defensores de Israel estão dispostos a se unirem com antissemitas em potencial, ou mesmo aqueles que o são declaradamente, caso também sejam pró-Israel por motivos geopolíticos ou religiosos.
Fica claro que esses partidos de extrema-direita estão se aproximando de Israel. Com frequência, a recíproca é verdadeira. Não é difícil de entender. Qualquer partido conduzido pela antipatia a muçulmanos encontra um ponto comum com governos israelenses que passaram décadas ocupando, bombardeando e negando direitos políticos básicos a muçulmanos. Com menor importância, o próprio governo israelense é parte desse ressurgimento da extrema-direita. Vários ministros de Netanyahu, incluindo a geração seguinte que explicitamente renunciou a solução de dois Estados, são tão extremistas que o fazem parecem moderado.
Em suma, o governo israelense é conduzido por uma mistura de militaristas ultranacionalistas de extrema-direita e fanáticos religiosos antimuçulmanos, portanto, é esperado que formem alianças com partidos na Europa, nos EUA e ao redor do mundo com características políticas semelhantes. Como Todd Gitilin disse ao The Forward:
“O antissemitismo e o sionismo de extrema-direita são variações do ultranacionalismo – ou do tribalismo, para usar uma forma mais pejorativa (conforme é merecido). Ambos pressupõem que os justos precisam indignar-se, segregar e punir os malditos intrusos. Eles odeiam e temem as misturas cosmopolitas. Fazem da pureza um fetiche. Eles têm a mesma alma. Rimam.”
Essa “rima” comum está de fato criando estranhos companheiros. Ou, ao observar o comportamento e o caráter das facções políticas dominantes em Israel, descobre-se que não são tão estranhos assim.
É sempre importante manter a vigilância contra o antissemitismo na Europa e em outros lugares, e levar a sério as ameaças. Mas quando se fala do surgimento de movimentos “alt-right” e xenófobos que trazem semelhanças óbvias com seus antecessores do meio do século XX, são os muçulmanos que ocupam o lugar que pertencia aos judeus, e pelo menos, no momento, Israel (se não os judeus em geral) é considerado um aliado e uma facção digna de apoio leal.
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