Fora do governo central por 14 anos, entre 2002 e 2016, o PSDB demorou a entrar na espiral da Operação Lava Jato. Acompanhou com algum grau de conforto o esfarelamento do PT e de seus principais líderes em meio aos desvios da Petrobras. Mas a operação agora tem todos os elementos para fazer, nos moldes do que está em curso no Rio de Janeiro, uma devassa no maior ninho dos tucanos em todo o país: São Paulo.
Os investigadores têm em mãos um novelo robusto, cheio de pontas soltas. Ao contrário das investigações sobre a Petrobras, já desembaraçadas, essas pontas somente agora começam a ser puxadas. São oito pedidos de abertura de inquérito sobre acusações relacionadas ao universo tucano de São Paulo.
Os relatos detalhados de ao menos cinco delatores do alto escalão da Odebrecht fazem referência às gestões de Geraldo Alckmin (2001-2006; 2011-2017) e José Serra (2007-2010). Eles são protagonistas de um período de hegemonia tucana de 22 anos à frente do governo de São Paulo, iniciada em 1995, com a eleição de Mário Covas. Até hoje, esse período foi interrompido por um breve intervalo de nove meses, em que Cláudio Lembo (antigo PFL) assumiu após Alckmin deixar o posto para concorrer ao Palácio do Planalto, em 2006.
Quando se fala em corrupção no governo de São Paulo, necessariamente os esquemas envolvem tucanos – e de plumagem nobre.
Essa continuidade de atores permitiu à Odebrecht construir relações baseadas em financiamentos por caixa 2 e desvios de contratos públicos, em troca de contrapartidas de interesse da empreiteira. Com isso, quando se fala em corrupção no governo de São Paulo, necessariamente os esquemas envolvem tucanos – e de plumagem nobre.
Serra e Alckmin encabeçam a lista de beneficiados pelas negociatas praticadas ao longo das duas últimas décadas. O que os delatores contam é que os pagamentos feitos a esses políticos – dois ex-candidatos à Presidência da República – envolveram entregas de milhões em dinheiro vivo a cunhado e transferências para contas de amigos no exterior.
A distribuição de propina e acordos para financiamento ilegal de campanha pela Odebrecht em São Paulo, supostamente, envolvia também integrantes da Assembleia Legislativa e membros do Tribunal de Contas do Estado.
O coração da Lava Jato no maior Estado do país está em duas grandes obras, presentes cotidianamente na vida dos paulistanos: a expansão do Metrô na capital (ainda com diversos atrasos) e a construção do Eixo Sul do Rodoanel.
“O doutor Paulo disse com clareza que era uma contribuição para campanhas futuras do PSDB.”
Aqui a peça-chave tem nome, sobrenome e apelido: Paulo Vieira de Souza, conhecido no meio político como Paulo Preto. Desde a campanha presidencial de 2010, ele vem sendo apontado como homem-bomba das administrações do PSDB em São Paulo. As delações da Odebrecht corroboram seu papel central no esquema de operacionalização do esquema de desvio de dinheiro público.
Paulo já responde a uma ação penal por suposto envolvimento num esquema de desvio de recursos nas desapropriações executadas pelo governo paulista para as obras do trecho sul do Rodoanel. Agora ele avalia com advogados uma possível delação premiada no âmbito da Lava Jato.
Ele foi nomeado em 2007, por José Serra, diretor da Dersa, a estatal responsável por gerenciar as rodovias de São Paulo. Mas sua principal ligação política era com Aloysio Nunes Ferreira, hoje chanceler e, à época, chefe da Casa Civil do governo Serra.
Com a nomeação, Paulo passou a atuar diretamente nas obras rodoviárias de responsabilidade do Estado. Dentre os grandes empreendimentos do governo, sua atuação mais específica está no Rodoanel. Somente o trecho Sul da rodovia, que circunda a capital, custou R$ 5 bilhões.
Segundo Benedicto Júnior, ex-diretor da Odebrecht, Paulo tinha acordado com a empresa o pagamento de 0,75% dos valores desviados das obras do trecho. E o dinheiro tinha destino certo:campanhas futuras do PSDB, como a de Serra e Aloysio Nunes.
Os desvios aqui, segundo os delatores, foram possibilitados por um decreto do recém-empossado governador José Serra que determinava a renegociação dos contratos com todos os consórcios de empreiteiras envolvidos na obra.
Apenas a cota que a Odebrecht deveria pagar no acerto foi de R$ 2,2 milhões. O montante foi pago, segundo documentos apresentados pelos delatores, para a offshore Circle Technical Company Inc, indicada por José Amaro Pinto Ramos. Ele é amigo de José Serra e apontado como lobista com forte ligação com os tucanos paulistas.
Outra acusação dos delatores ainda em relação ao Rodoanel envolve um outro amigo de Serra, o pecuarista Jonas Barcellos. Conforme o delator Luiz Eduardo da Rocha Soares, ele, Benedicto Júnior e Paulo Vieira de Souza acertaram numa reunião, em 2011, que a empresa iria ajudar a retirar R$ 4 milhões que estavam guardados na casa do diretor da Dersa.
Na campanha presidencial de 2010, a então candidata Dilma Rousseff afirmou, como forma de atacar seu adversário José Serra em um debate na televisão, que Paulo Vieira tinha “fugido” com R$ 4 milhões da campanha.
Soares afirmou que, depois da transferência para a conta no exterior, teve “conhecimento que o valor, embora estivesse na conta de Jonas, pertencia a José Serra”.
Barcellos já esteve envolvido com outro tucano poderoso. Ele foi apontado pela jornalista Miriam Dutra como o responsável por fazer pagamentos a ela por suposta ordem do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com quem teve um relacionamento.
Geraldo Alckmin não queria passar novamente pelo processo burocrático das licitações.
Nas obras do Metrô, a expansão da Linha 2 aparece em destaque nas delações que envolvem os tucanos em São Paulo. Pela Odebrecht, o caso foi acompanhado de perto por Fábio Andreani Gandolfo, então diretor responsável por gerenciar esse contrato.
Ele explicou aos procuradores o contexto de um dos casos de desvio na obra. Visando cumprir promessas de campanha para acelerar a expansão do metrô, o governador Geraldo Alckmin não queria passar novamente pelo processo burocrático das licitações. O contrato original, da década de 90, tinha dez anos e já se tornara obsoleto. Com preços defasados e faltando apenas um ano para seu encerramento, o contrato já tinha recebido 20 aditivos prorrogando a sua validade.
A atualização contratual foi possibilitada, ainda segundo Gandolfo, por meio de um acerto de propina sobre o valor do contrato. Esses pagamentos respeitariam um teto de 4% sobre os R$ 200 milhões do contrato. O valor serviria para abastecer a cúpula dos funcionários públicos do metrô paulistano e políticos do PSDB e do PFL (atual DEM). São citados, especificamente, os deputados Rodrigo Garcia e Arnaldo Madeira.
A propina também teria outros destinatários importantes para facilitar a aprovação das obras. Outros 0,9% do valor do contrato foram para Luiz Carlos Ferreira, que estaria atuando em nome de “representantes do TCE paulista”.
Em seu depoimento aos procuradores da Lava Jato, Gandolfo relata uma reunião com o então presidente do Metrô na qual esse acordo teria sido fechado:
Entre 2004 e 2006, os pagamentos a Frayze David teriam chegado a R$ 10 milhões.
Além desse acerto, Gandolfo diz ter tomado conhecimento, por meio de outro executivo da Odebrecht, Romildo José dos Santos, de que 3% do contrato da Linha 2 também iriam para José Serra. “Posteriormente, soube que estes recursos eram destinados a campanhas do PSDB e que foram alocados ao projeto para o atendimento de José Serra”.
As obras das linhas 4, 5 e 6 do metrô também foram objetos de pagamento de propina para funcionários públicos, com o repasse mais significativo somando R$ 8 milhões para o então diretor do metrô, Sergio Brasil. Ele teria aceitado alterações sugeridas pela empresa na proposta de parceria público privada referente à Linha 6.
R$10 milhões de contrapartida para Serra, R$10,3 para Alckmin
Os pagamentos ao hoje senador José Serra não se limitaram ao caso do metrô. O delator Luiz Eduardo Soares apresentou ao Ministério Público Federal recibos de 32 transferências feitas para contas indicadas pelo lobista Amaro Ramos – todas na Suíça.
O total repassado, equivalente a mais de R$ 10 milhões, era referente a contrapartidas a Serra, pelo fato de a Odebrecht ter levado os contratos da Linha 2 do Metrô, do Rodoanel e da rodovia que liga as rodovias Carvalho Pinto e Presidente Dutra.
As transferências, nas planilhas de controle da Odebrecht, tinham como beneficiário final o codinome “Vizinho” – uma referência, segundo os delatores, ao fato de Serra ser vizinho de um outro delator do esquema, o ex-presidente da Odebrecht Pedro Novis.
A Odebrecht acertou um pagamento de R$ 23 milhões, referente a 15% do valor da dívida consolidada.
Em outro caso, já às vésperas da campanha de 2010, Serra atuou, segundo delatores, para quitar uma dívida que a Dersa tinha com a Odebrecht desde 2002, àquela altura na casa dos R$ 190 milhões. O débito seria quitado pela Dersa em 23 parcelas. Em contrapartida, a Odebrecht acertou um pagamento de R$ 23 milhões, referente a 15% do valor da dívida consolidada, supostamente para financiar a candidatura do tucano ao Planalto.
Novamente, a Suíça foi um dos endereços escolhidos para os pagamentos. O repasse foi operacionalizado por um outro delator, Carlos Armando Paschoal. O ex-diretor da empreiteira afirma que Serra indicou Ronaldo Cesar Coelho e Marcio Fortes, que eram ligados ao PSDB à época, para tratar das doações. Enquanto R$ 9 milhões foram pagos no Brasil para Marcio Fortes, 6 milhões de euros foram para contas de Coelho na Suíça.
Naquele mesmo ano, o outro grão-tucano de São Paulo, Geraldo Alckmin, que concorria ao Palácio dos Bandeirantes, também teria recorrido aos cofres da Odebrecht. Foi beneficiário de R$ 10,3 milhões, segundo o relato dos delatores e das planilhas do “departamento de propinas” da empresa. Um dos emissários indicados por Alckmin em reunião com Carlos Paschoal foi o cunhado do tucano, Adhemar Cesar Ribeiro. Ao fim daquele encontro, ele pediu à secretária para passar a Paschoal o contato do cunhado.
“Nenhuma irregularidade”
O senador José Serra, em nota, “reitera que não cometeu nenhuma irregularidade e que suas campanhas foram conduzidas pelo partido, na forma da lei” e que, com a derrubada do sigilo das delações, terá a “oportunidade de demonstrar essas afirmações e a lisura de sua conduta”.
Em manifestações recentes, Geraldo Alckmin tem dito que os delatores “não apontam nenhum ato ilícito do então candidato” e que o relato referente aos repasses para Adhemar Ribeiro, seu cunhado, “deixa claro que ele não presenciou conversa, pedido ou sugestão para a prática de qualquer delito”.
Paulo Vieira de Souza, em nota, afirma que as delações se tratam de “fábulas, mentiras e calúnias”. Segundo ele, as alegações dos delatores são “absurdos com tramas tão frágeis, que desdenham da competência das autoridades e não sobrevivem a uma segunda leitura”. Ele aponta inconsistências referentes a valores e datas nos diversos depoimentos prestados pelos delatores sobre seu suposto envolvimento em desvios.
Representantes de Jonas Barcellos enviaram nota à imprensa afirmando que “as empresas Brasif não comentam processos sobre os quais não tiveram conhecimento”.
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