Há pouco mais de um ano, a presidenta eleita do Brasil, Dilma Rousseff, sofreu impeachment – supostamente por descumprimento da lei orçamentária – e foi substituída pelo seu vice-presidente centrista, Michel Temer. Desde então, praticamente todos os aspectos da crise política e econômica da nação – especialmente a corrupção – pioraram.
Os índices de aprovação de Temer despencaram para um dígito. Seus aliados políticos mais próximos – as mesmas autoridades que arquitetaram o impeachment de Dilma e o puseram na presidência – tornaram-se recentemente os alvos oficiais de uma investigação criminal em larga escala. O próprio presidente foi acusado por novas revelações, salvo apenas pela imunidade legal da qual goza. É quase impossível imaginar uma presidência implodindo mais completa e rapidamente do que essa não eleita imposta pelas elites à população brasileira, na esteira do impeachment de Dilma.
O desgosto validamente causado por todas essas falhas finalmente explodiu essa semana. Uma greve geral e protestos tumultuosos em diversas cidades paralisaram grande parte do país, bloqueando e parando estradas, aeroportos e escolas. É a maior greve ocorrida no Brasil nas últimas duas décadas. Os protestos foram em sua maior parte pacíficos, mas algumas violências pontuais aconteceram.
A causa imediata da revolta é um conjunto de reformas que o governo Temer está introduzindo, que limitará os direitos dos trabalhadores, aumentará a idade da aposentadoria em muitos anos e cortará inúmeros benefícios de pensão e previdência. Essas medidas austeras estão sendo impostas em um momento de grande sofrimento, com a taxa de desemprego crescendo dramaticamente, e com as melhorias sociais da última década, que tiraram milhões de pessoas da linha da pobreza, se desconstruindo. Assim como o New York Times mencionou hoje: “A greve revelou fissuras profundas na sociedade brasileira em relação ao governo Temer e suas políticas”.
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Mas a causa real é mais ampla, e conhecida muito além do Brasil. Durante os últimos três anos, os brasileiros foram submetidos a uma revelação atrás da outra sobre a corrupção extrema que permeia as classes econômicas e políticas do país.
Inúmeros executivos corporativos e líderes partidários de longa data estão presos, incluindo o chefe da gigante construtora Odebrecht; o presidente da Câmara, que conduziu o impeachment de Dilma; e o ex-governador do Rio de Janeiro. Os atuais presidentes da Câmara e do Senado, nove dos ministros de Temer, bem como inúmeros governadores são agora alvos de investigação criminal por suborno e lavagem de dinheiro.
Em suma, a grande maioria da elite política e econômica de alto nível provou ser radicalmente corrupta. Bilhões e mais bilhões de dólares foram roubados do povo brasileiro. As gravações recentemente divulgadas com confissões judiciais de Marcelo Odebrecht, descendente de uma das famílias mais ricas do Brasil, retratam um país governado quase inteiramente por meio de subornos e crimes, independentemente da ideologia ou partido dos líderes políticos.
Ainda assim, mesmo depois de vir à tona essa corrupção incomparável da elite, o preço que está sendo pago cai intensamente sobre as vítimas – os brasileiros comuns – enquanto os culpados prosperam. Os mesmos políticos brasileiros envolvidos nessa empresa criminosa continuam a reinar em Brasilia, enquanto gozam da imunidade da lei. Pior ainda, continuam a se isentar da austeridade que impõem a todos os outros.
Imagine ser um trabalhador brasileiro, vivendo na pobreza, passando anos ouvindo histórias sobre como os executivos de empresas subornaram políticos com milhões de dólares para vencer corruptamente contratos do Estado – suborno que esses políticos eleitos usaram para adquirir iates, carros de luxo e fazer compras na Europa – para então ser comunicado de que não há dinheiro para a sua aposentadoria ou pensão, e que você terá de trabalhar muito mais anos, com menos benefícios, para salvar o país. Essa é a história que está sendo empurrada goela abaixo dos brasileiros. O único aspecto desconcertante é que esse tipo de protestos demorou até agora para emergir.
Mas essa perversão moral – na qual as vítimas, cidadãos comuns, são as únicas a carregar o fardo dos crimes da elite – é conhecida por povos bem longe do Brasil. De fato, um dos principais autores do sofrimento econômico brasileiro – a crise econômica de 2008 causada por Wall Street – foi pioneiro nessa fórmula odiosa.
Os magnatas imprudentes e os assistentes financeiros sociopatas responsáveis pelo colapso econômico de 2008 praticamente não pagaram pelo mal que causaram. Até hoje, nenhum deles foi processado pela falcatrua financeira que o gerou. Pior ainda: o governo dos EUA rapidamente agiu para proteger os interesses dos culpados – resgatando-os com fundos públicos, protegendo-os da nacionalização ou da desintegração, preservando sua habilidade de lucrar com poucos riscos para si.
Ao mesmo tempo, as vítimas dessa imprudência – norte-americanos comuns – foram forçadas a suportar todo o peso das consequências. Milhões encararam despejo, desemprego e sofrimento econômico generalizado com pouca ou nenhuma ajuda do governo dos EUA, que estava ocupado protegendo os responsáveis. Acima de tudo, foi essa inequidade que gerou movimentos de protesto como Occupy Wall Street e Tea Party e, sem dúvida, lançou as bases do ressentimento e um colapso de confiança que resultou na presidência de Trump.
A controvérsia desta semana sobre o pagamento de $400.000,00 feito por uma empresa de Wall Street a Obama por um único discurso ressoou, mas não porque sugeria que ele teria agido ilegalmente ou de forma antiética. Pelo contrário, simbolizou, de maneira particularmente flagrante, o caráter oligárquico da política cultural dos EUA: o mesmo presidente que agiu repetidamente de forma a proteger a indústria financeira, depois de ela ter destruído a economia global, e que blindou seus líderes de um processo criminal, estava sendo beneficiado com recompensas.
A mesma dinâmica prevalece por toda a Europa. Eleitores indignados do Reino Unido ratificaram a Brexit, enquanto as populações antes liberais da Europa ocidental estavam abertas de forma alarmante a partidos ultranacionalistas e xenófobos. Grande parte disso também é impulsionada pela crença frequentemente válida de que instituições de elite são completamente indiferentes à sua privação e sofrimento, e agem repetidamente de forma a promover os interesses de um pequeno grupo de poderosos atores política e economicamente às custas de todos os outros. É claro que essa crença vai provocar instabilidade, ressentimento e raiva coletiva.
A austeridade e a privação que estão agora sendo impostas aos brasileiros comuns não são secundarias ou imprevistas. Pelo contrário, foi o objetivo principal e central do impeachment da presidenta no ano passado.
O partido de esquerda que governou o Brasil desde 2002, o PT, tornou-se cada vez mais neoliberal e acomodou a classe oligárquica do país, muitas vezes às custas de sua própria base de sindicalistas e trabalhadores pobres. Até mesmo os dois líderes do partido – Lula e Dilma – começaram a defender a necessidade de medidas de austeridade. Isso, ao menos em parte, explica por que a própria base do partido começou abandoná-lo, levando a uma queda no apoio a Dilma, o suficiente para permitir um impeachment.
Dilma estava determinada a ir longe com a austeridade – mas não tão longe quanto as elites brasileiras desejavam. Em um momento de rara franqueza, seu substituto, Michel Temer, admitiu a um grupo de gestores de fundo de cobertura e elites da política externa em Nova Iorque, em setembro passado, que a recusa de Dilma a aceitar uma austeridade mais severa foi uma das reais razões de seu impeachment (a outra real razão foi revelada em uma gravação do mais íntimo aliado político de Temer, o senador Romero Jucá: parar a investigação de corrupção que estava em curso antes que ela consumisse os defensores do impeachment).
Em outras palavras, as elites brasileiras – tendo saqueado o país até o ponto de deixá-lo à beira do colapso – decidiram que a única solução viável era forçar a já sofrida população brasileira de trabalhadores e desempregados pobres a sofrer mais ainda, retirando deles as medidas de proteção e segurança das quais gozavam. Eles arquitetaram o impeachment cataclísmico da presidenta para alcançar tal feito.
O substituto de Dilma – a mediocridade clássica e maleável que ele é – foi incumbido de uma tarefa abrangente: impor austeridade dura, mesmo que isso significasse tornar-se alvo de ódio público e generalizado. O político de carreira, de 75 anos de idade – literalmente proibido de concorrer ao cargo por 8 anos devido à sua violação das leis eleitorais – não tinha nenhuma intenção ou perspectiva de concorrer mais uma vez, então concordou alegremente em cumprir suas tarefas atribuídas, em troca de receber o manto de poder que ele nunca poderia ter ganhado por conta própria.
Então é esse o espetáculo indigesto da corrupção e impunidade da elite e do sofrimento em massa que alimenta o protesto nacional de hoje. Tal como aconteceu nos Estados Unidos e na Europa, essa injustiça flagrante ameaça alimentar um movimento revanchista e nacionalista da extrema-direita no Brasil: um movimento que, de fato, faz com que seus equivalentes norte-americanos e europeus pareçam amenos no que diz respeito ao seu extremismo ameaçador.
A perda da confiança em toda a classe política criou uma abertura genuinamente assustadora na disputa presidencial de 2018 para o congressista evangélico de extrema-direita Jair Bolsonaro, que anseia pela restauração de uma ditadura militar, elogia os torturadores como heróis patrióticos e rotineiramente canaliza uma retórica fascista em uma ampla gama de pautas.
O que é mais desconcertante em tudo isso é que, não importa quantas vezes as elites globais vejam o fruto podre de seu comportamento asqueroso – instabilidade, extremismo e rejeição coletiva de sua própria autoridade – elas continuam a persegui-lo, aparentemente acostumadas às suas consequências. O Brasil é apenas o exemplo mais recente, mas deveria ser conhecido pelas pessoas em todo o planeta.
Tradução: Fernando Fico
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