A reforma política que está sendo discutida na Câmara pode dar uma bem-vinda sacudida no nosso sistema eleitoral, mas, infelizmente, é cedo pra comemorar. Essa é a sexta comissão montada na Casa para debater o tema desde 2003, a segunda nesta legislatura, poucos avanços de fato ocorreram, então já dá pra ver que o tema é espinhoso. Para que vigorem em 2018, as mudanças têm de ser aprovadas antes de outubro e quem vai acatá-las ou rejeitá-las são os congressistas que historicamente se beneficiam do sistema como ele é.
As evidências de que é hora de uma funilaria geral na forma como escolhemos nosso líderes são várias, mas podemos começar de maneira singela, refletindo sobre o termo Tiririca. Atualmente ele tem três acepções. É o apelido de um palhaço deputado (não confundir com deputado palhaço), uma resistente erva daninha, e um dos fenômenos mais debatidos no sistema eleitoral brasileiro: o Efeito Tiririca.
Nos idos de 2010, Tiririca (o palhaço) abalou o mundo político ao se eleger com mais de um milhão de votos e garantir ao seu partido, o fisiológico PR, outras três cadeiras (e meia) na Câmara. Em 2014, ele repetiu a façanha, levando consigo figuras como o Capitão Augusto e seus míseros 46 mil votos. A despeito da mirrada popularidade, o PM teve o mérito de trazer alguma galhardia a Brasília. Defensor da ditadura, ele dá expediente de farda, com direito a medalhas e condecorações (Bolsonaro deve ruborizar sempre que o colega adentra o recinto).
Então criou-se o mito do Efeito Tiririca: puxadores de voto que arrastariam multidões ao Congresso. Coleguinhas jornalistas fizeram as contas e chegaram a números assustadores. Em 2014, apenas 7% dos deputados haviam sido eleitos com votos próprios. Seriam 36 deputados, num total de 513. Só que sabe como é, jornalista fazendo conta é sempre um treco perigoso, e a coisa não era bem assim.
Então criou-se o mito do Efeito Tiririca: puxadores de voto que arrastariam multidões ao Congresso.
O cálculo que se fez foi dividir o número de cadeiras pelos votos válidos, chegando-se a um quociente eleitoral. Cada vez que atinge esse quociente, um partido tem direito a uma cadeira. Até aí tudo bem. O problema é que o quociente é uma média.
Quando alguns poucos políticos recebem uma quantidade muito grande de votos, a média se desloca para cima. Como consequência, a maioria, que recebe votações mais normaizinhas, fica abaixo dela. Isso, em si, não pode ser considerado um problema, se a escolha do eleitor estiver sendo respeitada. E, pasmem, ela está.
Isso ficou claro numa pesquisa feita pelo cientista político Márcio Carlomagno, considerando as eleições de 2008 a 2014. Ele comparou os políticos mais votados com os que de fato terminaram eleitos e concluiu que a diferença era muito pequena. No caso da Câmara, 92% dos que conquistaram cadeiras estavam entre os mais votados. Só uma minoria de 8% foi arrastada por puxadores de voto. “Essa ideia de que eu voto em um e outro é eleito se tornou senso comum e colabora pro descrédito com a política”, disse. “Mas na verdade não passa de um fenômeno residual.”
Ah, ufa, que bom, né? Bem, não exatamente. Primeiro porque lá se vai uma boa desculpa para termos o nosso Congresso burlesco. Segundo porque puxar votos é apenas uma faceta do fenômeno Tiririca. A outra, essa, sim, mais relevante, diz respeito ao personalismo que nosso sistema estimula.
Ao longo das décadas, o modelo brasileiro evidenciou o candidato em detrimento do partido, o que faz surgir figuras famosas, bizarras e caricatas, que se fixam na cabeça do eleitor. A persona pública vale mais do que as propostas apresentadas. Em parte por conta disso, partidos lançam vários nomes que concorrem entre si, ajudando a criar um sistema de caos que, nas eleições passadas, contou com 463.375 candidatos a vereador.
E para organizar esse circo?
Diante de toda essa confusão não seria mais fácil simplesmente eleger os mais votados e fim de papo? Bem, não exatamente. Porque aí, no sistema batizado de “distritão”, aparecem outras distorções. Primeiro, as minorias perdem espaço. Uma vez que vale a voz da maioria simples, e que os humanos tendem a escolher representantes que defendam seus interesses, ficaria quase impossível eleger um político que lutasse pelo direito dos homossexuais, por exemplo.
Além disso, os votos que não vão para o vencedor são simplesmente dispensados. Por isso siglas podem ter uma multidão de eleitores e mesmo assim acabar sem representação. Em 1993, por exemplo, numa eleição desse tipo, o partido “Progressista Conservador” do Canadá conquistou 16% dos votos, mas só 0,7% das cadeiras. Essa não parece, portanto, a melhor saída. Mas, afinal, há alguma saída?
A proposta que a Câmara está debatendo traz algumas e não são das piores. Sim, o relator do pré-projeto, deputado Vicente Cândido (PT/SP), tem lá suas fraquezas. Saiu a público dizendo que uma anistia geral da politicada não seria má ideia, deixou fora do relatório a criminalização do caixa 2 e, ainda que não seja adepto da moda hipster, se acha no direito de envergar seu grisalho bigodinho em rede nacional. Apesar disso, o esboço de reforma que ele propõe parece bem intencionado.
Um dos pontos centrais é a migração para o voto em listas fechadas. Nele, os partidos divulgam seus candidatos organizados numa ordem fixa. Os eleitores escolhem a legenda e os votos são distribuídos entre os políticos naquela ordem predeterminada. Hoje, apesar de pouco se falar, o Brasil já usa um sistema de listas para eleger vereadores e deputados. Só que são listas abertas. O candidato é eleito por uma mistura de votos dirigidos a ele e ao partido. Quanto mais votos um partido recebe, mais nomes ele emplaca. E quanto mais votos um candidato recebe, mais alto na lista do partido ele fica posicionado.
Com a mudança para lista fechada, uma vez que a ordem da quadrilha é decidida antes do pleito, há esperança de que as siglas ganhem força e propostas passem a valer mais do que nomes. De que, em vez de apostar em Tiriricas e Russomanos, os partidos possam acabar impelidos a criar planos de governo, investir em identidades ideológicas, enfim, a fazer política. Para isso, segundo especialistas, seria necessário que se aumentasse a participação popular nas agremiações, com realização de prévias ou algo parecido, evitando que alguns “caciques” dominem o processo.
Eles vão se esconder atrás do quê, afinal? Do incorruptível PMDB? Do vestal PT? Do impoluto PSDB? Não parece a melhor das estratégias.
“Ah, mas é isso. Coisa de corruptos que querem se reeleger para sempre”, dirá o leitor impaciente. “É o povo da Lava Jato que quer esconder a cara e o nome atrás do escudo dos partidos”. O argumento pode até ser interessante numa primeiro momento. Mas não vai longe.
Eles vão se esconder atrás do quê, afinal? Do incorruptível PMDB? Do vestal PT? Do impoluto PSDB? Não parece a melhor das estratégias. E pior, não parece que alguém precise de estratégia? É só abrir o jornal. A lista do Fachin está aí: Renan Calheiros, Aécio Neves, Rodrigo Maia, foram todos escolhidos, re-escolhidos e escolhidos de novo. Democraticamente. O paradigma da corrupção, o Pelé do cambalacho, o Michelangelo da cara-de-pau, Fernando Collor de Mello, foi conduzido ao Senado pelo sistema eleitoral vigente. Duas vezes! E o pobre Tiririca não tem nada com isso.
Ao longo das 27 páginas em que esboça a reforma, o relator enumera outras vantagens do sistema em listas fechadas. O espaço para desvios e caixa 2 diminuiria, já que, em vez de fiscalizar meio milhão de candidaturas, como nas últimas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral teria de monitorar apenas 35. Uma para cada partido.
O baixo índice de mulheres no Parlamento, atualmente em 9,9%, também poderia ser resolvido ali. Os partidos seriam obrigados a alternar o gênero a cada três candidatos, o que, no cenário atual, seria o equivalente a uma indicação feminina para cada três masculinas.
Por fim, claro, lá está o fator econômico. Afinal, sai mais barato criar campanhas para três dezenas de partidos do que para milhares de candidatos. A preocupação faz sentido. As eleições brasileiras estavam entre as mais caras do planeta e, em 2014, custaram aos partidos, sem contar os caixa 2, R$ 5,1 bilhões – ou o equivalente ao PIB do Suriname. Então veio a Lava Jato e nossa! O povo descobriu que as empresas que distribuíam essa dinheirama toda não eram apenas entusiastas da democracia. Elas cobravam favores em troca.
O Supremo Tribunal Federal proibiu a doação de empresas para campanhas e os gastos eleitorais (descontando-se os caixa 2) despencaram para R$ 3 bilhões, ou o equivalente ao PIB da Guiana. O problema é que as eleições em que se escolhe presidente e governador são mais custosas e ninguém sabe como essa conta será paga.
O esboço da reforma propõe uma solução: financiamento público, através de um fundo com 2 bilhões de reais. Aliás, a reforma propõe solução para quase tudo (bigodes inapropriados à parte). As coligações, que fazem os partidos se aliarem com a ideologia que for (PCdoB beijando a boca do PR, Guilherme Boulos agarrando Regina Duarte), seriam proibidas nas eleições para deputados e vereadores.
A fim de diminuir a “barganha política”, os cargos de vice seriam extintos (esse deve ser o ponto predileto de Dilma). Não haveria mais reeleição e os mandatos passariam a durar cinco anos. Os parlamentares eleitos não poderiam deixar seus postos para ocupar cargos no Executivo. Por fim, após as duas primeiras eleições em lista, o sistema evoluiria e metade dos candidatos migraria para o sistema distrital misto. Nele, cada Estado ou município seria dividido em regiões menores e o eleitor escolheria um número reduzido de candidatos (talvez apenas um). Mais gente se lembraria em quem votou, o que ajudaria a aumentar a fiscalização e a cobrança por parte da população.
Ufa! Pareceu muita coisa? Um tanto messiânico, visto que só um ano e meio nos separa das próximas eleições? Pois essas são só algumas das propostas do texto de Cândido e isso tem despertado críticas. Ele parece amplo e profundo demais para haver consenso. Verdade que faz parte do jogo expandir as possibilidades para depois ir cedendo daqui, cortando de lá, até por fim aprovar o que for possível. Nesse caso, contudo, há um complicador.
Como foi dito lá em cima, o pessoal encarregado de levar a coisa a cabo é o mesmo que domina o sistema atual. O clássico problema democrático de legisladores relutando em cortar na própria carne. Em outras palavras, seria mais ou menos como achar que PCC, Comando Vermelho, Família do Norte e outras dezenas de facções criminosas poderiam sentar numa mesa em Brasília e resolver o caos dos presídios brasileiros. Bom, não custa tentar, não é mesmo?
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