“Você está demitido!” Isso é o que Trump bradaria de sua cadeira na sala de reuniões ao final de cada episódio de “O Aprendiz”. Por anos, milhões de norte-americanos sorriam, riam e até comemoravam na frente da TV enquanto o proprietário magnata falava seu bordão.
Mas essa semana não há muito do que rir. A demissão do diretor do FBI, James Comey, pelo presidente Trump será lembrada como um dia sombrio e deprimente na descida ladeira abaixo da democracia norte-americana. É difícil discordar da avaliação mordaz do analista legal da CNN Jeffrey Toobin, que descreveu o acontecimento como um abuso grotesco de poder. “Esse é o tipo de coisa que acontece em democracias”, ele disse ao apresentador Wolf Blitzer em um vídeo que, merecidamente, tornou-se viral. “Eles demitem quem está responsável pelas investigações.” Toobin continuou: “Isso é algo que não faz parte da tradição política norte-americana. (…) Isso não é normal, não é política normal”.
Não é, realmente, nada “normal” remover o líder do FBI de seu cargo em menos de quatro meses de presidência — e um chefe da FBI que foi creditado por dar a vitória a esse presidente, surpreendendo as probabilidades. Temos de voltar até 1993 para encontrar a última — e única — vez em que um presidente (William J. Clinton) decidiu demitir seu chefe do FBI (William S. Sessions). E esse último, diferentemente de Comey, foi acusado de uma longa lista de violações de ética bizarras, incluindo, como noticiou o Washington Post na época, “cobrar do governo por viagens pessoais”, desviar aviões do FBI para buscar sua esposa, Alice Sessions, em outras cidades, e utilizar carros do FBI para ‘levá-la para fazer as unhas’”.
Tampouco é normal um presidente norte-americano enviar seu chefe de segurança privada de longa data e antigo guarda-costas para entregar em mãos uma carta de demissão a seu chefe do FBI. Há ditadores meia-tigela na África que teriam evitado tais feitos simplesmente para não causar uma impressão errada. O Trump Meia-Tigela, contudo, não se importou (seu brutal chefe de segurança, Keith Schiller, não nos esqueçamos, passou a campanha presidencial agredindo manifestantes latinos e manipulando os repórteres latinos em nome de seu chefe).
A procuradora-geral Sally Yates também foi despedida por Trump via carta entregue em mãos. O procurador dos EUA do distrito sul de Nova York, Preet Bharara, foi mandado embora por Trump após ter negado se demitir. O que Comey, Yates e Bharara têm em comum? “Todos estavam investigando Trump quando foram demitidos, e há um dedo da Rússia em todos esses casos”, observa Shannon Vavra da Axios.
“Você está demitido!” É assim que Trump Meia-Tigela lida com quem o faz prestar contas. Não podemos dizer que não fomos avisados. Afinal de contas, ele nunca escondeu suas inclinações autoritárias, seu desrespeito descarado pelas normas políticas, legais e sociais.
Trump, o proprietário magnata, criticou Mikhail Gorbachev por não responder aos manifestantes antissoviéticos com mão firme o suficiente, enquanto contemplava com admiração o show chinês de “força” contra os manifestantes da praça Tiananmen em 1989.
Trump, o candidato à presidência, elogiou Vladimir Putin como um presidente que “tem sido muito mais líder do que nosso presidente [Obama] tem sido” e que tem “grande controle sobre seu país”.
Trump, o presidente, em seu primeiro discurso à nação, fez sua melhor performance do supervilão Bane de “Batman: o Cavaleiro das Trevas”, com uma fala distópica sobre a “carnificina norte-americana”, enquanto prometia “tornar os EUA fortes novamente”. No Twitter, referiu-se à mídia como um “inimigo dos norte-americanos” e denunciou um “suposto juiz” que ousou agir contra sua “proibição muçulmana”.
É de se admirar que especialistas em autoritarismo e fascismo nos estejam alertando há vários meses? Ouçamos Ruth Ben Ghiat, professora de história da Universidade de Nova York, autora de um livro sobre a ascensão de Mussolini na Itália pré-guerra. Trump “é um autoritarista que tem a habilidade de esticar os limites da democracia até algo irreconhecível”, disse em meu programa Al Jazeera English em fevereiro,.
Será que nos surpreende comentadores estarem invocando o infame “Massacre de sábado à noite” do presidente Richard Nixon, no qual ele demitiu o promotor especial de Watergate, Archibald Cox? Vamos ouvir John Dean, ex-conselheiro de Nixon na Casa Branca, que acredita que Trump é muito pior do que Nixon e disse a The Atlantic em janeiro: “A presidência dos EUA nunca esteve aos caprichos de uma personalidade autoritária como a de Donald Trump”.
Com Nixon, os pesos e contrapesos funcionaram. Ele foi detido. Eventualmente. Quem vai parar Trump Meia-Tigela? Os republicanos do Congresso? Você está brincando, certo? Eles têm marcharam em parceria partidária com seu Querido Líder desde que ele ganhou a indicação presidencial de seu partido no último verão.
Considere o tratamento deles esta semana com Yates, que testemunhou na frente do Senado nessa segunda-feira. O senador Ted Cruz, cuja esposa foi chamada de feia por Trump e cujo pai ele acusou de conluio no assassinato de JFK, decidiu atacar Yates em nome do presidente por causa de sua recusa em defender a “proibição muçulmana” de Trump no tribunal.
A senadora Lindsay Graham, a qual Trump chamou de “incompetente” e de uma “vergonha”, decidiu dar eco a um ponto-chave do discurso de Trump ao perguntar a Yates quem divulgou informações confidenciais sobre laços do ex-conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn com a Rússia, em vez de perguntar sobre o teor desses laços.
Esses são os representantes eleitos em cujas mãos está o destino da República dos Estados Unidos? Sério? Quem irá parar Trump Meia-Tigela? Os democratas? Eles farão fila para aparecer na MSNBC e exigir um promotor especial; eles podem até se tornar ousados o suficiente para falar em impeachment. Mas eles são a minoria partidária em ambas as câmaras. Não têm votos o suficiente para exigir nada. Nem mesmo têm muita credibilidade aos olhos do público — uma pesquisa recente revelou que os democratas são menos populares do que os republicanos, o vice-presidente Mike Pence e o próprio Trump.
Quem vai parar o Trump Meia-Tigela? Os tribunais? Aqui e ali, talvez, mas depois de um ou até dois mandatos? E à medida que os poderes de patronagem do presidente começam? Duvido. Lembrem-se: O efeito Trump no Judiciário dos EUA vai muito além da nomeação do ultraconservador Neil Gorsuch para a Suprema Corte. Trump herdou mais de 100 vagas judiciais de Obama, mais que o dobro do número de vagas que Obama herdou de Bush em 2009.
Quem vai parar o Trump Meia-Tigela? A mídia dos EUA? Dá um tempo! Grande parte do chamado quarto poder se envergonhou com a cobertura aduladora e deferente do presidente; a mídia de TV fechada vê Trump menos como uma ameaça à democracia e mais como uma vaca leiteira e uma bênção das cifras. Nas últimas semanas, o âncora do CBS Sunday Morning, John Dickerson, foi escoltado para fora do Salão Oval após perguntar a Trump algo de que ele depois não gostou, enquanto Van Jones e Fareed Zakaria, da CNN, se atropelaram para declarar que Trump era “presidenciável” porque tinha um bom discurso e lançou alguns mísseis na Síria.
Os pesos e contrapesos americanos estão descontrolados. A demissão do diretor do FBI é apenas o início. Haverá mais demissões; mais corrupção política; mais abusos de poder. E, mais uma vez, não podemos dizer que não fomos avisados. Trump Meia-Tigela, John Dean alertou em janeiro, “vai testar nossa democracia de forma nunca antes vista”. Se a democracia norte-americana está apta a esse teste, aí é uma outra questão.
Tradução: Fernando Fico
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