Se havia alguma dúvida de que João Doria não encarava saúde como uma prioridade, esta semana ela foi sanada. Ao usar força bruta policial para literalmente destruir a cracolândia do centro de São Paulo, o prefeito da capital paulista ignorou duas considerações fundamentais sobre a dependência de crack, ou qualquer outro tipo de droga: a questão é de saúde, e não de segurança. Não é atacando locais de consumo e venda que se resolve o problema. Para confirmar o nível de preocupação do prefeito sobre saúde pública, na sequência, ele mandou reduzir a verba de postos de saúde e hospitais em 7,2%. No início do ano, já havia mandado congelar 25% da receita da secretaria municipal de saúde.
“Não há possibilidade de a Cracolândia voltar”, afirmou o prefeito após a destruição da área, no fim de semana. Além de ferir pessoas durante a ação, seja por brutalidade policial ou simplesmente derrubando paredes por sobre elas, o prefeito não completou nem mesmo a “missão” a que se propôs: acabar com a feira de drogas.
Em vez de dar fim à cracolândia, a operação fez com que ela se espalhasse pela cidade. Neste momento, “minicracolândias” estão sendo criadas ou expandidas em São Paulo. E o pior: as novas concentrações se encontram em pontos onde a estrutura de apoio aos usuários não é forte como era no centro, em lugares onde não há assistência social regular ou nem mesmo presença de ONGs que apoiam as famílias envolvidas.
Movimento semelhante foi observado em 2012, quando a gestão do então prefeito Gilberto Kassab (PSD) organizou junto ao governo Geraldo Alckmin (PSDB) a “Operação Cracolândia”. Já naquele momento, o crescimento de pontos de venda alternativos foi criticado como consequência da ação policial.
“Precisa e cirúrgica para evitar violência”
E qual a saída novamente apontada por Doria, frente à dispersão da cracolândia central? “Assim como na Luz, a ação será precisa e cirúrgica para evitar violência”, afirmou o prefeito. O ataque orquestrado no fim de semana à região da Luz, que o prefeito qualifica como cirúrgico e preciso, foi alvo de críticas feitas por organizações de saúde, de defesa dos direitos humanos e por parte do Ministério Público e da Defensoria Pública. Um documento sobre a operação será entregue à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Abaixo, é possível verificar como a operação foi tudo, menos uma ação “precisa e cirúrgica para evitar violência”:
Para completar, Doria ainda ordenou a internação compulsória de usuários presos durante a operação. Triste coincidência: em 18 de maio completaram-se 30 anos da Carta da Bauru, documento assinado pelos participantes do II Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental. A carta definiu as diretrizes da luta antimanicomial e que trouxe as questões da Reforma Psiquiátrica Brasileira para seu devido campo: a saúde.
Na carta, profissionais de saúde mental recusavam “o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana”. Em um relatório sobre saúde mental no mundo, de 2001, a Organização Mundial de Saúde incluiu a dependência de drogas e do álcool na lista de transtornos mentais que devem ser tratados sob o prisma da saúde pública.
Em comemoração aos 30 anos da carta, o Grupo de Trabalho de Saúde Mental e Liberdade da Pastoral Carcerária lançou uma nota criticando ações de internação compulsória, como a que viria a ser adotada pelo prefeito paulistano. Dois dias depois, a ação de Doria mostrou que as mesmas posturas criticadas há 30 anos continuam mais do que atuais, conforme criticou o Conselho Federal de Psicologia:
“Esse ‘novo programa’ repete fórmulas ultrapassadas, inadequadas e ineficientes do ponto de vista da saúde mental. Repete o ‘Programa Recomeço’, do governo estadual, e a ‘Operação Sufoco’, da gestão municipal. As três iniciativas têm como princípios o tratamento por internação, inclusive involuntária, em parceria com comunidades terapêuticas mantidas por entidades confessionais, não sendo coincidência o nome ‘Redenção’.”
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