O Congresso Nacional conseguiu aprovar, na noite desta terça (6), o projeto de lei que altera a meta fiscal. Antes de dar o sinal verde para um rombo ainda maior nas contas públicas deste ano e do ano que vem, os parlamentares mantiveram, no fim do mês passado, o veto do presidente Michel Temer à realização de uma auditoria da dívida pública do país. A ratificação da decisão presidencial é tão danosa para os cofres públicos quanto a medida validada ontem.
Da forma como foi aprovada pela Comissão de Orçamento, no ano passado, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2017 previa a realização dessa auditoria. A medida já tinha sido sugerida na LDO de 2016, mas o dispositivo também fora vetado pela então presidente Dilma Rousseff.
A dívida pública é formada por empréstimos feitos junto a instituições financeiras e a empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas e outros governos. Em julho, ela estava em R$ 3,341 trilhões.
Maria Lucia Fatorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins lucrativos que monitora o tema. Ela dá a dimensão do estrago dessa falta de transparência:
“Muitas pessoas acreditam que a corrupção é a principal causa da crise econômica pela qual o Brasil passa por agora, mas não é”.
Fattorelli acompanhou de perto a auditoria da dívida externa equatoriana em 2007, iniciativa que gerou ao país uma economia de R$ 7,7 bilhões de dólares. Em entrevista a The Intercept Brasil, ela detalha a importância de sabermos exatamente pelo que estamos pagando.
Confira a entrevista:
The Intercept Brasil: Já que é tão importante auditar a dívida, por que ninguém fez até hoje?
Maria Lucia Fattorelli: Não auditamos a dívida pública porque o poder econômico mundial é quem manda, e eles não querem. As instituições financeiras mais importantes do planeta (Banco Central Norte-Americano e Banco Central Europeu) são instituições privadas comandadas por bancos privados. E o Fundo Monetário Internacional (FMI) é dirigido em virtude do interesse deles.
Então não estamos falando de uma coisinha qualquer, mas do maior poder econômico mundial. Eles estão acima dos países, de governos. Eles são tão ousados que chegam a mandar em outros governos para que os interesses econômicos deles sejam atendidos. Falar de auditoria da dívida é incomodar esse poder mundial.
TIB: E de que forma essa ausência de uma auditoria se reflete na população?
Fatorelli: Se a maioria da população ficar sabendo que não temos acesso a educação e saúde de qualidade, a emprego, a uma vida digna para todas as pessoas, por causa de esquemas financeiros que criam dívida para transferir dinheiro para banco, isso vai gerar uma mobilização mundial e colocará em cheque esse esquema.
No mundo inteiro, o que se vê é a renda concentrada em menos de 1% das pessoas. O motivo? Esses mecanismos financeiros. Não à toa, grande parte desse 1% da população mundial é de banqueiros ou donos das grandes empresas ligadas ao sistema financeiro.
Falar em auditoria da dívida pública é colocar os interesses econômicos de muitos em risco, porque tudo terá que ser checado.
TIB: E qual o papel da classe política nesse quadro?
Fatorelli: Falar em auditoria da dívida pública é colocar os interesses econômicos de muitos em risco, porque tudo terá que ser checado. Estamos falando de um setor financeiro poderoso, que contribui e financia a maioria das campanhas políticas. É tudo muito interligado. Esse esquema financia a classe política, que por sua vez vota o que interessa na manutenção dos privilégios financeiros. Em consequência, também não avança a questão da auditoria. Ou seja, você percebe todo um sistema político submetido e dependente deste modelo econômico, tendo em vista que eles se retroalimentam para sobreviver.
TIB: Quais instrumentos foram usados para fabricar a atual crise econômica?
Fattorelli: A alta taxa de juros praticada no Brasil provocou o disparo do crescimento da dívida pública. Enquanto não se enfrentar e se discutir essa prática do Banco Central – que ao mesmo tempo gera dívida e uma despesa financeira brutal -, ela impedirá que o setor produtivo funcione. A continuidade disso é o aprofundamento da crise.
Vejo que esse cenário foi armado para justificar a entrega de empresas estratégicas brasileiras, como a Eletrobras. A própria privatização da Casa da Moeda impede uma das principais políticas do BC de um país, que é a possibilidade de emitir moeda, irrigar a economia, garantir desenvolvimento, infraestrutura e investimentos geradores de emprego.
Isso tudo é obrigação do BC realizar, mas não tem sido feito porque hoje ele está subserviente aos interesses do capital financeiro, do nacional e do internacional. Não à toa o BC sempre foi gerido historicamente por banqueiros.
TIB: A dívida pública tem a ver com o aumento do rombo (R$ 20 bilhões) que o governo Temer lutou para aprovar no Congresso?
Fatorelli: Total. Mas pergunto: o que provocou essa crise que gerou uma queda brusca na arrecadação? As pessoas já se perguntaram por que as indústrias fecharam, estabelecimentos comerciais idem, e o país está hoje com milhões de desempregados?
Essa crise foi provocada pela política monetária do Banco Central, que manteve taxas de juros extremamente elevadas, em 14,25% por quase dois anos. E isso foi feito no momento em que o mundo inteiro estava praticando taxa zero ou negativa.
Aumentar a taxa de juros do mercado a níveis estratosféricos cria, invariavelmente, uma crise que quebra toda a atividade produtiva do país.
TIB: Qual o resultado para a economia dessas operações financeiras do BC?
Fatorelli: Isso é de uma insensatez, porque gera escassez de moeda nos bancos, provocando aumento da taxa de juros de mercado. Basta pegar o exemplo das taxas que os bancos cobram no Brasil: ultrapassam 400%. E isso quebra a indústria, o comércio.
Aumentar a taxa de juros do mercado a níveis estratosféricos cria, invariavelmente, uma crise que quebra toda a atividade produtiva do país. Impede a indústria, o comércio, gera desemprego e vem a queda de arrecadação. O rombo atual de R$ 20 bilhões do governo Temer é em decorrência disso.
TIB: O Tribunal de Contas da União (TCU) daria conta de fazer uma auditoria da dívida?
Fattorelli: O TCU tem técnicos eficazes para isso, mas infelizmente a auditoria nunca entra na pauta. Agora é que eles estão ensaiando fazer a primeira auditoria da dívida interna. Só agora, após uma provocação do senador Álvaro Dias (Podemos-PR), que apresentou um requerimento no Senado para que se fizesse uma auditoria interna.
Condições e competência para fazer o TCU sempre teve, mas até o próprio tribunal sofre pressão de interesses do mercado financeiro. Nos tribunais, tanto dos estados quanto da União, são nomeados conselheiros vinculados ao poder político, com o objetivo de não mexer na dívida pública.
TIB: O Equador conseguiu fazer uma auditoria na gestão do presidente Rafael Correa. O Brasil está perto de seguir o mesmo caminho?
Fattorelli: O Brasil já esteve mais perto. Participei do processo no Equador, que aconteceu no início de 2007. Assim que nós retornamos de lá, conseguimos avançar com uma CPI da Dívida Pública entre 2009 e 2010. Essa CPI aqui no Brasil apurou as mesmas irregularidades que a auditoria equatoriana averiguou em relação à dívida externa deles.
A CPI condensou todas as informações obtidas num relatório de mais de mil páginas. Desde 2010, esses resultados estão com o Ministério Público, e não aconteceu nada até agora. Nós já estivemos muito mais perto [de realizar uma auditoria] do que atualmente, principalmente com esse governo todo denunciado e entregando as jóias da coroa brasileira: o que resta de portos, aeroportos, estradas e da nossa Amazônia.
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