Enquanto uma das tempestades mais fortes já registradas caía sobre os Estados Unidos, com boa parte do estado da Flórida sob ordem de evacuação, o presidente Donald Trump se empenhava em resolver uma questão de grande urgência.
Trump reuniu seu gabinete em Camp David e disse que não havia tempo a perder. Diante do avanço do furacão Irma, que poderia devastar enormes áreas dos estados da Flórida, Geórgia, Carolina do Sul e Carolina do Norte, havia chegado a hora de realizar substanciais… reduções de impostos.
Sim, foi isso mesmo. O presidente não estava preocupado em levar auxílio substancial aos mais atingidos pelo desastre, nem em realizar uma mudança substancial nos sistemas de transporte e energia, buscando reduzir a emissão dos gases do efeito estufa para que tempestades como o Irma parem de acontecer três vezes por ano. Sua prioridade era realizar alterações substanciais ao código tributário. Ele alega a intenção de aliviar a classe média, mas na verdade as mudanças trariam a maior redução de tributos das últimas décadas para as grandes empresas e dariam também uma boa ajuda para os muito ricos.
Muitos imaginaram que a experiência de viver tão de perto as catástrofes desse verão – Houston submersa, Los Angeles consumida pelas chamas, e agora os estados do Sul assolados pelo Irma – pudesse servir de alerta para os republicanos que negam mudanças climáticas.
O que o pronunciamento de Trump a seu gabinete deixa claro, porém, é que o único efeito do Irma será levá-lo a redobrar esforços em sua temerária agenda econômica. Acompanhado pelo Secretário de Estado, Rex Tillerson, e pelo Secretário de Comércio, Wilbur Ross, o presidente explicou que iriam discutir “drásticas reduções de impostos e uma reforma tributária”. Disse ainda: “penso que agora, depois do que aconteceu com o furacão, vou pedir pressa.”
Algumas pessoas observaram que se trata de um perfeito exemplo do que denominei “doutrina do choque” – o uso de desastres como pretexto para impor políticas radicais em prol de grandes corporações. E é mesmo um caso clássico, em especial porque, no momento em que Trump deu tais declarações, o furacão Irma se encontrava no auge de sua ameaça potencial.
O timing do presidente revela ainda mais sobre os verdadeiros motivos que impulsionam a negação das mudanças climáticas por parte da direita americana. Não se trata de uma rejeição à ciência, mas de uma rejeição às consequências da ciência. Para resumir, se a ciência está correta, significa que é preciso jogar fora todo o projeto econômico que dominou as estruturas de poder nos EUA desde a presidência de Ronald Reagan, e os negacionistas sabem disso.
Se as mudanças climáticas estão por trás das catástrofes que estamos vendo agora – e elas, de fato, estão -, isso não significa apenas que Trump precisa pedir desculpas e admitir que estava errado quando chamou o fenômeno de “invenção dos chineses”, mas também que ele precisaria descartar todo o seu plano tributário, porque esse dinheiro de impostos (e um tanto mais) será necessário para custear um rápido abandono dos combustíveis fósseis. Significa ainda que ele precisaria descartar seu plano de desregulamentação, porque se vamos mudar a forma como usamos energia em nossas vidas, será necessária ampla regulação para gerir e fazer cumprir essa mudança. Obviamente, isso não atinge apenas Trump, mas todos os governadores do Partido Republicano que negam as mudanças climáticas, e cujos estados estão atualmente sofrendo as consequências. Todos teriam que jogar no lixo uma visão de mundo distorcida, que considera que o mercado está sempre certo, que a regulação está sempre errada, que o privado é melhor que o público, e que os tributos que custeiam os serviços públicos são a pior coisa que existe.
O que precisa ser rapidamente compreendido é que, a essa altura, só vamos conseguir lidar com as mudanças climáticas por meio de ações coletivas que restrinjam drasticamente o comportamento de grandes corporações como Exxon Mobil e Goldman Sachs (ambas fartamente representadas na reunião de gabinete de Trump). As ações climáticas exigem investimento na esfera pública – em novas redes de energia, transporte público, trens urbanos e eficiência energética – numa escala só vista antes da Segunda Guerra Mundial. Para que isso aconteça, é preciso aumentar a tributação sobre os muito ricos e sobre as grandes empresas, exatamente quem Trump está determinado a beneficiar com as mais generosas reduções de impostos, isenções e exceções regulatórias.
Em resumo, as mudanças climáticas dinamitam o arcabouço ideológico sobre o qual se assenta o conservadorismo contemporâneo. Admitir que a crise climática é uma realidade é admitir o fim de um projeto político e econômico, e é por isso que a direita está se rebelando contra o mundo físico (o que levou centenas de milhares de cientistas ao redor do mundo a participar da Marcha pela Ciência em abril deste ano, defendendo coletivamente uma ideia que não deveria nem precisar de defesa: é bom entender o máximo possível do mundo em que vivemos). Há, no entanto, fundamento lógico para que a ciência tenha se tornado um campo de batalha: ela vem demonstrando reiteradamente que a forma corporativa de fazer negócios está levando a uma catástrofe que ameaça a própria espécie humana.
A questão não atinge apenas a direita, mas também o centro. O que os liberais tradicionais dizem há décadas sobre as mudanças climáticas é que só precisamos fazer alguns ajustes no sistema atual para ficar tudo certo. Capitalismo estilo Goldman Sachs, mas com painéis solares. No estágio atual, no entanto, o desafio que se apresenta é muito mais profundo.
Para reduzir nossas emissões no ritmo necessário para evitar um aquecimento catastrófico é preciso questionar a centralidade do aumento do consumo na forma como avaliamos o progresso econômico. É preciso reconstruir nossa economia em aspectos fundamentais, que incluem o combate às desigualdades econômicas e raciais sistêmicas que transformam desastres como [os furacões] Harvey e Katrina em catástrofes humanas. Em determinado sentido, portanto, os membros do gabinete de Trump demonstram, com sua desesperada necessidade de negar a realidade do aquecimento global ou minimizar suas implicações, reconhecer uma verdade essencial: para evitar o caos climático, precisamos enfrentar o fundamentalismo do livre mercado que tomou conta do mundo desde a década de 80.
Trump e seus colegas que negam as mudanças climáticas (e também os que as minimizam) enxergam nessa ameaça à sua visão de mundo uma crise tão existencial que é difícil até aceitar que a possibilidade passe por suas mentes. É compreensível, pois o aquecimento global tem implicações radicalmente progressistas. Se ele for real – e evidentemente que é –, as oligarquias não podem continuar a praticar seus desmandos sem regras.
À medida que a realidade do colapso climático mostrar sua face assustadora, cada vez mais pessoas serão capazes de entender suas óbvias implicações políticas e econômicas. Enquanto isso não acontece, precisamos parar de esperar que desastres “acordem” os negacionistas mais arraigados. Eles vivem um sonho muito bom, muito confortável e muito rentável. No entanto, já que o presidente se vale dos desastres simultâneos – os furacões Harvey e Irma, a Coreia do Norte, e qualquer outro inferno que possa explorar – para impor clandestinamente sua cruel agenda econômica, é nosso papel estar bem alertas para a realidade: é uma questão de sobrevivência da humanidade impedir que prevaleçam Trump e a visão de mundo que ele representa.
Parcialmente adaptado de “No Is Not Enough: Resisting Trump’s Shock Politics and Winning the World We Need”. O livro será publicado em novembro de 2017 pela Bertrand Brasil.
Tradução: Deborah Leão
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