Em 1º de julho de 2001, foi promulgada em Portugal uma lei que descriminalizou todas as drogas. Sob essa lei, ninguém que seja encontrado portando ou usando narcóticos é preso em Portugal, ou considerado criminoso. Nem o uso, nem a posse de drogas são considerados crimes em qualquer hipótese. Em vez disso, as pessoas encontradas nessas situações são encaminhadas para conversar com um painel de conselheiros e terapeutas especializados em drogas, onde lhes são oferecidas opções de tratamento.
Sete anos depois da promulgação da lei, em 2008, viajamos a Lisboa para estudar seus efeitos, em um dos primeiros relatórios abrangentes sobre essa política, e publicamos nossos resultados em um relatório para o Instituto Cato, um centro de estudos em Washington. Os resultados foram claros e impressionantes: a mudança radical na legislação sobre drogas era um sucesso fundamental e inegável.
Portugal passou os anos 1990 (como a maior parte dos países ocidentais) afundado em overdoses e outras formas de violência e doenças ligadas às drogas. Mas uma vez que o país deixou de processar os usuários de drogas e tratá-los como criminosos, ascendeu vertiginosamente em praticamente todos os índices. Esse resultado representou um forte contraste em relação aos países que continuaram a seguir uma abordagem rígida de criminalização: quanto mais eles prendiam viciados e praticavam “guerra às drogas”, mais os problemas com drogas pioravam.
Com todo o dinheiro que antes se desperdiçava em Portugal para processar e prender usuários de drogas agora liberado para os programas de tratamento, e com o governo sendo percebido com confiança em lugar de medo, viciados considerados irrecuperáveis se transformaram em histórias de sucesso de estabilidade e saúde, a as mensagens antidrogas do governo passaram a ser ouvidas.
O aumento esperado nas taxas de uso de drogas não aconteceu; em algumas categorias relevantes, o uso, ao contrário, diminuiu. O estudo de 2009 assim concluiu: “os dados mostram que, com base em praticamente todas as métricas, o formato da descriminalização em Portugal foi um sucesso retumbante”.
“Os dados mostram que, com base em praticamente todas as métricas, o formato da descriminalização em Portugal foi um sucesso retumbante”.
Esse fim de semana, o colunista do New York Times Nicholas Kristof, em Lisboa, voltou a esses dados, agora de forma ainda mais ampla e conclusiva do que em 2009. Suas conclusões – em um artigo entitulado “como vencer a guerra às drogas” – foram ainda mais fortes que as do relatório Cato de oito anos atrás: Portugal definitivamente venceu a discussão sobre como a proibição das drogas é ineficaz, irracional e contraproducente.
O fundamento para essa conclusão: o evidente sucesso de Portugal com a descriminalização, comparado aos terríveis fracassos de países como os EUA (e o Brasil), que continuam a tratar o vício em drogas como um problema criminal e moral, e não de saúde. Kristof escreveu:
Depois de mais de quinze anos, fica evidente qual das abordagens teve melhores resultados. A política de drogas dos Estados Unidos fracassou espetacularmente. O número de norte-americanos mortos no ano passado por overdose – aproximadamente 64 mil – equivale à soma do total de mortos nas guerras do Vietnã, do Afeganistão e do Iraque.
Em contraste, Portugal pode ter conseguido vencer a guerra às drogas – colocando um ponto final nela. Atualmente, o Ministério da Saúde estima que apenas cerca de 25 mil portugueses usam heroína, comparados aos aproximadamente 100 mil antes do início dessa política.
O número de portugueses mortos por overdose despencou mais de 85% antes de voltar a subir um pouco, na esteira da crise econômica europeia dos últimos anos. Ainda assim, a taxa de mortalidade por drogas em Portugal é a mais baixa na Europa Ocidental – um décimo da taxa da Grã-Bretanha e da Dinamarca – e cerca de 1/50 dos últimos números dos EUA.
Kristof resumidamente identificou uma das principais razões para esse sucesso: “é incomparavelmente mais barato tratar as pessoas do que mantê-las presas”. Há, porém, outros motivos relevantes, incluindo o importante fato de que, no que se refere aos esforços para persuadir os viciados a buscar tratamento, “a descriminalização torna isso bem mais fácil, porque as pessoas deixam de ter medo de ser presas”.
Talvez a evidência mais convincente para destacar o sucesso de Portugal não sejam os dados empíricos, mas a realidade política: embora a lei tenha sido bastante controversa quando surgiu, dezesseis anos atrás, atualmente não há facções políticas se mobilizando por sua revogação e um retorno à proibição.
Isso é de vital importância para os cidadãos de qualquer país que continue a tratar usuários de drogas e viciados como criminosos. É inconcebível destruir famílias, separar à força as crianças de seus pais encarcerados e transformar viciados em drogas em ex-presidiários não empregáveis, especialmente se os dados mostram que essas políticas atingem os resultados opostos aos que alegam buscar. Como o repórter da Folha Plínio Fraga escreveu ontem, se o país quer resolver seus problemas de drogas, “O Brasil precisa descobrir Portugal”.
À parte as questões morais, a violência relacionada ao tráfico de drogas que hoje varre o Brasil, em especial a terrível guerra que atinge a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro – que há poucos anos foi declarada “pacificada” – torna essas questões de especial urgência para os brasileiros.
O Brasil tem presenciado repetidas ondas de violência nas favelas de suas maiores cidades, muitas das quais são controladas, não pelo governo, mas por facções do tráfico armadas até os dentes. A guerra dessa semana, no entanto – e é de guerra que se trata – que atinge a Rocinha, localizada no meio da elegante Zona Sul do Rio de Janeiro, é especialmente chocante. Facções rivais “invadiram” a favela e estão em plena guerra pelo controle do tráfico de drogas, forçando, nesse processo, escolas e lojas a fecharem, e moradores a se esconderem em suas casas.
Diante da violência relacionada às drogas, é tentador aderir à solução que parece mais óbvia: uma guerra ainda maior contra as drogas, mais traficantes e usuários na prisão, mais polícia, mais proibição.
Aqueles que defendem essa abordagem querem que as pessoas sigam uma linha de raciocínio simplória: a causa dos problemas relacionados às drogas, tais como a violência do tráfico, são as drogas. Portanto, precisamos acabar com elas. Quanto mais problemas tivermos com as drogas, mais agressivamente precisamos livrar a sociedade delas e daqueles que as comercializam e usam.
Essa mentalidade, porém, está fundada numa falácia óbvia e trágica: a saber, que a guerra às drogas e a criminalização eliminarão as drogas ou reduzirão sua disponibilidade. Décadas de fracasso comprovam que isso não vai acontecer; na verdade, o que ocorre é o contrário. Como os EUA, o Brasil prendeu centenas de milhares de pessoas por crimes relacionados às drogas – em regra, pobres e não brancos – e o problema só piorou. Qualquer pessoa com um mínimo de racionalidade seria forçada a admitir que essa lógica é falsa.
Apoiar uma política fracassada na esperança de que, um dia, ela magicamente funcione, é a definição da irracionalidade. No caso das leis contra as drogas – que geram miséria e sofrimento – não é apenas irracional, mas também cruel.
Um relatório de 2011 da Comissão Global de Política sobre Drogas (Global Commission on Drug Policy) – da qual participam diversos líderes mundiais, incluindo o ex-Secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan e o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso – examinou todos os dados relevantes e resumiu: “A guerra global às drogas fracassou, com consequências devastadoras para indivíduos e sociedades ao redor do mundo”.
O fato principal dessa conclusão é de vital importância. A causa essencial de todas as patologias relacionadas às drogas – em especial a violência do tráfico que está sufocando a Rocinha – não são as drogas, mas a política de criminalizá-las e a guerra que se trava em seu nome.
A natureza das drogas – seu tamanho pequeno, a facilidade de traficá-las, a necessidade natural que os seres humanos têm delas – significa que não poderão ser eliminadas ou significativamente reduzidas à força. Apenas mudanças no comportamento humano, que só podem acontecer com suporte de tratamento profissional continuado, podem fomentar essa melhora. O único efeito da criminalização das drogas, além do imenso desperdício de recursos humanos e financeiros para prender viciados, é fortalecer e enriquecer os traficantes de drogas, assegurando que os lucros pela venda de um produto ilegal permaneçam irresistivelmente altos.
Por essa razão, os mais dedicados opositores à legalização das drogas ou à sua descriminalização são os próprios traficantes. Nada eliminaria mais rapidamente ou de forma mais definitiva o poder das facções do tráfico – tais como as que hoje empreendem a sangrenta batalha pelo controle da Rocinha – que o fim da proibição às drogas. Os traficantes, experientes homens de negócios, sabem muito bem disso.
“Os mais dedicados opositores à legalização das drogas ou à sua descriminalização são os próprios traficantes.”
Em 2016, o jornalista Johann Hari, autor de um dos mais influentes livros sobre o vício em drogas, escreveu para o Huffington Post um artigo intitulado: “A única coisa que traficantes e cartéis temem é a legalização”. Como disse ele:
Quando se criminaliza uma droga para a qual existe um grande mercado, ela não desaparece. O comércio é simplesmente transferido de lojas licenciadas, farmacêuticos e médicos para traficantes armados. Para proteger seu nome e suas rotas de suprimento, esses traficantes se armam – e matam qualquer um que os atrapalhe. É possível ver isso com facilidade nas ruas das regiões pobres de Londres ou de Los Angeles, onde gangues de adolescentes trocam facadas e tiros pelo controle sobre as margens de lucro de 3.000% que o tráfico oferece.
Temos uma perfeita analogia histórica que prova esse argumento: a proibição do álcool nos EUA na década de 1920. Quando o álcool foi tornado ilegal, ele não desapareceu. O controle da sua venda e distribuição apenas trocou de mãos: do supermercado da esquina para gangues violentas como as que Al Capone ficou famoso por chefiar.
Em outras palavras, tornar o álcool ilegal não impediu as pessoas de consumi-lo. O que a proibição fez foi fortalecer cruéis gangues do crime organizado, dispostas a fazer qualquer coisa ou matar qualquer um para proteger os enormes lucros da venda ilegal de álcool.
O que finalmente eliminou as gangues não foi a polícia, nem a prisão de traficantes ou alcoólatras: durante a proibição, ou as gangues subornavam os policiais, ou os matavam. O que acabou com as gangues foi a re-legalização do álcool: ao regular a venda de álcool, o fim da proibição tornou essas gangues irrelevantes, e elas desapareceram.
Traficantes violentos não têm medo da guerra às drogas; pelo contrário, como lembra Hari, eles precisam dela. É a criminalização das drogas que torna seu negócio tão rentável. Hari cita o relato de um experiente oficial do combate às drogas nos EUA: “Em uma das conversas gravadas clandestinamente, um dos chefões de cartel, Jorge Roman, manifestou sua gratidão pela guerra às drogas, que chamou de “fraude sobre os pagadores de impostos norte-americanos” que era “na verdade boa para os negócios”.
Em 2015, Danielle Allen, uma cientista política da Universidade de Harvard, escreveu um artigo de opinião no Washington Post com o título “Como a guerra às drogas cria a violência”. Nesse artigo, ela explica que uma das razões fundamentais para “descriminalizar as drogas decorre de como a guerra às drogas fomenta os crimes violentos, o que por sua vez leva ao encarceramento e gera outros resultados sociais negativos”. Como ela comparou: “Não é possível mover o equivalente a cem bilhões de dólares de um produto ilegal sem um bom tanto de agressões e homicídios. Não é algo que deveria ser difícil de explicar ou entender.”
Por que a Rocinha está repleta de armas e controlada por traficantes capazes de tamanha violência? Por que um influente político brasileiro, ligado a algumas das mais importantes figuras do país, pode empregar um piloto que foi pego transportando milhões de dólares em cocaína num helicóptero de propriedade desse político, sem que ninguém sofra consequências?
A resposta é simples: porque as leis que proíbem as drogas garantem que o tráfico seja extremamente rentável, o que por sua vez garante que os grupos de criminosos organizados irão se armar e matar para controlá-lo. Situada no meio da Zona Sul e com saídas acessíveis, a Rocinha será inevitavelmente um refúgio das drogas para turistas ricos, profissionais de classe média e viciados empobrecidos. Os grandes montantes de lucro gerados pela guerra às drogas garantem que as forças policiais estarão não apenas em inferioridade de armamento, mas também tão corrompidas que seus esforços inevitavelmente fracassarão.
É inegável que é a própria guerra às drogas que causa – e não impede – a violência relacionada às drogas.
Se você está horrorizado pela violência na Rocinha ou em outros lugares semelhantes pelo mundo, a última coisa que deveria fazer é apoiar políticas que fomentam a violência: a saber, a criminalização e a “guerra às drogas”. Fazer isso seria como protestar contra o câncer de pulmão encorajando as pessoas a fumar. Os dados atuais são suficientes para afirmar com confiança que quem apoia a criminalização das drogas estimula violência relacionada a elas e os problemas associados de vício e overdose.
Pode parecer paradoxal a princípio, mas os dados não deixam dúvida: a única forma de evitar a violência como ocorre na Rocinha é promover a completa descriminalização. Não precisamos mais especular sobre isso. Graças a Portugal, os resultados estão aí, e não poderiam ser mais claros.
David Miranda é marido do co-fundador do Intercept, Glenn Greenwald, e Vereador do Rio de Janeiro (PSOL)
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