Há algo de perverso no fato de estar nas mãos do presidente Donald Trump — esse exuberante e extremamente exitoso inventor de teorias da conspiração, além de profundo ignorante de história dos Estados Unidos – a decisão sobre a divulgação dos arquivos confidenciais que restam sobre o assassinato de seu antecessor John F. Kennedy.
Em 1992, o Congresso americano aprovou, e o então presidente George H.W. Bush sancionou, a lei John F. Kennedy Assassination Records Collection Act. A iniciativa foi provocada pelo filme do diretor Oliver Stone sobre o assassinato, que tinha sido lançado um ano antes, despertando enorme curiosidade na população. A lei determinou que os arquivos relacionados ao crime só poderiam ser divulgados após 25 anos da promulgação da lei, em 26 de outubro de 2017, esta quinta-feira.
Órgãos federais contestam a divulgação dos documentos com o argumento de que se trata de “perigo evidente para Forças Armadas, operações de inteligência, cumprimento da lei, ou mesmo para o bom decurso das relações exteriores”, aspectos que “suplantam o interesse público em questão”. Mas, de acordo com a própria lei, a palavra final é do chefe do Poder Executivo do país. Em outras palavras, muito do que ainda esperamos descobrir sobre o assassinato de JFK depende de Trump.
Atualmente sob a guarda do Arquivo Nacional, 113 mil páginas contêm extenso número de citações a Cuba e à antiga União Soviética, de acordo com buscas de metadados. Dois documentos divulgados pelo ex-agente da Agência Nacional de Segurança (NSA), Edward Snowden, e publicados pela primeira vez nesta quarta-feira (25), evidenciam ainda mais o afinco com que os serviços de inteligência guardavam informações sobre o potencial papel de Cuba no assassinato, indicando que durante décadas a NSA manteve em segredo os esforços para monitorar as comunicações de agentes cubanos logo após o episódio.
Detalhes sobre o trabalho de coleta de informações contra Cuba pela inteligência norte-americana, embora sejam fatos do passado, ganham relevância singular no momento atual, com o novo “esfriamento” das relações diplomáticas entre os dois países e a recente divulgação de documentos revelando que agentes da Agência Central de Inteligência (CIA) acreditavam que a investigação sobre a morte do presidente não prestou devida atenção aos contatos do assassino, Lee Harvey Oswald, em Cuba.
O potencial sensacionalista da divulgação não passou despercebido pelo presidente americano. Durante o fim de semana, ele tuitou: “Sujeito ao recebimento de informações adicionais, permitirei, como presidente, que sejam abertos os arquivos há muito tempo confidenciais e bloqueados de JFK”. Entretanto, um funcionário do Conselho de Segurança Nacional disse, na semana passada, ao jornal Washington Post que agências governamentais já solicitaram a Trump que mantenha em sigilo parte do material.
Jefferson Morley, ex-repórter do Washington Post e autor do livro “Our Man in Mexico: Winston Scott and the Hidden History of the CI” (“Nosso Homem no México: Winston Scott e a história oculta da CIA”, em tradução livre), acredita que as revelações mais substanciais dos documentos provavelmente incluirão detalhes das operações da CIA na Cidade do México e das operações de vigilância que a agência fez sobre Oswald durante o tempo em que passou na capital mexicana, às vésperas do assassinato. Morley não espera nada bombástico da divulgação, para descontentamento de parte da população cujo fascínio por uma grande conspiração de assassinato fala mais alto do que o relatório final de aproximadamente 900 páginas da Comissão Warren, entidade governamental criada logo após a morte de JFK para investigar o crime durante um ano. A incredulidade do público em relação às conclusões da comissão — de que Oswald agiu sozinho e que não foi encontrada evidência de conspiração doméstica ou internacional — perdura até hoje. De acordo com pesquisa realizada em 2013 pelo Washington Post e pelo canal ABC News, mais de 60% dos norte-americanos acreditam que Oswald participou de uma grande conspiração para matar o presidente.
Embora a Comissão Warren tenha examinado as potenciais conexões de Oswald com Cuba, a conclusão de que não houve conspiração internacional acabou evitando futuras investigações oficiais sobre possível envolvimento da ilha no assassinato. A falta de inquérito formal acabou por alimentar a teoria de que o crime fora arquitetado por Fidel Castro. Um envolvimento por parte de Cuba contradiria o relato dado repetidas vezes pelo jornalista francês Jean Daniel, que estava com Castro quando ele recebeu a notícia do assassinato de Kennedy. De acordo com artigo escrito por Daniel meses depois do episódio, no jornal The New Republic, o líder revolucionário almoçava em sua casa de praia em Varadero, quando o informaram de que JFK havia sido baleado: “Es una mala noticia” – que má notícia – repetiu três vezes Castro, ainda sem saber se Kennedy havia sobrevivido ao tiro.
É provável que Castro temesse que o sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, fosse ser mais simpático à ala mais belicosa do gabinete de JFK. Sua preocupação tinha mesmo fundamento: a crise quase catastrófica entre Estados Unidos e União Soviética envolvendo os mísseis instalados na ilha caribenha ocorrera pouco mais de um ano antes. E o Secretário de Defesa Robert McNamara e o Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos já avaliavam a possibilidade da operação que ficaria conhecida Northwoods, pensada para ser uma sucessora da invasão fracassada da Baía dos Porcos. Northwoods previa agressões paulatinas e até ataques terroristas contra cidadãos norte-americanos e imigrantes cubanos. O objetivo era fazer a responsabilidade por tais atos recair sobre Castro, de acordo com o livro “Body of Secrets: Anatomy of the Ultra-Secret National Security Agency” (“Corpo de segredos: anatomia da ultrassecreta Agência de Segurança Nacional”, em tradução livre), escrito pelo repórter James Bamford.
Mesmo depois das investigações do governo descartarem a potencial culpa de Cuba pela morte de Kennedy, as informações de inteligência coletadas por espiões norte-americanos sobre possível envolvimento cubano e soviético eram tão sensíveis que tiveram de permanecer confidenciais por décadas, de acordo com os documentos revelados por Snowden.
O primeiro desses documentos, um guia classificatório sobre o assassinato de JFK, datado de 23 de junho de 2000, faz extensa referência às operações de inteligência por meio de captação de sinais eletrônicos envolvendo a crise dos mísseis cubanos, cujos detalhes também foram elaborados em um segundo guia publicado em 30 de junho de 2008.
Dentre os detalhes considerados “ultrassecretos”, estão os esforços da NSA para selecionar e interceptar comunicações de diplomatas e espiões cubanos, bem como os codinomes dos agentes cubanos cujas conversas haviam sido grampeadas.
Por outro lado, o guia sobre a crise dos mísseis cubanos aponta que a NSA tinha como alvo as conversas de funcionários do governo soviético, sugerindo algo mais abrangente do que apenas a escuta de determinados diplomatas e espiões do regime. A proveniência do documento indica que essa informação permaneceu confidencial até 2008.
Passados tantos anos, é inevitável que se questione por que a NSA continua tão determinada a manter os nomes dos agentes cubanos e os mecanismos de inteligência dos anos de 1960 confidenciais. Questionada pelo The Intercept, a agência não se pronunciou a respeito. Segundo o professor de políticas públicas da American University, de Washington, William LeoGrande, “talvez seja porque os agentes e diplomatas cubanos envolvidos continuem na ativa. Afinal, os cubanos que integraram o governo revolucionário eram muito jovens na época”, opinou ele, que também é coautor de “Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations between Washington and Havana” (“Comunicação extraoficial com Cuba: a história oculta das negociações entre Washington e Havana”).
Se os agentes cubanos em questão continuam na ativa ou não, o fato é que ainda não está claro por que a NSA decidiu manter sigilosas as informações sobre as operações de inteligência por interceptação e decodificação de sinais eletrônicos, realizadas nos anos 1960. Talvez porque alguns métodos ainda estivessem sendo usados quando o guia foi produzido, quase uma década e meia antes da iniciativa do ex-presidente Barack Obama de normalizar as relações com o governo cubano. É provável que Trump queira mantê-las sob seu controle, já que sua gestão vem esfacelando os esforços de Obama. Em discurso feito em Miami em junho, Trump prometeu voltar atrás na normalização das relações com Cuba, garantiu reforço mais severo do embargo de meio século e declarou banimento de qualquer forma de diálogo com entidades administradas pelas Forças Armadas cubanas, que controlam de 50% a 60% da economia da ilha. Nesse mesmo pronunciamento, ele elogiou os veteranos que participaram da invasão da Baía dos Porcos; um grupo deles, a Brigada 2506, declarou apoio formal à candidatura de Trump à presidência no ano passado. Os esforços diplomáticos da gestão Obama se deterioraram ainda mais nas últimas semanas, após misteriosos ataques acústicos terem afetado espiões e diplomatas norte-americanos em Cuba e impulsionado o Secretário de Estado, Rex Tillerson, a reduzir em 60% o pessoal da embaixada dos EUA em Havana e a expulsar 15 diplomatas cubanos da embaixada em Washington.
O desejo da NSA nas últimas décadas de manter em sigilo detalhes de antigas operações de inteligência evidencia o conteúdo altamente sensível de alguns documentos a respeito do assassinato de Kennedy. A futura divulgação, de acordo com Morley, inclui arquivos sobre agentes de alto escalão dos anos de 1960 e 1970, bem como centenas de páginas sobre os ladrões de Watergate. “Sempre acreditei que esses documentos são delicados e constrangedores demais (…), as agências não vão parar de solicitar adiamentos consecutivos”, declarou Morley. Parte do constrangimento tem relação com laços dos próprios serviços de inteligência com os cinco ladrões de Watergate, entre eles, ex-agentes da CIA ou recrutados.
Em resposta aos questionamentos de The Intercept sobre se a CIA realmente solicitou que documentos permaneçam em sigilo, a agência respondeu que “continua comprometida no processo de determinar quais os próximos passos mais apropriados para qualquer informação da CIA ainda não divulgada”.
Relatos de que várias agências governamentais pediram a Trump que exclua certos documentos sobre o episódio JFK da lista a ser liberada trazem alívio para a relação antagônica entre o presidente e os órgãos de inteligência. Pelo menos, as prioridades dessas agências parecem óbvias. Como mencionou Morley, “se a CIA tiver a chance de manter alguma informação sensível confidencial, ela a manterá”.
Documentos publicados neste artigo:
- Guia dos arquivos confidenciais e não confidenciais da NSA sobre o assassinato de JFK
- Guia de arquivos da NSA sobre a Crise dos Mísseis Cubanos
Tradução: Flávia Villela
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