Quinhentos anos se passaram desde que a Reforma marcou a Idade Moderna. E, dos muitos sentidos que lhe dão, talvez a sua grande contribuição tenha sido a capacidade de quebrar a hegemonia. Foi no enfrentamento do poder totalitário da Igreja Católica, que se posicionava como “proprietária” da salvação, que o movimento liderado por Lutero abriu caminho para uma espécie de reinvenção da fé cristã, para outras possibilidades de se acessar e seguir Deus e Jesus Cristo.
Talvez, como bem disse Hannah Arendt em “A Promessa da Política”, não fosse nem o que Lutero esperava, porque sua ruptura com o poder papal “não foi um término, uma vez que contestou somente a autoridade da Igreja Católica, mas não a própria trindade religião, autoridade e tradição”. Desde seus primeiros anos de vida, a Reforma proposta por Lutero teve de enfrentar, contra si mesma, a crítica ao risco de reproduzir o apego ao poder inquestionável, traindo o que o próprio monge criticava na Igreja Católica.
Esse espírito fundador da Reforma, de desafiar hegemonias, não se extinguiu. Ao abrir espaço para que diversas igrejas escrevam o seu próprio caminho, desenhem sua própria trajetória e estabeleçam outras formas de vivenciar Deus e o Evangelho no mundo, a Reforma contribuiu decisivamente para a pluralidade religiosa. Forçou a convivência com a diversidade, rejeitando de uma vez por todas a homogeneização da compreensão e da “aplicação” dos textos bíblicos.
Essa diversidade marca a história das igrejas protestantes no Brasil. Ao mesmo tempo em que tivemos missionários batistas e presbiterianos que vieram dos Estados Unidos, a partir do século XIX, para poder continuar a ter escravos, temos também o exemplo do pastor Robert Kalley, que, em 1865, fez uma exortação pública à sua igreja, no Rio de Janeiro, condenando os que ainda possuíam escravos.
Não somos iguais, o direito à diversidade e à existência da pluralidade deve ser nosso maior horizonte. Qualquer um que se aproxima do universo evangélico partindo de um olhar homogeneizador tende a fracassar na sua percepção. E uma das razões para isso é que o olhar generalista costuma se ater ao campo hegemônico, que, por definição, tem maior visibilidade, seja pela mídia que possuem, pelo escândalo que fazem ou simplesmente pelo medo e a intimidação causados pelo eco dos gritos que vociferam em seu nome.
Olhar o universo evangélico como um universo único, fechado e com as mesmas características e posicionamentos em todas as direções já deixou de ser um equívoco, tornou-se preguiça. Porque as vozes dissonantes, apesar de silenciadas ou invisibilizadas por motivos diversos, continuam aí para quebrar o peso e a força da hegemonia. Ver os evangélicos todos do mesmo jeito, portanto, é subscrever ao projeto moralista-fascista-conservador-hegemônico (inclusive cristão, obviamente).
A estigmatização do universo pentecostal e, em especial, do neopentecostal — que tem, em sua base, membros pertencentes à camada mais pobre e periférica da população — acaba por mascarar inclusive o racismo e a desigualdade de classes como elementos fundamentais, frutos da nossa história colonial e escravocrata.
Nossas igrejas históricas (como a presbiteriana, a anglicana e a luterana), filhas “legítimas” da Reforma, foram, em geral, mais racistas, seguindo o fluxo de nossa sociedade colonial/imperial, embora mais atuantes socialmente e com uma contribuição inquestionável para a educação e a saúde no país.
Igrejas pentecostais e neopentecostais reconheceram mais negros e negras como pessoas, dignas do pastorado, da liderança eclesial. Mulher preta e pobre, semianalfabeta, como pastora e profetisa, tendo voz? A igreja pentecostal que surgiu a partir dos anos 1910 e 1920 nem fazia ideia do que era empoderamento. No entanto, nas décadas seguintes, as pentecostais foram crescendo com ímpeto mais individualista, moralista, sem muito interesse pelo contexto social e político que segregava pobres e negros. Assim, não conseguiram escapar da herança racista que demonizava incisivamente a cultura e, evidentemente, as religiões africanas.
Hoje a bancada evangélica no Congresso Nacional sequestra o sentido do “ser evangélico”. Cada fala/projeto/proposta/ação/reação desse grupo monopoliza os holofotes, e aí não resta muita luz para iluminar qualquer movimento contrário. Assim, a bancada acaba se apropriando ilegitimamente do posto de representante “legítima” da narrativa evangélica.
Para celebrar esses 500 anos de Reforma, é crucial resgatar o legado da diversidade, da pluralidade e da quebra da hegemonia para levantar outras discussões e ouvir outras vozes, que não sejam nem sequestradas pela direita conservadora, nem hostilizadas ou estigmatizadas pela esquerda progressista/libertária.
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