Cheguei à casa do Benício, às 9h, no dia 11 de outubro, com o desafio de entender a sua linguagem e a sua maneira de ver o mundo para contar sua história. As melhores lembranças desse dia são o sorriso dele e os curtos passeios que fizemos, de mãos dadas.
Essas demonstrações de afeto são conquistas recentes do menino de 9 anos, autista e portador da Síndrome de Dravet – doença rara causada por uma mutação genética que gera um quadro de epilepsia grave. E só foram possíveis graças ao esforço da sua família e ao uso do canabidiol (CBD), extraído da cannabis, planta popularmente conhecida como maconha.
Benício teve sua primeira convulsão aos 5 meses. Foram 40 minutos sem que ninguém soubesse dizer o motivo dos espasmos, lutando contra o tempo para que o bebê sobrevivesse. Desse dia até os seus 6 anos, foram 48 internações.
Com 2 anos, o menino dizia “um, dois e já”, “mamãe” e “papai”. Meses mais tarde, Beni, como a sua família o chama, se calou. Sua linguagem passou a ser apenas de gestos que seu pai, Leandro Ramires, teve que aprender. É ele quem tem a guarda do menino.
Leandro conta que um momento marcante nessa trajetória de idas e vindas aos hospitais de Belo Horizonte foi em um dia de intensas crises epilépticas que levaram Beni a ter uma parada cardiorrespiratória de 12 minutos, deixando o garoto em coma por quase duas semanas.
“Foi quando ele recebeu sua primeira extrema-unção, por ter ficado 12 dias sem responder a comando algum. O hospital me chamou para saber se eu gostaria de doar os órgãos. Ele recebeu a extrema-unção de manhã. À tarde, quando ele foi fazer o eletro[encefalograma] para saber se de fato ele estava vivo ou não, acordou como se nada tivesse acontecido. Ele continuou passando mal, chegando a tomar 25 comprimidos por dia. Mas, ainda assim, esse dia foi incrível!”, lembra o pai.
Leandro é médico cirurgião oncológico e mastologista, o que ele considera ser um dos motivos do filho ainda estar vivo depois de tantas internações. Ele conta que, durante o carnaval de 2012, Benício estava internado. Ligaram para Leandro porque não havia médico para puncionar um acesso venoso central no menino.
“Eu estava muito preocupado, porque ele estava em crise, e eles me ligaram perguntando se eu conhecia algum cirurgião vascular. No fim das contas, não tinha ninguém pra pegar a veia. Eu mesmo fui pra lá e peguei uma jugular dele, numa das cenas médicas mais complicadas da minha vida. Depois que o acesso pegou, foi dada a medicação, parou a crise, ele foi entubado e entrou no respirador. Eu fui para o banheiro do hospital. Nossa! Eu tive que pedir outra roupa para ir embora. A tensão era tanta que eu chorava, vomitava, fazia tudo ao mesmo tempo”, conta.
Nos últimos 3 anos, só uma internação
Este cenário levou Leandro a buscar alternativas para amenizar o sofrimento do filho. Até chegar à maconha. O uso de substâncias derivadas da erva diminuiu drasticamente as internações: nos últimos três anos, Benício foi internado apenas uma vez, durante seis horas.
No início, as dificuldades para adquirir o canabidiol fizeram com que Leandro e muitas famílias no Brasil importassem o medicamento de maneira ilegal. Na época, a legislação não permitia o uso e a importação, tornando crime a aquisição de um remédio derivado de uma planta proibida no país.
A síndrome do Benício fez de seu pai um militante da causa canábica. Com a ajuda de outras pessoas que vivem situações semelhantes, o médico criou a Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal – AMA+ME, em dezembro de 2014. Os principais objetivos são lutar pela mudança da atual política de drogas do país, implementar o cultivo coletivo para pacientes e produzir estudos científicos.
Em julho de 2016, a organização, em parceria com a empresa americana CBDRx, inaugurou no Brasil um estudo para entender melhor os efeitos do canabidiol sobre os sintomas provocados pelo Transtorno do Espectro Autista (TEA).
A empresa fica em uma fazenda no estado americano do Colorado, e desenvolve produtos medicinais a partir da Cannabis Sativa. Através da clonagem de plantas, a CBDRx desenvolveu uma espécie de maconha com alto índice de canabinóides e baixo teor de THC (tetra-hidrocanabinol) – princípio psicoativo da maconha. Atualmente, o custo do frasco do extrato produzido por eles – 60 cápsulas de 50 mg de canabidiol – é de 300 dólares, aproximadamente R$ 1 mil, sem contar os valores do frete.
Pesquisa comprova melhoras
A pesquisa foi feita com 18 crianças. Quinze permaneceram até o fim do estudo: 13 do Pará, um de Brasília e Benício, de Belo Horizonte. Três tiveram o tratamento suspenso antes do primeiro mês, devido ao aumento da frequência e intensidade de estereotipias (comportamentos repetitivos), de crise psicocomportamentais e de distúrbios do sono, conforme apontam os resultados finais do estudo, ao qual The Intercept Brasil teve acesso exclusivo.
Durante nove meses, a empresa doou o óleo de cannabis para as crianças participantes. As remessas foram enviadas aos pais, que tinham a responsabilidade de observar os efeitos da substância e as reações de seus filhos, que também foram acompanhados por Leandro, e pelos parceiros da organização, o médico epidemiologista Paulo Fleury e o neurocientista e Professor da UNB Renato Malcher Lopes.
A partir do registro mensal das características e resultados da evolução de cada paciente, foi possível observar que 76,5% apresentaram melhora na hiperatividade e no déficit de atenção e concentração. Para 72,2%, houve redução dos comportamentos repetitivos e/ou agressivos. E ainda: em 69,2%, observou-se evolução no desenvolvimento motor; 50% ganharam mais autonomia na vida diária; 61,1% passaram a interagir e a se comunicar mais com as pessoas e o ambiente à sua volta; 72,2% apresentaram alguma evolução nos processos de aprendizagem; o sono de 85,7% melhorou; 64,3% conseguiram parar ou reduzir a medicação neuropsiquiátrica.
E o dado mais impressionante: 100% dos pacientes alcançaram um controle sustentável das convulsões – o que significa que o número de crises diminuiu em pelo menos 50% (em alguns casos, os pacientes simplesmente não tiveram mais nenhuma convulsão).
Como presidente da AMA+ME, Leandro afirma que “há necessidade premente de estimular estudos clínicos, científicos e metodológicos para se ter total noção desse benefício e quantificá-lo”.
“Essas crianças tiveram resultados incríveis que hoje a gente tem dificuldade de manter”
Ele ainda explica que não existe um tratamento específico para o autismo: “O que precisa haver com o paciente são medidas socioeducativas, comportamentais e educacionais”. Os medicamentos tratam apenas os sintomas derivados do transtorno de que sofrem Benício e as outras 14 crianças. “O importante é que essas manifestações neuropsíquicas melhoram muito com a suplementação do extrato de cannabis rico em canabidiol. Essas crianças tiveram resultados incríveis que hoje a gente tem dificuldade de manter, porque isso se restringe a dinheiro”, lamenta.
Para Cassio Eduardo Ismael, representante da CBDRx no Brasil, os efeitos obtidos pelo estudo foram tão impressionantes que ele não descarta a possibilidade de a empresa investir em outras pesquisas similares no país. “Ainda tem muito a ser estudado sobre os efeitos do canabidiol, confesso que houve resultados que surpreenderam. Tem um caso de uma criança que voltou a falar!”, exemplifica.
Tratamentos sob ameaça
O estudo e, consequentemente, as doações de óleo de cannabis terminaram em junho deste ano. Com isso, os 13 pacientes do Pará estão prestes a interromper o tratamento.
As famílias paraenses chegaram a receber doações de produtores nacionais do óleo após o fim da pesquisa, mas agora o produto está acabando, e a condição financeira delas não permite dar continuidade ao tratamento. Atualmente, apenas uma dessas famílias conseguiu apoio jurídico gratuito, a fim de solicitar que o Estado forneça o CBD.
Leandro explica que o custo médio de um tratamento com extrato de cannabis rico em CBD pode variar de R$ 1.020,00 a mais de R$ 21 mil por mês, dependendo da quantidade utilizada. Além disso, ele afirma a necessidade de um acompanhamento de profissionais da saúde que possa garantir o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças.
“O custo com terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, fonoaudiólogos e demais especialidades, vai de R$ 4 mil a R$ 10 mil por mês. Isso é inacessível para quem depende do SUS e reside em áreas de risco social ou distantes de grandes centros. É importante dizer, no tocante a isso, que meu filho é privilegiado”, explica Leandro. É ele quem arca com todos os gastos terapêuticos de Beni.
Dificuldades na rede pública
Como o canabidiol não é considerado oficialmente um remédio, ele não faz parte da listagem de farmácia terapêutica. Sendo assim, o Sistema Único de Saúde (SUS) não é obrigado a fornecê-lo, embora algumas famílias tenham conquistado esse direito na justiça.
Apenas o Distrito Federal tem o canabidiol como remédio a ser fornecido pela rede pública para pacientes com epilepsia. Embora a legislação, aprovada em 2015, tenha surgido como uma possível solução para as famílias sem condições de arcar com o óleo de cannabis, na prática, não tem sido uma via fácil.
Atualmente, com a crise política e financeira do país, o governo do Distrito Federal alega não ter dinheiro para fornecer o produto. O analista de licitação, Fábio Virgulino, pai de Sabrina Filgueira, de 11 anos, criança diagnosticada com autismo e com uma síndrome que causa epilepsia refratária e dificuldades na coordenação motora, é um dos que penam com a falta do medicamento.
Sabrina passou a fazer uso do canabidiol em fevereiro de 2015. Em maio do mesmo ano, a família foi a primeira a conseguir na justiça que o governo do Distrito Federal fornecesse o CBD. Mas o produto só foi chegar à casa de Sabrina um ano depois — e isso, conforme conta Fábio, só porque um juiz “perdeu a paciência” com o governo e bloqueou o dinheiro para que a família pudesse comprar diretamente o produto por seis meses.
O extrato comprado em julho de 2016 durou até janeiro deste ano. Em junho, conseguiram uma nova leva do medicamento via governo do Distrito Federal. O lote durou 4 meses. Atualmente, a família está aguardando os trâmites para receber mais CDB.
“A gente faz de tudo para que não falte medicamento. A melhora foi muito grande pra minha filha”
“Quando o governo não cumpre, o juiz bloqueia o dinheiro deles e fornece [a verba] para comprarmos diretamente. Mas é um processo que dura meses. Aí a gente faz rifa, já fizemos duas na internet. Já usamos óleos clandestinos. A gente faz de tudo para que não falte medicamento. A melhora foi muito grande pra minha filha”, relata.
O que diz a legislação?
No Brasil, só é possível usar legalmente a maconha para fins medicinais com autorização da Anvisa, que, com a resolução RDC 17/2015, regulamentou a importação de produtos à base de canabidiol.
De acordo com as normas, o paciente precisa apresentar três documentos: receita médica, relatório médico e termo de responsabilidade e esclarecimento.
Em dezembro de 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) restringiu a prescrição de CBD a áreas da neurologia e psiquiatria. Mas muitos médicos prescrevem o CBD com base na resolução 38, do Ministério da Saúde. A regulamentação permite “o uso de medicamentos em pesquisa com resultados promissores”. No relatório médico, deve constar uma fundamentação médica que comprove a necessidade do uso de produtos à base de CBD e/ou THC. O termo de responsabilidade e esclarecimento é um documento que o profissional e o paciente assinam se responsabilizando pelo uso de um produto não registrado no Brasil e sem a avaliação da Anvisa, se comprometendo ao uso estritamente pessoal.
No site da Anvisa, há um passo a passo para solicitar o produto.
E o que pode mudar?
Atualmente, tramita no Senado uma Sugestão Legislativa, a 25/2017, que visa à descriminalização do cultivo da maconha para uso pessoal. A proposta, cujo relator é o senador Sérgio Petecão (PSD-AC), foi de iniciativa popular através do portal e-Cidadania, e atualmente está em consulta pública. No dia 26 de outubro, aconteceu uma audiência pública, em Brasília, para se discutir a questão.
Também está em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5708, que questiona a atual Lei de Drogas – que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.
A ADI é de autoria do Partido Popular Socialista (PPS) e foi feita com o auxílio técnico da AMA+ME. A ação propõe a descriminalização da cannabis para fins medicinais e solicita à justiça “uma medida cautelar em caráter de urgência, para assegurar o plantio, cultivo, colheita, guarda, transporte, prescrição, ministração e aquisição destinada para os referidos fins da ação principal (o uso medicinal)”.
A iniciativa divide opiniões entre as organizações que militam por uma reforma na Política de Drogas. Alguns temem que o STF rejeite a ação e que isso desencadeie retrocessos na proposta que está em trâmite no Senado ou no que já foi conquistado no país em relação ao uso de cannabis.
Maurício Sullivan, coordenador jurídico da AMA+ME, especialista em Direito Constitucional e um dos advogados responsáveis pela redação da ação que está no Supremo, afirma:
“Se isso [a possibilidade de o STF rejeitar a ação] é uma preocupação pra mim? Sem dúvida. Eu quero que as pessoas tenham acesso ao medicamento canábico. Eu quero que as pessoas possam realizar o tratamento que elas necessitam. Se esse fantasma da decisão desfavorável existe? Ele existe! Se eu penso nele? Penso! Se eu acho que ele vai acontecer? Eu acho que não!”.
Recentemente, a Anvisa informou que está preparando um protocolo técnico que será disponibilizado para consulta pública, com o intuito de, até o fim do primeiro semestre de 2018, regulamentar o plantio da cannabis para pesquisa e produção de soluções medicinais.
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