*Esta reportagem foi atualizada às 15h15m do dia 8 de fevereiro com a resposta do Consórcio Ilha Pura.
Um balanço improvisado com uma corda e um pneu velho e uma gangorra feita com um tronco de madeira sobre uma base de três pedregulhos são a diversão de Vitória, uma criança que mora numa casa de madeira escondida entre árvores, uma das poucas que restam de uma colônia de pescadores às margens da poluída Lagoa de Jacarepaguá. Uma das principais avenidas que cortam a Zona Oeste do Rio de Janeiro separa o quintal onde ela brinca do megacondomínio vizinho, o Ilha Pura, parceria entre as construtoras Carvalho Hosken e Odebrecht e que foi usado durante a Olimpíada Rio 2016 como vila dos atletas. O que a menina não sabe é que ela deveria poder brincar lá dentro – onde há um parque com ciclovia, lagos, pistas de skate e patinação e oito quadras esportivas.
“Eu nem sabia que existia esse parque. Se estivesse aberto, é claro que seria uma boa opção de lazer para a gente e, principalmente, para as crianças”, diz o autônomo Sidney Luiz, pai de Vitória, que, sem poder pescar na lagoa, vende garrafas d’água.
Documentos obtidos por The Intercept Brasil no Tribunal de Contas do Município (por meio da Lei de Acesso à Informação) mostram que as empresas fizeram uma importante mudança no licenciamento da Vila Olímpica. Pela legislação, Odebrecht e Carvalho Hosken teriam que construir, como contrapartida social à prefeitura, ao menos três escolas municipais dentro do condomínio. Em vez disso, o consórcio negociou a construção do parque público, com 72 mil metros de área e que deveria ser aberto a qualquer pessoa, não somente a quem mora no empreendimento.
Só há um detalhe: pronto desde a época dos Jogos, ele não é público. Seguranças privados controlam o acesso e as grades do condomínio impedem a entrada de visitantes. Até mesmo as ruas que levam ao condomínio estão bloqueadas. Numa alça de saída da Avenida Salvador Allende – que separa a vila dos pescadores do Ilha Pura – há barreiras de concreto.
Cidade fantasma
A badalação das Olimpíadas passou. O Ilha Pura hoje parece uma grande cidade fantasma à espera de um milagre no mercado imobiliário que faça o grandioso projeto decolar. Ao todo, o complexo tem 3.604 apartamentos, de 2, 3 e 4 quartos, distribuídos pelos seus 31 prédios. Os preços das unidades variam, em média, entre R$ 1 milhão e R$ 2,5 milhões. Até o meio do ano passado, apenas 240 tinham sido vendidas, mas ainda não há ninguém morando. Tiveram que ser realizadas obras de readaptação após os Jogos.
O grande estoque de apartamentos disponível é um desafio para as incorporadoras e vem travando a construção de novos empreendimentos na região. Uma das tentativas mais recentes para que o Ilha Pura comece a desencalhar é um programa de financiamento com taxas mais atrativas para servidores públicos, que está sendo conversado entre a Caixa Econômica Federal e a prefeitura do Rio.
“Parque público destinado ao uso coletivo”
Em nota, a prefeitura – atualmente sob a batuta de Marcelo Crivella – confirmou que a zona do parque dentro do Ilha Pura é pública. Após ser informada pela reportagem de que ele está fechado, a assessoria afirmou em nota que “irá averiguar se há abusos por parte do condomínio no bloqueio de acesso à população”.
Apresentada à prefeitura em março de 2015 pela Odebrecht e pela Carvalho Hosken, a proposta de mudança na contrapartida ressaltava o que seria uma “boa intenção” das empresas:
“As requerentes vêm, mui respeitosamente,… solicitar que tal substituição recaia sobre um parque público destinado ao uso coletivo e à promoção da integração social, de forma a valorizar a identidade social e promover a prática de esportes, além de conferir opções de lazer e recreação aos habitantes locais”.
Desde 1984, o decreto municipal que regula o zoneamento urbano na cidade do Rio permite esse tipo de alteração contratual entre o município e as empreiteiras. No documento, as empresas destacavam ainda o alto investimento no parque, projetado pelo escritório de paisagismo Burle Marx: quase R$ 50 milhões, o que, segundo as construtoras, superaria em mais de 100% os recursos necessários para entregar os colégios.
A saída encontrada pelas construtoras foi uma tacada de mestre. Além de valorizar o condomínio, o parque – ainda que futuramente esteja aberto ao público – tende a ser frequentado basicamente pelos moradores dos apartamentos. Condomínios mais antigos, da Barra da Tijuca, têm escolas municipais em suas áreas comuns, frequentadas basicamente por crianças e adolescentes de baixa renda de comunidades no entorno.
Construtoras: Ilha Pura sem Habite-se
Em nota, a assessoria de imprensa do Consórcio Ilha Pura, que reúne Carvalho Hosken e Odebrecht, alegou que o parque e as vias públicas não podem estar abertos porque o condomínio ainda não possui o Habite-se da prefeitura, documento básico para atestar a conclusão da obra. Isso mesmo depois de ter abrigado milhares de atletas na Rio 2016.
“A abertura do Parque Ilha Pura e das vias, de acesso público e manutenção privada pela Associação de Moradores da Ilha Pura, está condicionada à emissão do primeiro Habite-se pelo Poder Municipal para os condomínios do empreendimento”, afirmou a empresa.
O consórcio informou ainda que os primeiros moradores devem chegar aos prédios entre abril e maio:
“O empreendimento foi estruturado para uma comercialização de longo prazo, de forma que seja possível contemplar uma curva de vendas coerente com o número de unidades e com a capacidade de absorção do mercado imobiliário local”.
Ainda estão para acontecer também medidas de compensação ambiental pela construção do complexo. A Secretaria municipal de Conservação e Meio ambiente informou que já solicitou projeto de recuperação da faixa marginal de proteção de um canal próximo ao condomínio, com plantio de espécies nativas da região.
Carência de vagas
Enquanto o parque e o condomínio seguem vazios, na região que os cerca a carência de vagas na educação é visível. Somente na área de Jacarepaguá, próxima ao Ilha Pura, a Defensoria Pública registra, desde o início do ano, uma média de 50 pedidos de intervenção judicial por dia para que pais possam tentar matricular seus filhos em creches e pré-escolas. Imensas filas vêm se formando nos mutirões realizados pelo órgão em toda a cidade.
Dorotea Santana, diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio, confirma a falta que novas escolas fazem na região:
“A gente quase não tem mais construção de unidades. As últimas foram durante a gestão do Eduardo Paes, e não foram muitas. Na comunidade da Cidade de Deus, por exemplo, que fica relativamente próxima do condomínio, há uma carência imensa de vagas”.
Outra iniciativa alardeada pela prefeitura como grande legado olímpico para a educação da cidade também não vingou. A Arena do Futuro, no Parque Olímpico, que abrigou partidas de handebol, seria toda desmontada para se transformar em quatro escolas municipais. Passado um ano e meio do fim das competições, porém, o ginásio continua por lá, intocado. A atual gestão informa que “ainda negocia com o Ministério do Esporte a desmontagem do equipamento”.
O legado do Ilha Pura, que deveria ser três escolas, virou um parque fechado.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?