Foi assim que aconteceu, conforme o registro taquigráfico da história.
Na noite da segunda-feira retrasada, 2 de abril, Luiz Inácio Lula da Silva estrelou um ato público na Lapa carioca. No palco do Circo Voador, o ex-presidente discursou mirando a posteridade:
“Eles não vão prender meus pensamentos, não vão prender meus sonhos. Se não me deixarem andar, vou andar pelas pernas de vocês. Se não me deixarem falar, falarei pela boca de vocês. Se meu coração deixar de bater, ele baterá no coração de vocês”.
(Em sua carta-testamento, de 1954, o presidente Getúlio Vargas se dirigira aos trabalhadores: “Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo a vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação”.)
No dia seguinte, antes de encerrar o Jornal Nacional, o apresentador William Bonner leu a notícia:
“E uma última informação. Sem citar o julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo amanhã, o comandante do Exército, general Villas Bôas, fez um comentário em repúdio à impunidade numa rede social. Ele escreveu: ‘Asseguro à nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e nas gerações futuras e quem está preocupado apenas em interesses pessoais’”.
(Sobreveio o protocolar “boa noite”. Com a intimidação e a chantagem do senhor das armas, a noite nada teve de boa. O general mencionou impunidade, mas não os impunes torturadores e carniceiros que serviram à ditadura. Ao retuitar a mensagem golpista de Eduardo Villas Bôas, o general Cristiano Pinto Sampaio, comandante da 16ª Brigada de Infantaria de Selva, citou o “consagrado historiador Gustavo Barroso”. Fascistoide antissemita, o galinha-verde Barroso notabilizou-se na década de 1930 como um dos próceres da Ação Integralista Brasileira.)
Na quarta, o empresário Oscar Maroni reiterou uma promessa: “Se o Lula for preso, até a meia-noite a cerveja é de graça”. O dono do Bahamas Hotel Club foi além: “Agora, se matarem ele, o mês todo a cerveja é de graça. Se matarem lá na cadeia”. Seus interlocutores exultaram.
(Logo o autoproclamado “magnata do sexo” retratou-se sobre a recompensa pela morte do ex-presidente. “Ontem eu estava num boteco, enchi um pouco a cara”; “eu estava bêbado”; “eu quero que ele fique vivo, [que] ele sofra”.)
Aos 46 minutos da quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento em que, por seis votos a cinco, negou habeas corpus a Lula no processo do triplex. Apesar de o inciso 57 do artigo 5º da Carta de 1988 determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Desprezaram a Constituição e fulminaram uma garantia individual. Falanges de direitistas extremados festejaram.
(Pegadinha da história: a sessão do STF terminou 50 anos depois de a ditadura proibir a Frente Ampla oposicionista, em 5 de abril de 1968.)
A pressa de Moro
Dali a horas, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores, esclareceu:
“A defesa do ex-presidente deve interpor um novo recurso de embargo de declaração. […] Esgotados os recursos na segunda instância, pode-se passar ao cumprimento da pena. Se forem interpostos esses novos embargos de declaração, uma vez eles sendo julgados, a partir daí o relator poderá comunicar ao juiz Sérgio Moro o cumprimento da decisão que já existe”.
(Repetindo: “[…] uma vez eles sendo julgados, a partir daí…”.)
Indagado sobre prazo para julgamento de novos embargos, Thompson Flores respondeu:
“Não há um prazo. […] Os embargos anteriores, os primeiros embargos de declaração da defesa do ex-presidente Lula foram julgados mais ou menos em trinta dias”.
Sem esperar um mês, nem sequer um dia, às 17h31 juízes do TRF-4 autorizaram Moro a executar a pena de Lula.
(Isto é, 16 horas e 45 minutos após a sessão do Supremo.)
Dezenove minutos depois, às 17h50, Moro decretou a prisão de Lula. Deu-lhe menos de 24 horas para se apresentar em Curitiba.
(Nunca, em processo da Lava Jato, Sérgio Moro havia sido tão apressado ao decretar a prisão para cumprimento de pena de réu solto, considerando a data em que ele o condenara. O juiz demora de dezoito a trinta meses. Com Lula, não esperou nem nove meses completos. Dois mil e dezoito é ano de eleição.)
Às 19h10, Lula chegou à sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. Milhares de militantes e simpatizantes acorreram, iniciando uma vigília.
O comício se estendeu até a madrugada da sexta-feira. Pelas duas horas, Lula acenou de uma janela.
(O petista dormiu lá, como dormira nas greves operárias que mudaram a história do Brasil na virada dos anos 1970 para os 1980.)
Às cinco da tarde da sexta venceu o prazo estipulado por Moro. A massa se esgoelou na contagem regressiva para o horário limite e desafiou: “Não tem arrego! Não tem arrego!”. Lula não arredou pé de sua trincheira velha de guerra.
‘Leva e não traz nunca mais!’
No sábado, uma cerimônia religiosa combinada com ato político encheu ainda mais as ruas diante do sindicato. Era 7 de abril, aniversário de nascimento de Marisa Letícia, a esposa de Lula morta no ano passado. Um grupo musical tocou, a pedido do viúvo, o samba Deixa a vida me levar.
Ele havia decidido se apresentar a Moro, mas os manifestantes imploravam “Não se entrega! Não se entrega!”. No palanque, Lula teve a companhia de correligionários como a ex-presidente Dilma Rousseff. Abraçou os pré-candidatos presidenciais Manuela D’Ávila, do PC do B, e Guilherme Boulos, do PSOL. Durante 55 minutos, começando pontualmente ao meio-dia, falou para a história:
“Eu sou um construtor de sonhos”; “eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia”; “a morte de um combatente não para a revolução”; “Quanto mais dias eles me deixarem lá [na cadeia], mais Lula vai nascer nesse país”; “os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a chegada da primavera”.
Confrontou certo jornalismo: “O sonho de consumo deles é a fotografia do Lula preso. Ah, eu fico imaginando a tesão da Veja colocando a capa minha preso. Eu fico imaginando a tesão da Globo colocando a fotografia minha preso. Eles vão ter orgasmos múltiplos”.
Ao meu lado, em frente à TV, o Daniel perguntou: “Pai, o que é orgasmo?”. Eu expliquei, e o meu filho disse que entendeu.
Ao descer do palco, Lula chorou ao ser carregado pela multidão em que muitos também choravam.
(Na noite de 30 de março de 1964, o presidente constitucional João Goulart fez no Automóvel Club do Brasil seu derradeiro discurso em território brasileiro. Não é prognóstico, mas hipótese: em 7 de abril de 2018, Lula pode ter falado pela última vez em praça pública. As antologias de discursos históricos ganharam capítulo novo e dramático.)
É outono, e não primavera no Brasil. Pelas cinco horas da tarde nublada, os manifestantes bloquearam o portão do sindicato e não deixaram que um carro transportando Lula passasse. Ele queria se entregar. O automóvel deu marcha a ré. Pouco depois das seis e meia, já na penumbra, o ex-presidente partiu a pé. O tumulto não o impediu de caminhar até um veículo da Polícia Federal.
Parou na sede paulista da PF e de lá foi de helicóptero para Congonhas, onde embarcou num avião rumo à República de Curitiba. Um áudio documentou que uma pessoa apelou ao piloto do monomotor prefixo PR-AAC: “Leva e não traz nunca mais!”. A FAB confirmou a autenticidade do diálogo, travado antes da decolagem. Não identificou o autor da frase agourenta. Pelas dez e meia, Lula entrou no prédio da Superintendência da Polícia Federal na capital paranaense.
No sábado em que Lula perdeu a liberdade, uma mulher mostrou a amigas um vídeo em que o antigo torneiro mecânico consola duas militantes que choram. A mulher estava numa padaria da Aldeota, bairro bacana de Fortaleza. Uma amiga pilheriou: “Tá chorando porque agora vai ter que trabalhar. Vai acabar essa história de Bolsa Família!”. A mesa tremeu com as gargalhadas jubilosas. Um ouvido absoluto talvez percebesse ao fundo a voz gutural do “cidadão de bem” Justo Veríssimo, personagem criado por um cearense genial, Chico Anysio: “Odeio pobre!”.
O antilulismo é a forma renovada e radicalizada em teor de ódio dos senis anticomunismo e antigetulismo.
Mas as fronteiras do Brasil não se restringem à Aldeota, ao Leblon e aos Jardins. Em Caetés, cidade do agreste pernambucano onde o presidente preso nasceu, o tocador de zabumba Antônio Francisco de Araújo disse ao repórter Vinicius Torres Freire: “Voto no Lula com as duas mãos. Sou devoto de padim Ciço, de frei Damião e de Lula”.
Oscar Maroni cumpriu sua promessa. Defronte ao Bahamas, distribuiu de graça 9.000 latas de cerveja. O empresário abriu dois painéis, com as fotografias de sua heroína Cármen Lúcia e de seu herói Sérgio Moro.
Mais uma vez, a voz do Cazuza zumbe nos meus tímpanos: “Transformam um país inteiro num puteiro…”.
Golpes são como coelhas
Outra página infeliz da nossa história ensinara que golpes são como coelhas: gestam um filhote atrás do outro.
As reconstituições históricas costumam reproduzir uma impropriedade sobre o Ato Institucional número 5, que em dezembro de 1968 asfixiou ainda mais as liberdades. A garantia de habeas corpus foi então suspensa “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.
Descrevem o AI-5 como “o golpe dentro do golpe”. Como se um só golpe tivesse sobrevindo ao inaugural, a deposição do presidente João Goulart em abril de 1964. A ditadura deu outros golpes, compreendidos como ruptura de regras institucionais estabelecidas.
Em julho de 1964, os novos donos do poder introduziram o segundo turno na eleição presidencial e a adiaram por um ano. Com um cambalacho: se nenhum candidato amealhasse maioria absoluta na rodada inicial, a decisão seria de deputados e senadores. A considerar o placar dos pleitos anteriores, na prática aboliram as diretas.
Em outubro de 1965, exterminaram-nas de vez. Trocaram a soberania do voto de milhões de cidadãos por um colégio eleitoral de centenas de iluminados. Fecharam os partidos políticos. Em março de 1967, a ditadura impôs nova Constituição, rasgando a de 1946. Esperou dez anos para baixar o Pacote de Abril, em 1977, quando inventou o esdrúxulo “senador biônico”, não submetido ao sufrágio popular.
O AI-5 de 1968 foi o mais violento, mas não o único golpe dentro do golpe de Estado de 1964.
Todo golpe dá crias.
País imprevisível, Justiça previsível
Não foi diferente o golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016. Dois anos antes, a presidente tinha sido reeleita com 54.501.118 votos. Ou 3 milhões e meio a mais do que o senador Aécio Neves. Michel Temer conduz políticas rejeitadas pela maioria dos eleitores. Uma delas foi a chamada reforma trabalhista, que acode os ricos e aflige os pobres. Privatizações marotas são outras crias do golpe que subverteu a vontade popular.
O pretexto para o impeachment de Dilma foram manobras contábeis amiúdes nos governos que a antecederam e em administrações controladas pelos maiores partidos. Só ela foi punida. O alvo era duplo: Dilma e Lula. Prenderam-no, numa das duas derrotas supremas do ex-presidente (a outra foi a queda da sucessora). E num golpe dentro do golpe tão grande quanto o golpe de 2016.
É provável que Dilma não tivesse sido deposta se não fossem as artimanhas de Eduardo Cunha. O Supremo só o afastou da Câmara depois que o deputado arrematou o serviço sujo contra a presidente. Mais tarde, o STF mudou sua interpretação da lei: não pode mais agir como agiu com Cunha. Desse modo, livrou de apuros o tucano Aécio. O Congresso que abateu Dilma por “pedaladas” preservou Temer, a despeito da fartura de provas contra ele.
O Supremo proibiu Lula de ser ministro-chefe da Casa Civil de Dilma. Em circunstâncias parecidas, franqueou a Moreira Franco o Ministério de Temer. Sérgio Moro permitiu a divulgação de áudio ilegal de conversa entre Dilma e Lula. Ordenou a condução coercitiva e humilhante do petista, que não se recusara a depor. A esposa de Eduardo Cunha está solta. A Justiça se negou a declarar a absolvição sumária de Marisa Letícia Lula da Silva, mesmo depois de morta.
Qual foi a apelação em processo da Lava Jato que mais rápido decolou da 13ª Vara Federal de Curitiba e aterrissou no tribunal de segunda instância, em Porto Alegre? Adivinha.
O Brasil é um país imprevisível. Mas a Justiça brasileira não é. Ressoa na memória a Lei Jucá: “Com o Supremo, com tudo”.
O Judiciário e o Legislativo produziram contra Dilma e Lula excepcionalidades em série. Lula se tornou o primeiro ex-presidente preso por crime comum (corrupção passiva e lavagem de dinheiro). Quanto houve de político em sua condenação penal?
‘Carteado trapaceiro’
Não se conhece gravação de Lula orientando empresário a pagar propina para testemunha de falcatrua ficar calada. Nem achacando bandido endinheirado. Ou insinuando matar quem sabe demais. Não tem amigo com mala prenhe de dinheiro ou dinheirama malocada em apartamento. E aliado dono de helicóptero abarrotado de cocaína.
Mas quem amarga a prisão é ele.
O PT e numerosos petistas estão longe da inocência num sem-número de escândalos com dinheiro público. No eufemismo do ex-ministro Jaques Wagner, o partido “se lambuzou”. Os petistas mantiveram e possivelmente ampliaram esquemas manejados antes pelo PSDB e outras agremiações.
Distinguiram-se ao retirar dezenas de milhões de brasileiros da miséria extrema. Ao aumentar expressivamente o salário mínimo, para desespero de economistas conservadores. Ao abrir as universidades a uma profusão de jovens pioneiros, em suas famílias, no acesso ao ensino superior.
Talvez Lula seja culpado nos outros seis processos em que é réu. Não faço ideia. No que o levou à cadeia, inexistem provas eloquentes de propriedade do imóvel e de eventual ato para beneficiar empreiteira. O caso se assemelha ao episódio em que o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi acusado pela ditadura de ser o proprietário oculto do imóvel onde morava. Não era.
Na largada, a Lava Jato iludiu como operação destinada a combater toda e qualquer corrupção. Com o passar do tempo, evidenciou-se a seletividade dos seus alvos. Virou contendor político. Sérgio Moro confraternizou publicamente com Aécio. Não com Lula.
A sessão do STF que negou o habeas corpus que impediria o encarceramento do ex-presidente da República não escapou de excentricidades. Em vez de votar ações diretas de constitucionalidade, debatendo em tese a antecipação do cumprimento de pena, a presidente da corte pautou o caso específico de Lula _o que sabidamente o prejudicava.
“Por ingenuidade, a ministra Cármen Lúcia nada pagará, jamais”, comentou o jornalista Janio de Freitas. “Entra para a história do Direito por sua adoção de um método original, quase um truque de carteado trapaceiro, para decidir no tribunal em favor de sua opinião.”
Cassaram da eleição presidencial o candidato preferido dos brasileiros, sobretudo dos mais pobres.
O presidente mais popular da história do Brasil está em cana em virtude de uma condenação sem provas acima de dúvida razoável.
O mais impopular, em palácio.
Isso é democracia?
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