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Salgueiro, a cidade que ficou no meio do caminho

A chegada de uma ferrovia e a transposição do rio São Francisco prometeram shopping center, indústrias, emprego farto e comércio aquecido. Então tudo parou.

O ex-apontador na Odebrecht, Eronildo Diniz, na ponta direita, com os pais e a irmã mais nova.

Os caminhões e o maquinário parado às margens da BR-232, nos quilômetros que dão acesso a Salgueiro, sertão de Pernambuco, são como a foto desbotada de um futuro que não chegou. Distante 518 quilômetros do Recife, o município, conhecido como a “encruzilhada do Nordeste” por ser praticamente equidistante de quase todas as capitais da região, entrou na rota do desenvolvimento quando a ferrovia Transnordestina e a transposição do rio São Francisco começaram a ser construídas. Os dois projetos federais, que se encontram dentro da cidade, levariam desenvolvimento e água aos sertanejos. Mas as promessas ficaram no meio do caminho.

Era esperado que, por sua vocação logística natural, o município de pouco mais de 60 mil habitantes se tornasse um grande polo distribuidor de mercadorias no centro do Nordeste, após a construção dos quase 2 mil quilômetros de trilhos da Transnordestina. Vinda do Piauí, a ferrovia bifurca em Salgueiro para o porto de Pecém, no Ceará, e para o porto de Suape, em Pernambuco. O projeto teria capacidade de distribuir até 30 milhões de toneladas de minérios e grãos por ano.

Foi durante a mobilização dos canteiros das megaobras símbolos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e do projeto desenvolvimentista nacional, que Salgueiro viveu seus dias mais prósperos. A construção da ferrovia, maior obra linear do país, a partir de 2006, e do Eixo Norte da Transposição, iniciada em 2007, animou o mercado de trabalho local, atraindo profissionais de vários Estados. O número de admissões na cidade subiu quase nove vezes – de 1.132 em 2007 para 11.222 em 2010, segundo dados do Cadastro Geral do Emprego (Caged).

O aumento de renda dos moradores e a presença de trabalhadores de fora aqueceram comércio e o segmento de serviços. O primeiro shopping center com grandes players nacionais, como a Lojas Americanas, foi inaugurado. A arrecadação municipal saltou de R$ 2,3 milhões em 2007 para R$ 15 milhões em 2011, e o mercado imobiliário viveu um boom, com valorização de até 100% do metro quadrado construído. Para completar o pacote, o projeto de uma plataforma multimodal em um terreno de 300 hectares, incluindo até um aeroporto de cargas, foi anunciado pelo governo pernambucano.

“A gente saiu da pobreza para a riqueza e para a pobreza de novo.”

Mas a interrupção dos projetos de infraestrutura, a partir de 2013, provocada por escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato e entraves burocráticos, dissipou os sonhos de progresso da cidade. Uma onda de desemprego e de falência de empresas derrubou a economia local, que ainda não se recuperou do baque. “A gente saiu da pobreza para a riqueza e para a pobreza de novo”, diz o prefeito Clebel Cordeiro (MDB).

Ele calcula um déficit de pelo menos R$ 100 milhões entre os comerciantes locais, oriundos de dívidas deixadas pelas grandes empreiteiras. “Somente a prefeitura tem R$ 5 milhões a receber da Mendes Júnior (que tocava as obras da transposição e investigada na Lava Jato)”, diz Cordeiro. A arrecadação municipal registrou uma queda de 66% desde 2015.

Mais de dez anos depois do início das grandes obras, nenhum dos projetos federais em Salgueiro foi concluído. A Transnordestina está completamente estagnada, com trilhos e vagões enferrujados no meio do nada. Nos canteiros do Eixo Norte da transposição também quase não se veem trabalhadores, e a água ainda não abastece as zonas rurais da região.

Não tem mais emprego

O aumento do desemprego foi o efeito colateral mais direto do declínio econômico após a paralisação dos projetos federais. De recordista de geração de vagas no Estado em 2010, o município foi parar no ranking das 50 cidades que mais demitiram no país em 2013, segundo o Caged. Atualmente, há mais de 7 mil desempregados na cidade, segundo a prefeitura. A brusca mudança do cenário deixou os trabalhadores locais – nessa altura, já mais qualificados e acostumados a um nível de rendimento maior – no vácuo.

“Após a desmobilização, muitos operários de outros Estados voltaram para casa ou migraram em busca de outras construções, mas encontraram tudo parado no país”, recorda Luciano Oliveira, coordenador do Sindicato da Construção de Estradas, Pavimentação e Obras de Terraplanagem no Estado de Pernambuco, o Sintepav.

Ele conta que a Transnordestina chegou a mobilizar 11 mil operários no pico de construção no Estado. Já a Transposição, cerca de 3 mil. “Hoje não tem mais ninguém na ferrovia. Na época da desmobilização, o trecho do Eixo Norte (da transposição) absorveu parte da mão de obra. Mas em 2016, quando a Mendes Júnior deixou o canteiro, vieram novas demissões e o povo ficou sem nada”, narra. O consórcio Emsa-Siton foi contratado para tocar o projeto a partir da saída da Mendes Júnior, investigada na Lava Jato e que alegou incapacidade financeira de concluir os trabalhos na época. O Ministério da Integração informou, em resposta aos questionamentos da reportagem, que mais de 94,9% do Eixo Norte está concluído e que a obra deve ser entregue este ano.

No ano passado, a Emsa retomou as movimentações nos canteiros, mas os salários dos funcionários estão atrasados, e as demissões continuam. Somente do começo deste ano até agora, o Sintepav contabiliza centenas de rescisões. “Tinha uns 1,5 mil funcionários no trecho em dezembro, depois reduziu para uns 70 e faz uma semana que todos foram mandados para casa, sem salários, nem explicações”, denuncia Luciano Oliveira. A Emsa não se pronunciou sobre prazos e demissões de funcionários.

Desamparados, os amigos Germano Leite, 44 anos, Magdiel Silva, 26, e Jeová dos Santos, 52, todos ex-trabalhadores da Mendes Júnior, fazem plantão na frente da CMT Engenharia, contratada para fazer a manutenção dos canteiros, desde que ouviram rumores de novas contratações. “A gente está vindo pra cá todos os dias”, conta Germano com o currículo nas mãos. Mas os engenheiros da empresa, que preferiram não ser identificados, respondem de longe que não há vagas em Salgueiro. “Somos responsáveis apenas pela manutenção, não temos tanta demanda por mão de obra”, explica um deles.

A expectativa virou a principal ocupação de Eronildo de Sousa Diniz, 41, ex-apontador na Odebrecht, na Transnordestina. Há três anos ele tenta arrumar um emprego com carteira assinada. “Quando a reportagem ligou, pensei que fosse alguma oferta de trabalho”, brinca. A renda chegava a mais de R$ 2 mil por mês, além de benefícios como ticket-refeição e plano de saúde. Hoje ele não consegue juntar R$ 500 com os bicos. Entregou o apartamento alugado e voltou a morar na pequena casa dos pais, na periferia da cidade, onde também moram suas duas irmãs e o seu sobrinho de 12 anos.

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Mãe de Eronildo Diniz, Maria de Fátima teve que acolhê-lo depois de o filho perder o emprego.

ANDERSON STEVENS

Os pais de Eronildo Diniz, Maurílio, 77, e Maria de Fátima Diniz, 64, são agricultores. Eles deixaram o campo para que os filhos aproveitassem melhor as oportunidades de emprego no centro urbano, mas se arrependeram. “Dos três filhos, apenas a filha mais velha está trabalhando. Se pelo menos a água da transposição chegasse na roça era bom, porque a gente teria a opção de voltar pra lá”, lamenta Maria. “Os jovens não encontram mais oportunidades de trabalho no município. Ou você trabalha na prefeitura ou fica desempregado”, queixa-se Joana Diniz, 26, filha caçula do casal.

Quando a locomotiva estagnou

A decadência econômica de Salgueiro é o espelho da história de sonhos desconstruídos do Brasil na última década. Na cidade, o problema se intensificou partir de 2013, quando a construção da Transnordestina, cuja entrega deveria ter acontecido em 2010, começou a se arrastar.

Na época, a Odebrecht (também investigada na Lava Jato) rescindiu contrato com a Transnordestina Logística S/A, conhecida pela sigla TLSA, subsidiária da Companhia Siderúrgica Nacional, à frente do projeto, por desacordos sobre reajustes contratuais. Outras disputas financeiras entre a Transnordestina e o governo federal, além de problemas técnicos, agravaram o quadro. Por fim, em 2016, o Tribunal de Contas da União determinou a suspensão de repasses federais por indícios de irregularidades, e os trabalhos cessaram de vez.

A Odebrecht não informou os motivos que levaram à sua saída das obras, às demissões, nem se o passivo trabalhista e débitos com empresas locais foi sanado. O Ministério dos Transportes e a TLSA também não deram data para a retomada da construção da ferrovia. A TLSA apenas informou que um grupo formado pelos ministérios envolvidos e pelas empresas está, desde 2017, buscando parceiros “que possam trazer recursos financeiros necessários para a retomada e conclusão do projeto”.

Com trilhos empilhados à beira da estrada, a ferrovia já consumiu R$ 6 bilhões.

A esta altura, 600 dos 1.753 quilômetros totais do projeto estavam concluídos, sem que eles servissem para nada. Abandonada, com trilhos empilhados à beira da estrada, a ferrovia já consumiu R$ 6 bilhões e estima-se que outros R$ 7 bilhões sejam necessários para a sua conclusão, ainda sem data certa.

A maior fábrica de dormentes do mundo (estruturas de concreto posicionadas entre os trilhos) também está ociosa. Com capacidade de produtiva de 5 mil unidades por dia, a operação inaugurada pelo ex-presidente Lula em 2010 recebeu investimentos de R$ 115 milhões. A unidade fechou as portas em 2013, demitindo 300 funcionários.

O abandono das estruturas gigantescas é uma imagem dolorosa para Régis de Siqueira, 54, ex-motorista da Odebrecht na Transnordestina. Ele lembra que a frota para o transporte dos trabalhadores do trecho chegou a 12 ônibus de 50 lugares. “Quando a gente olhava para esses trilhos, via um mar de gente trabalhando. Hoje o povo está desempregado, sem ânimo”, lamenta.

Nos canteiros da Transposição também é difícil encontrar operários ou máquinas trabalhando. O presidente Michel Temer chegou a inaugurar uma estação de bombeamento em Cabrobó, município próximo, em fevereiro passado. De lá para cá, contudo, não houve grandes avanços no trecho de Salgueiro. Atrasado há anos, o andamento do projeto foi travado por questões judiciais envolvendo a empresa Emsa, contratada para a conclusão do projeto, e as concorrentes da licitação, que questionam o resultado. “Atualmente, o braço do projeto que cruza Salgueiro tem apenas uma das três barragens concluídas”, explica Luciano Oliveira, do Sintepav estadual. “E ninguém aqui recebe água do São Francisco ainda”, ressalta.

No meio desses entraves, os sertanejos mais pobres continuam sendo os mais prejudicados. Cleonice Maria da Silva, 67, planta feijão, maxixe, jerimum e caxi em um sítio em Conceição das Crioulas, zona rural de Salgueiro. “A água nunca chegou pra gente. Os canais até existem, mas ainda dependemos do caminhão pipa que o governo manda”, conta.

Da prosperidade ao endividamento

Os novos horizontes que se abriam para Salgueiro a partir dos projetos de infraestrutura incentivaram investimentos altos dos empresários locais. O rastro de prejuízos, contudo, deixou pequenas e grandes empresas em um estado pior do que o inicial.

Erivaldo Barros, 55, tinha um pequeno galpão de água mineral na cidade. Ele investiu R$ 40 mil para ampliar a capacidade de atendimento cinco anos atrás. Até 2016, a Central de Água fornecia três carretas com 1,2 mil garrafões de 20 litros – 24 mil litros por semana – para o Projeto de Transposição. Mas a empresa dele fechou as portas em janeiro, depois de levar um calote de R$ 150 mil da Mendes Júnior. “Deixaram a gente na miséria total”, reclama.

João Ronaldo Araújo, dono da JR Locações, amarga um débito de R$ 390 mil há três anos também da Mendes Júnior. “Todo mundo se preparou acreditando que ia crescer. Investi R$ 600 mil na ampliação do galpão e na compra de equipamentos. Agora estou devendo R$ 400 mil ao banco, meu faturamento caiu mais de 80%. Penso que teria sido melhor se esse suposto desenvolvimento nunca tivesse chegado porque a gente era pequeno, mas, pelo menos, não tinha dívidas”, desabafa.

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Em Salgueiro e no Ceará, somente a Mendes Júnior tem cerca de 50 credores. Para alguns, a empresa deve mais de R$ 10 milhões. Em plano de recuperação judicial, a empreiteira responde por meio do escritório Nemer e Guimarães Advogados. Em nota, o escritório informou que, em todo o Brasil, “a Mendes Júnior tem um passivo trabalhista de R$ 36,6 milhões abrangendo 1.895 credores. A proposta de pagamento dos créditos trabalhistas foi aprovada na Assembleia Geral realizada no dia 16 de abril deste ano”. Segundo o comunicado, “o pagamento será feito em um ano da homologação do plano, no limite de R$ 1 milhão por mês”.

Uma cidade à espera

O desânimo geral entre os moradores de Salgueiro hoje difere totalmente da euforia que tomou conta da cidade no começo dos anos 2000. O comércio agitado daquela época, historicamente a principal atividade econômica do município, declinou. “Comparando com os anos de pico das obras, ainda hoje temos um desaquecimento das vendas da ordem de 30%”, considera Fábio Alencar, gerente do Salgueiro Shopping, onde o supermercado Bonanza, uma das principais âncoras, fechou as portas há cinco anos. Até a feira de rua sentiu o tombo. “Quando tinha muita gente por causa das obras, em três dias eu vendia 20 sacos de batata de 50 quilos. Hoje passo a semana todinha com três sacos e ainda sobra”, reclama o feirante Pedro Bezerra, 50.

O mercado imobiliário também despencou. O metro quadrado, que em meados de 2005 valorizou até 100%, chegando a R$ 1,8 mil na venda, caiu para R$ 1 mil este ano. A quantidade de distratos na imobiliária Rocha, a principal do município, só não foi maior porque a empresa adotou estratégias quase desesperadas. “Ampliamos prazos de pagamento, parcelamentos e reduzimos os valores de entrada. Tudo para segurar os contratos”, confessa o corretor Luciano Vasconcelos.

 Salgueiro convive com os fantasmas do abandono.

Sem perspectivas concretas de conclusão das obras federais, pelo menos no curto prazo, Salgueiro convive com os fantasmas do abandono. No grande terreno ainda cercado, onde deveria ter sido concluída a plataforma multimodal e o aeroporto municipal, há apenas mato e bodes. “É preciso que Transnordestina seja concluída para viabilizar esses investimentos e elevar Salgueiro à posição de polo logístico do Nordeste, para a qual já é vocacionada pela posição geográfica e por ser um cruzamento entre a BR-116, que vai do Ceará ao Rio Grande do Sul, e a BR-232, que liga Recife, a capital Pernambucana, ao interior do estado”, analisa Leonardo Cerquinho, presidente da Agência de Desenvolvimento de Pernambuco.

Jorge Jatobá, economista da Consultoria Econômica e de Planejamento Ceplan, ressalta que a conclusão da Transnordestina e da transposição são essenciais para que a cidade possa voltar a se desenvolver. “Não somente para economia de Salgueiro, mas também para a de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil. A Transnordestina, por exemplo, é esperada para impulsionar negócios no Porto de Suape”, argumenta.

Enquanto esses planos não se tornam realidade, os moradores da cidade vivem em uma espécie de vigília eterna à espera da retomada dos investimentos. Acostumados ao esquecimento e à escassez, os sertanejos que viram o progresso passar sem puder aproveitá-lo esperam agora o próximo trem de oportunidades.

Foto em destaque: ex-apontador na Odebrecht, Eronildo Diniz, na ponta direita, divide o sofá com os pais e a irmã mais nova. (Foto: Anderson Stevens)

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