Na reta final do concurso, Rebeca e Verônica passaram a ser consideradas brancas pelo Rio Branco

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Elas se consideram negras, mas foram classificadas como brancas e perderam emprego de diplomata

Disputa judicial impediu que candidatas a vaga no Itamaraty ganhassem salários de R$ 17 mil, experiência no exterior e auxílio-moradia.

Na reta final do concurso, Rebeca e Verônica passaram a ser consideradas brancas pelo Rio Branco

A mãe e a avó de uma são quilombolas. A outra foi militante do movimento negro e ajudou a criar o sistema de cotas na Universidade de Brasília. Ambas se consideram negras e foram aprovadas na última edição de uma das provas mais disputadas do país: o concurso para diplomata do Instituto Rio Branco, a escola de formação do Ministério das Relações Exteriores, realizado entre e junho e dezembro de 2017. Estavam prestes a ser nomeadas. Mas uma disputa judicial levou o Itamaraty a desmontar a comissão que avalia quem pode concorrer às vagas destinadas a cotistas negros. Em 2018, o novo comitê mudou a interpretação sobre a cor da pele das candidatas: elas foram consideradas brancas e perderam suas vagas.

A carreira de diplomata tem salários iniciais de R$ 17 mil, passando dos R$ 27 mil durante a carreira costumeiramente internacional. Nesses casos, a remuneração é em dólar e todos contam com um auxílio-moradia compatível com a localidade. Uma lei obriga o Itamaraty – e todos os órgão públicos – a destinar 20% das vagas para negros e pardos de 2014 até 2024, e uma comissão tem a missão de avaliar quem pode ou não entrar na cota.

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Uma das candidatas ao cargo era Rebeca Silva Melo, uma economista de 25 anos. Filha e neta de quilombolas kalungas do interior de Goiás, ela foi considerada negra em três exames promovidos pelo Instituto Rio Branco no passado. Em 2015, foi aprovada para uma bolsa para negros dada pelo próprio Itamaraty e ganhou R$ 25 mil para estudar para o teste, com a obrigação de fazê-lo no ano seguinte. Em 2016, prestou o concurso como negra, mas não foi aprovada. Quando foi tentar de novo no ano seguinte, a comissão que avalia o candidatos a vagas pelo sistema de cotas vetou o seu pedido. Rebeca não era negra para a Comissão de Verificação, órgão responsável pela análise da cor de pele dos candidatos. Ela diz que sempre foi reconhecida como negra e, inclusive por isso, passou a infância ouvindo frases racistas até dentro da família. “Diziam: ‘Você tem um pé na senzala, mas mesmo assim é bonita’.”

Verônica Couto Tavares, publicitária de 34 anos, também concorreu à vaga de diplomata em 2017. Ela militou em favor das cotas para negros no início dos anos 2000, quando isso nem existia nos vestibulares. Em 2016, concorreu a uma vaga no Itamaraty como cotista negra, mas não passou. No ano seguinte, fez mais uma tentativa. Mas sofreu o mesmo revés que Rebeca e não conseguiu vaga no concurso pelas cotas.

As duas e outros 14 candidatos recorreram da decisão da Comissão de Verificação. Na segunda instância do sistema de cotas do Itamaraty, oito deles foram reconhecidos como negros e entraram no concurso. Com o sinal verde, Verônica e Rebeca passaram na prova e se preparavam para assumir o charmoso cargo de diplomata.

Reviravolta

A Educafro, ONG que atua para promover a inclusão de negros nas universidades e órgãos públicos, não gostou do resultado do concurso. De acordo com seu diretor-executivo, Frei David Santos, houve “fraude” na distribuição de vagas para cotistas, assim como vem acontecendo em outros editais de salários mais altos. A legislação diz que todos os negros – pardos e pretos – têm direito a cotas. Mas a Educafro entende que existem “pardos pretos”, “pardos pardos” (sic) e “pardos claros” – e que esses últimos não deveriam ter acesso ao benefício. O próprio Santos se considerava branco até os 23 anos de idade. Depois, passou a se declarar como “pardo claro” e, hoje, aos 65 anos, se intitula “pardo pardo”.

Por isso, a ONG levou a questão ao Ministério Público Federal, contestando a decisão da Comissão de Revisão de Recursos do Itamaraty que incluiu Rebeca, Verônica e outras seis pessoas no concurso como cotistas. A Educafro reclamou da composição da comissão.

Esse comitê revisor tinha três pessoas e era presidido pelo embaixador Benedicto Filho. Primeiro negro diplomata no Brasil, ele foi orientador de beneficiários do Programa de Ação Afirmativa do Rio Branco; premiado com o Troféu Raça Negra da Associação Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural; e colaborador da política que resultou na criação do sistema de cotas para negros dentro do MRE. A ligação de Benedicto com o Itamaraty é de família: ele é filho de um ex-porteiro e ex-contínuo do órgão.

O outro integrante era o embaixador Silvio Albuquerque, membro do Comitê das ONU para Eliminação da Discriminação Racial; autor dos livros “Combate ao Racismo” e “As Nações Unidas e a Luta contra o Racismo”; ex-chefe da Divisão de Temas Sociais do Itamaraty; e ex-diretor do Departamento de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República. A terceira integrante da comissão era a conselheira Vanessa Dolce de Faria, chefe da Divisão da África Austral e Lusófona do Itamaraty e autora do livro “Política Externa e Participação Social”.

Para o diretor-executivo da Educafro, a composição do comitê e a trajetória pessoal e profissional dos integrantes não eram adequadas para a tarefa, mesmo com a militância do grupo contra o racismo. “Não é a sabedoria adquirida na academia ocidental européia que vai dar a essas pessoas capacidade para mexer com algo tão sensível”, disse David Santos.

O Ministério Público concordou com as alegações da Educafro e entrou com uma ação contra a Comissão de Revisão de Recursos. Em dezembro, o juiz Ed Lira Real, da 22ª Vara Federal de Brasília, suspendeu o andamento do concurso. Para o juiz, a composição e qualificação dos membros da segunda comissão não eram transparentes.

O próprio Itamaraty recorreu, mas, em fevereiro, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve a suspensão do concurso. Com uma novidade: o Itamaraty poderia prosseguir com a seleção, desde que substituísse a Comissão de Revisão de Recursos, utilizando os mesmos critérios de composição da comissão de primeira instância – cinco membros do Itamaraty e três de outros órgãos.

O Itamaraty criou um novo grupo, destinado exclusivamente a analisar os casos dos candidatos que disputaram o concurso como cotistas – entre eles, Rebeca e Verônica. Em 9 de março, eles foram chamados para uma entrevista, e a nova comissão decidiu que elas “não apresentam fenótipo visível de pessoa negra”. Com a interpretação, elas foram excluídas do concurso – no qual já haviam sido aprovadas. “É totalmente irônico”, disse Verônica. “Tudo pelo que a gente batalhou está sendo usado contra a gente.”

Um terceiro cotista, Filipe Mesquita, que não foi aprovado, mas que estava na fila de espera por uma vaga, também foi eliminado depois da mudança na comissão que avalia quem é negro.

Tabela racial

Para o embaixador Benedicto Filho, que presidiu a comissão criticada pela ONG, existe uma discussão “ideológica” contra os chamados pardos claros. Ele é contra qualquer tipo de “tabela racial”. E ressalta que a lei determina que todos os negros, até os mais claros, têm direito às cotas. “Tudo isso, a gente abstraiu. Na comissão, a gente aplicou a legislação”, contou. “A lei não diferencia. A decisão do legislativo foi ampliar [o benefício de cotas raciais] para pretos e pardos. Usamos o critério do fenótipo.”

Em última instância, quem deveria decidir quem é negro ou não é o próprio candidato.

A lei 12.990/14 diz que os candidatos beneficiados com cotas em concursos deverão se declarar apenas como “pretos ou pardos”, conforme denominação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Já a Orientação Normativa 3/2016 e a Portaria 4/18 do Ministério do Planejamento, criada após o concurso do Rio Branco, dizem que a avaliação das comissões deve considerar “tão somente” e “exclusivamente” os “aspectos fenotípicos do candidato” – ou seja, somente a aparência física. A nova regra ainda diz que a autodeclaração deve se sobrepor à análise do fenótipo quando houver “dúvida razoável” dentro da banca que define quem é negro e quem é branco. Isto é, em última instância, quem deveria decidir quem é negro ou não é o próprio candidato.

O embaixador Benedicto admite que os oito casos analisados pela sua comissão eram polêmicos. “Eram casos limites, não eram evidentes, mas eram pessoas que tinham ascendência negra, mas não por ter pai e mãe. Você via na aparência que tinham [traços de negro]”, disse Benedicto.

Renegrescimento

Antes “negras” e agora “brancas”, Verônica e Rebeca podem voltar à condição de negras enquanto aguardam uma audiência no processo na 22ª Vara Federal de Brasília, o que não tem data para acontecer. Elas dizem que vão continuar se inscrevendo como negras para o Rio Branco em concursos futuros. De acordo com o diretor da Educafro, Rebeca, Verônica e vários outros candidatos em situação parecida têm chances de serem, “infelizmente”, admitidos como cotistas em concursos futuros no Itamaraty ou em outros órgãos públicos.

Frei David diz que ele próprio poderia ser eliminado em alguns processos seletivos e em outros não. “Eu sou ‘pardo pardo’ e, em vários lugares, eu sou tirado do processo e louvo a Deus, porque quem me tirou é porque quer ver um Brasil verdadeiramente inclusivo.”

The Intercept Brasil enviou perguntas ao Itamaraty e solicitou esclarecimentos via Lei de Acesso à Informação em 8 de maio. A assessoria de imprensa do órgão disse que não responderia às questões por causa do pedido feito pela via legal e se negou a apresentar essa justificativa de silêncio por escrito.

Foto em destaque: Na reta final do concurso, Rebeca e Verônica passaram a ser consideradas brancas pelo Rio Branco.

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