João passou a madrugada do último domingo de abril em claro. A cada novo tiro que escutava, pensava na família, a poucas quadras de distância. A região em que mora em Duque de Caxias, a 25 km do centro do Rio de Janeiro, estava vivendo mais uma noite de toque de recolher, imposto por traficantes de drogas. Ao ser avisado pelos outros passageiros que desceram com ele na estação de trem Corte 8, o garçom preferiu não arriscar e montou um improvisado acampamento no lado de fora da estação.
Os cerca de 40 passageiros que o acompanhavam se dividiram. Parte foi para a casa de parentes, e o resto pernoitou nos arredores da estação junto de João, que voltava do trabalho em um restaurante na zona sul da capital fluminense. A decisão foi comunicada pelos criminosos em uma série de áudios de WhatsApp que correram pelos celulares dos moradores no sábado e no domingo, horas após o assassinato de cinco pessoas em um baile funk na região.
Nos últimos 16 meses, ao menos 1,7 milhão moradores de 55 localidades do Rio e de municípios como São Gonçalo, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Itaboraí, Itaguaí, Mesquita e Angra dos Reis tiveram o direito de ir e vir cerceado por grupos criminosos organizados, segundo levantamento realizado pela reportagem com base em dados fornecidos com exclusividade pela ONG Disque-Denúncia. Na cidade do Rio de Janeiro, há registros de casos em ao menos 21 bairros. Ao todo, 10,5 milhões de pessoas moram nesses municípios – e 17% delas convivem com situações de toque de recolher.
The Intercept Brasil ouviu moradores de algumas dessas localidades, onde o toque de recolher passou a fazer parte da rotina. Por motivo de segurança, as pessoas que aceitaram falar estão identificadas com nomes fictícios, caso de João.
“Nunca me senti tão impotente. Estava tão perto de casa, mas não podia seguir até lá para ver minha família, minha mulher e minhas crianças que passaram à noite acordadas em meio ao tiroteio, sem saber onde o pai estava. E eu lá perto, na estação”, conta João, que não tinha créditos no telefone para ligar para a família e só foi escutar os áudios que decretavam o toque de recolher na segunda-feira.
Logo que amanheceu, correu para casa. Para alcançar a família ainda teve que passar por duas barreiras feitas pelos traficantes que controlam a localidade.
Os criminosos deram a ordem por meio de três áudios distribuídos no WhatsApp ao longo do dia. Neles, fica clara a preocupação com uma possível invasão de milicianos, citados como responsáveis pelas mortes.
Os paramilitares dominam a parte baixa da localidade, enquanto que nas encostas as regras são ditadas pelos traficantes. Na chacina, cinco pessoas foram mortas, entre elas duas mulheres. Todos surpreendidos por homens com os rostos encobertos.
Do Leme à Baixada
O mapeamento das áreas atingidas por toque de recolher mostra que a prática de limitar o direito de ir e vir de moradores não está restrita a regiões distantes da capital carioca.
No dia 30 de janeiro, um conflito entre facções rivais resultou na imposição de toque de recolher nos morros da Babilônia e Chapéu Mangueira, no Leme, Zona Sul do Rio – bem ao lado de um forte militar. O mesmo aconteceu no Pavão-Pavãozinho, favela atendida por uma Unidades de Polícia Pacificadora e vizinha aos bairros de Copacabana e Ipanema.
O toque de recolher geralmente é imposto por grupos que detém o domínio territorial de determinadas regiões para tentar impedir ataques de bandos rivais. Coordenador do Disque-Denúncia, Zeca Borges, diz que tanto traficantes quanto milicianos adotam a estratégia para impor medo aos moradores e, com isso, diminuir ao máximo a movimentação de pessoas nas ruas à noite.
Borges reclama que, apesar do grande número de denúncias, o governo faz pouco ou quase nada para mudar a situação. “Ao denunciar, o cidadão faz sua parte, mas nem sempre as autoridades têm qualquer apreço pelo clamor das denúncias.”
A imposição de toque de recolher também levou o comerciante Lúcio a desistir de voltar para casa na Praça Seca, na zona oeste do Rio, na noite de 28 de março. Ele e a família vivem numa das ruas de acesso à comunidade Bateau Mouche, região em que conflitos entre traficantes e milicianos fazem parte da rotina.
“Eu estava para fechar a loja, quando minha mulher ligou para dizer que os vizinhos estavam recebendo mensagens ameaçadoras por WhatsApp. Geralmente, começa assim. Alguém espalha áudios com o alerta de toque de recolher. Liguei para o 190, mas a PM só foi à comunidade no dia seguinte. Passei a noite na loja preocupado com minha família. Se isso não é o mesmo que viver num país em guerra, então não sei o que é”, desabafa Lúcio.
Especialista em segurança, Vinícius Domingues Cavalcante compara a imposição de toque de recolher por criminosos ao terrorismo.
“O toque de recolher é uma medida que pode ser adotada pelo Estado em situações excepcionais. Já o crime organizado, seja tráfico ou milícia, quando lança mão da medida o faz para mostrar que têm poder e domínio territorial. É uma tática de guerrilha, que impõe medo e terror na população”, diz Cavalcante, diretor da Associação Brasileira de Profissionais de Segurança.
Procurada pela reportagem, a Polícia Militar do Rio informou apenas que também compila dados sobre ocorrências de toque de recolher, mas não forneceu as informações tampouco se posicionou sobre as denúncias registradas pelo Disque-Denúncia. A Secretaria de Segurança do Estado respondeu que iria elaborar um posicionamento a respeito da situação, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.
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