Um projeto de lei que tramita no Congresso sem chamar a atenção de ONGs e parlamentares ligados ao tema da privacidade pretende ampliar os poderes de investigação da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. Há uma tentativa para fazê-lo voltar a andar agora, antes das eleições, depois de dormir mais de dois anos nas gavetas do Congresso.
A proposta permite a oficiais da agência entrar em domicílios, infiltrar-se em organizações criminosas — inclusive eximindo-os de crimes cometidos no exercício da função—, interceptar telefonemas e e-mails de estrangeiros não-residentes no Brasil, usar identidades falsas e inventar histórias para justificar a presença de um agente em determinada situação. As medidas consideradas mais invasivas, como infiltração e entrada em residências, ainda dependeriam de autorização judicial. Hoje, algumas dessas técnicas só estão disponíveis para as polícias.
Além de aumentar a vigilância sobre a população, o projeto lança uma suspeita: a de que nova lei vai apenas legalizar atividades que os agentes da agência já executam, se aproveitando da falta de regulamentação. Nesse caso, a medida pode ser encarada como uma camisa-de-força na atuação de alguns arapongas – e não apenas como uma tentativa de aumentar os poderes da agência.
A própria Associação dos Oficiais de Inteligência, que representa os agentes da Abin, admite que o projeto atrapalha apurações sobre potenciais fatos ligados à segurança nacional, ameaças e suspeitas, porque nem sempre as investigações vão ocorrer após a existência de um crime. Ao contrário das polícias, que agem na maioria dos casos após roubos e mortes, a Abin, comandada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, atua na prevenção. Ou seja, os agentes, em muitos casos, não sabem quais são os seus alvos e atuam justamente para descobri-los.
“O projeto demanda para nós certos dados prévios que que nenhuma [agência de] inteligência conseguiria fornecer. Precisaríamos de mandado para prospectar uma situação que não tem nome, endereço correto, um telefone, uma pessoa. Você sequer sabe quais são seus alvos, seus inimigos, objetos…”, diz Roger Caetano, presidente da Associação.
Ao tomar conhecimento da proposta, ONGs de defesa de direitos humanos e da privacidade a criticaram por entenderem que ela transforma a agência em uma “polícia secreta”.
Caetano se defende, diz que, em algumas situações, a investigação preliminar não está toda esclarecida e seria impossível informar à Justiça dados como nome da pessoa, endereço, CPF e condição de estrangeiro não-residente no Brasil. Sem essas informações, o juiz não poderia autorizar uma escuta para a Abin, por exemplo.
Três dos novos poderes da Abin citados no projeto não exigem autorização judicial. Os agentes poderão usar identidades falsas e criar histórias “elaboradas” para cobrir nomes falsos. Isso significa que a Abin poderá, além de entregar uma carteira de motorista falsa para um agente, usar a burocracia estatal para registrar essa carteira, dando ares oficiais à nova identidade do agente. Isso dará instrumentos mais realistas para que os arapongas possam se infiltrar em organizações criminosas, por exemplo. A infiltração exigirá autorização de um juiz, mas, caso o agente cometa um crime ao lado dos seus falsos comparsas, não responderá processo criminal.
A Justiça também poderá permitir que a Abin entre na residência de brasileiros. Os agentes poderiam ainda fazer grampos em telefones, emails e celulares, mas somente de estrangeiros não residentes.
Legalizar o ilegal
No passado, a agência já esteve envolvida em episódios de grampos, o que ainda é proibido por lei. Em 2008, a Abin foi acusada de gravar conversas de Gilmar Mendes, na época, presidente do STF, com o então senador Demóstenes Torres, o que levou à exoneração do diretor-geral da agência e de parte da cúpula da instituição (os áudios nunca vieram à tona no entanto). “Nenhuma gravação telefônica ilegal foi encontrada após imenso pente-fino realizado em todos os CDs, pen drives, discos rígidos, telefones celulares e agenda eletrônicas apreendidos na Abin”, narra o jornalista Rubens Valente, em “Operação Banqueiro”, ao listar pelo menos três investigações que não localizaram supostos grampos.
A única coisa encontrada foi “material pornográfico” em um dos computadores. A PF também concluiu que a Abin teve agentes mobilizados durante a Operação Satiagraha, cujo delegado-chefe foi acusado de fazer grampos ilegais, que chegou a prender o banqueiro Daniel Dantas, mas acabou anulada devido aos erros na investigação.
No ano passado, a revista Veja noticiou que o presidente Michel Temer usou a Abin para, segundo a publicação, “bisbilhotar a vida” do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin com o objetivo de “encontrar qualquer detalhe que pudesse fragilizar sua posição de relator da Lava Jato”. Temer é investigado em duas denúncias e um inquérito por suspeita de corrupção.
A agência também está interessada em monitorar a atividade dos brasileiros na internet. No dia 8, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem na qual relata uma sugestão da Abin para ajudar no combate à disseminação de fake news durante as eleições de 2018: acompanhar a navegação de usuário sem prévia autorização da Justiça.
Fim do vale tudo?
Os novos poderes da Abin previstos no projeto levantam suspeitas de que a agência já utiliza alguns deles, beneficiada pela ausência de um guarda-chuva legal. Se a proposta for aprovada, será regulamentado o uso de placas falsas em veículos, a realização de interrogatórios, o recrutamento de informantes, o reconhecimento de locais e vigilância de investigados (fisicamente ou por meio digital). Ou seja, ao impor regras, o projeto tenta acabar com o vale-tudo destas atividades de espionagem.
Denilson Feitoza, presidente da Inasis (sigla em inglês para Associação Internacional para Estudos de Segurança e Inteligência), ONG que ajudou na redação do projeto, defende que todas as operações da agência hoje passam por um controle e são documentadas e registradas. Mas a Abin poderia ser mais ousada. Na interpretação dele, por exemplo, a infiltração de agentes não está proibida pela lei atual. “Cada agência deve dizer o que está ou não fazendo, mas a Constituição e a legislação não vedam a infiltração para fins de defesa e nem para fins de segurança interna do Estado”, diz. Feitosa, no entanto, evita comentar se há agentes se aproveitando dessa lacuna e diz apenas que não tem notícias de entradas em domicílios e interceptações de estrangeiros.
Pelo projeto, as técnicas mais invasivas – infiltração, entrada em domicílio e interceptação de comunicações de voz e dados –, deverão ser solicitadas pelo diretor-geral da Abin a um juiz federal em Brasília. Polícia Federal e procuradorias do Ministério Público poderão compartilhar esse tipo de informação com a agência desde que mantenham o sigilo.
“Ou você normatiza onde é possível, ou você vai dar carta branca para um agente fazer uma interpretação subjetiva.” Jô Moraes, deputada federal.
Nos EUA, um tribunal também é responsável por autorizar escutas da Agência de Segurança Nacional, a NSA. Com as revelações do ex-analista Edward Snowden em 2013, a corte foi duramente criticada após ficar claro que, sob sigilo, não servia como um sistema robusto de fiscalização.
Inteligência adversa estrangeira
O projeto foi criado em 2015 pela deputada mineira Jô Moraes, do PCdoB, ainda no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, a partir de sugestões de especialistas do Inasis. Trata-se de uma pauta suprapartidária que envolve militares e civis que tramita sob a vigilância do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
Para a deputada, o país está desprotegido diante de ações de “inteligência adversa estrangeira” e de organizações terroristas. O texto da proposta , que cita como referência às revelações de Snowden, defende que “o Brasil é extremamente frágil na proteção dos mais caros segredos da sociedade e do Estado brasileiros”. O objetivo, diz a deputada, é dar meios para a Abin fazer suas investigações e prevenir esse tipo de situação.
Moraes minimiza o alcance do texto e considera que única mudança prática será a permissão de entrada em residências e interceptação telefônica de estrangeiros não-residentes. “Ou você normatiza onde é possível, ou você vai dar carta branca para um agente fazer uma interpretação subjetiva”, diz. Ela também nega que a medida desrespeite os direitos dos cidadãos uma vez que boa parte das ações passariam pelo controle do Judiciário.
Contra vazamentos, prisão
A proposta pune quem fizer interceptações de comunicações ou usar outro método de investigação não permitido pela lei e quem vazar informações de ações de infiltração. Também é proibido obter ou produzir informação de inteligência motivado apenas por questões como raça; crença religiosa ou política; ou pertencimento a associações, partidos e sindicatos. Como mostrou The Intercept Brasil, a Abin administra um megabanco de dados de monitoramento de várias organizações, inclusive movimentos sociais.
“Corre risco de virar outra coisa, virar uma polícia secreta, em que nós não podemos fazer o controle dela” Gustavo Gus, consultor em segurança.
As punições vão desde multas até entre quatro e oito anos de prisão, além de outras punições. Também é possível ser enquadrado na lei de improbidade administrativa, casos que geram demissão, perda de mandato de políticos e proibição de contratar com o Estado ou receber benefícios fiscais.
Feitoza acredita que a proposta é avançada e permite ao Brasil ser “uma democracia forte com um serviço de inteligência forte”. O Brasil, diz, tem que “jogar o jogo” dos serviços de inteligência porque o poder militar e econômico, principalmente dos EUA, são muito mais fortes que organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas, a ONU.
Além de Feitoza, professor de direito processual penal e procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais especializado em serviços de inteligência, a proposta também contou com a colaboração de José Manuel Ugarte, um estudioso de serviços de informação da Argentina e professor de direito administrativo da Universidade de Buenos Aires; Joanisval Brito, ex-oficial de inteligência da Abin e consultor do Senado na Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência do Congresso; Eugênio Diniz, ex-oficial da Abin e professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas; e Vladimir Brito, agente da Polícia Federal na área de inteligência.
“Polícia secreta”
Consultor em segurança e privacidade e organizador do evento de criptografia CryptoRave, Gustavo Gus vê risco do projeto criar condições para usos não-republicanos da espionagem estatal, como ocorreu na época da ditadura militar. “Corremos o risco da proposta ultrapassar os limites democráticos de investigação, de algo que seria uma atribuição prevista na lei, de investigar possíveis atentados terroristas e crime organizado, e virar outra coisa, uma polícia secreta, que nós não podemos controlar.”
Mas Gus também entende que a Abin precisa ganhar novas atribuições. Ele lembra que a agência virou piada por produzir relatórios óbvios sobre ameaças na Copa do Mundo de 2014 e avalia que ela não tem capacidade investigativa, utilizando-se apenas de informações que recebidas da polícia e de outros órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). Com a proposta, avalia, a Abin poderia se tornar mais ativa.
Gus sugere que as investigações sejam feitas quando forem explícitos os alvos sobre os quais a Abin pretende colocar sua lupa. Outra medida seria aumentar o controle social sobre a Abin: ONGs de defesa de direitos humanos deveriam ouvir representantes da agência em audiências públicas e receber relatórios de atividades dela também, acrescenta Gus.
A fiscalização externa, no entanto, esbarra no sigilo da agência. “Como podemos cobrar transparência de uma organização que precisa ser secreta?”, diz.
O diretor de Assuntos Legislativos da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Vladimir Aras, afirma que o projeto coloca o país num dilema. Dar novos poderes aos agentes pode ser arriscado, mas não conceder esses poderes também apresenta risco alto. “É tema bastante sensível. Não pode haver desproteção dos interesses nacionais e não pode haver espaço para o abuso”, afirmou.
Já a diretora executiva da ONG Coding Rights, Joana Varon, vê a proposta como uma “total afronta a direitos fundamentais e ao equilíbrio de poderes”. Em vez de investigar, diz, a Abin deve se limitar a planejar, supervisionar e coordenar as atividades de inteligência no país. Para ela, se a agência precisar de informações, pode usar dados do Sisbin, do qual a PF também faz parte.
Ela lembra que a função da agência é subsidiar o presidente da República com informações de interesse do Estado. “Bastaria uma ordem judicial para que a Abin pudesse interceptar comunicações de qualquer um e informar ao presidente.”
O que é a Abin
A Abin é um órgão criado em 1999, mais de dez anos depois do fim da ditadura militar. Substituiu o Serviço Nacional de Informações, o SNI, que atuava com poderes de polícia nos anos de chumbo da repressão e até um pouco depois deles. Nas democracias modernas, órgãos de inteligência têm outras funções. A da Abin é “fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão”.
Mas o governo e Michel Temer colocou o órgão de volta sob a batuta dos militares, o que voltou a gerar desconfianças. Quem comanda a agência agora é o GSI, liderado pelo general Sérgio Etchegoyen. Apesar disso, o diretor da Abin não é um militar, mas o oficial de inteligência Janér Tesch.
O embrião da Abin, o SNI, participou do sistema que, na ditadura militar, torturou e matou opositores do regime. Como mostrou reportagem de Lucas Figueiredo para The Intercept Brasil, ações no mínimo pouco convencionais continuaram no período depois da redemocratização. Em 1986, durante o governo José Sarney e a Copa do Mundo do México, um relatório do serviço secreto apontava que brasileiros, em conluio com financiamento de agentes estrangeiros, principalmente alemães, planejavam se armar para praticar atos violentos e desestabilizar o Brasil. A ameaça seria a volta da luta armada, com engajamento do PT e da Central Única dos Trabalhadores. “A ameaça, claro, era apenas um delírio”, conta Figueiredo, autor de O ministério do silêncio: a história do serviço secreto brasileiro, de Washington Luís a Lula (1927-2005).
Retomada
Deputados que acompanham o projeto tentam fazer uma audiência pública este semestre e votá-lo na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Jô Moraes e o antigo relator da proposta, o petista mineiro Adelmo Leão, receberam em abril um documento do diretor da Abin, Jáner Tesch, com “adequações” ao projeto. Jô tem dialogado com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM carioca, e com o chefe do GSI para definir um calendário de votação.
A autora do projeto admite melhorar o texto, mas nega qualquer retrocesso à liberdade individual dos cidadãos ou restrição a ações legítima dos agentes. A agência de inteligência produziu um documento com sugestões de mudança no texto, mas não quis revelar seu teor.
O novo relator, Patrus Ananias, do PT mineiro, pretende apresentar uma nova proposta “ousada”, mas não adiantou detalhes.
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