Semana passada os generais responsáveis pela intervenção federal na segurança no Rio convocaram uma coletiva de imprensa para anunciar que, até o momento, gastaram R$ 2,5 milhões das Forças Armadas para desencadear os primeiros trabalhos no estado. Mas o valor real das ações da intervenção são muito maiores e inversamente proporcionais aos efeitos alcançados.
Dados obtidos pelo Intercept com base na Lei de Acesso à Informação (confira aqui a íntegra do documento) revelam que do início da intervenção – em 16 de fevereiro – até 30 de junho, as operações das Forças Armadas custaram ao contribuinte cerca de R$ 46 milhões. Foram 70 operações com, em média, 530 agentes. Cada uma custou cerca de R$ 428 mil.
Mas o preço total é ainda maior, uma vez que a conta exclui outras 18 operações listadas no documento que ainda não tiveram seus custos estimados. O valor do auxílio das polícias estaduais também foi desconsiderado, e outros pedidos feitos pela Lei de Acesso, ignorados.
Apesar de anúncios praticamente diários de megaoperações com milhares de militares e policiais, os resultados são pífios. Foram apreendidos menos fuzis, metralhadoras e submetralhadoras durante os meses de intervenção (92) do que no mesmo período de 2017 (145). “Muito tiroteio e pouca inteligência”, como resumiu o Observatório da Intervenção, iniciativa da sociedade civil para acompanhar os desdobramentos da medida.
Vila Kennedy: O laboratório da intervenção
“O Exército não dá jeito! A quem recorrer?”, me pergunta um homem que viu 13 incursões pontuais das forças do interventor na sua região este ano. “O Exército não voltará. Só se algo muito terrível acontecer”, emenda outro, ambos moradores da Vila Kennedy, o bairro da cidade que é “vice-campeão” de tiros nestes cinco meses de intervenção, perdendo apenas para a Praça Seca — ambos na zona oeste da capital carioca. Os dois pediram que suas identidades fossem preservadas por motivo de segurança. Seus depoimentos são indicativos do consenso crescente em grupos de WhatsApp, reuniões de ativistas e páginas locais de notícias.
Vila Kennedy, escolhido como o “laboratório da intervenção“, é o melhor exemplo do ceticismo em relação aos efeitos da intervenção federal no Rio. No início de março, cinco horas após uma megaoperação no bairro — já pacificado —, traficantes voltaram a erguer as barricadas retiradas pelos soldados. Nos dias seguintes, houve tiroteios intermináveis entre grupos rivais. O garoto propaganda da intervenção sucumbiu.
Pior: sucumbiu, assim como todo o estado, custando muito caro. Só cinco dos 39 batalhões da PM do estado sob o comando do interventor alcançaram os objetivos de reduzir a violência estipulados pela Secretaria de Segurança no início do ano.
Só na Vila Kennedy, as 13 operações custaram mais de R$ 16 milhões: uma média de R$ 1,5 milhão cada uma. As ações se concentraram no início da intervenção. Nas primeiras seis semanas, ocorreram oito. Depois, foram minguando: três em abril, uma em maio e outra em junho. Por fim, tudo ficou como antes, sob o domínio do tráfico. Ao menos três pessoas foram mortas e outras cinco feridas no período.
Prioridades
A Vila Kennedy registrou 131 tiroteios/disparos de arma de fogo entre janeiro de 2017 e junho deste ano, de acordo com um levantamento feito pelo laboratório de dados sobre violência armada, Fogo Cruzado. No mesmo período, a Praça Seca — o campeão de tiros, 18 km ao leste — registrou 202, com uma diferença. Onze dos tiroteios duraram mais de duas horas seguidas, totalizando 72 horas e 42 minutos de fogo cruzado. Todos eles ocorreram no Bateau Mouche, favela disputada entre o Comando Vermelho e a milícia desde o fim do ano passado. Longe dos holofotes, porém, o interventor optou por realizar apenas cinco operação na área, a mais violenta da cidade.
Na Taquara, bairro vizinho que também sofre um conflito sangrento entre o Comando Vermelho e a milícia nenhuma operação das Forças Armadas aconteceu. Em Campo Grande, o berço da maior milícia do estado, o interventor fez um total de zero operações.
Ou seja, os dados mostram que apesar do interventor ter dito que agiria contra a corrupção na polícia, na prática as operações das Forças Armadas vêm ignorando as áreas dominadas por milícias.
Milícias são forças paramilitares que são compostas majoritariamente por agentes públicos de segurança, e que ampliaram seu domínio nos últimos anos para ao menos 37 bairros e 165 favelas da região metropolitana, abrangendo mais de 2 milhões de moradores.
‘Já saí pra trabalhar e me deparei com corpos desovados em frente a minha casa.’
“O que chegou da intervenção na Praça Seca, mesmo depois de muito esforço dos moradores para dar visibilidade, foram operações esporádicas do Exército. Parece que a presença da milícia inibe a atuação das forças armadas”, disse uma agora ex-moradora do bairro, que cresceu no local. Ela se mudou há alguns meses, quando começou a perder compromissos por que não conseguia mais sair de casa devido à violência, e pediu anonimato por questões de segurança já que sua família segue morando no bairro.
“Na minha infância, a Praça costumava ser um bairro tranquilo. Depois, começaram tiroteios esporádicos, mas nada parecido ao que vem acontecendo de uns meses pra cá, em intensidade e frequência. Nunca presenciei nada parecido com o que tem acontecido. Já saí pra trabalhar e me deparei com corpos desovados em frente a minha casa”, diz. Para ela, que precisa se deslocar até a região central da cidade todos os dias, “a Praça Seca parece um ponto cego da cidade”.
Costa Verde
Saindo pelo oeste da cidade do Rio, um pitoresco litoral com praias de acesso restrito, cenário de novelas de Manoel Carlos, mansões de férias e bucólicas casas de pescadores, se estende até São Paulo. Angra dos Reis, uma das principais cidades da Costa Verde, é um paraíso cuja economia gira em torno do turismo. Mas entrou no noticiário por outro motivo: 14 dias ininterruptos de tiroteios, escolas fechadas e ruas centrais interditadas. O índice de homicídios na região aumentou 41% entre janeiro e maio de 2018 em relação ao mesmo período do ano anterior devido ao confronto entre duas facções rivais.
A atenção do poder público ao local se resumiu a uma única operação com 700 homens ao custo de quase R$ 2 milhões, um mês e meio depois. Resultado: dois homens presos por tráfico de drogas e associação para o tráfico e 70 kg de maconha e 140 cápsulas de cocaína apreendidos.
Questionados sobre qual o critério de escolha de áreas para as megaoperações realizadas pelas Forças Armadas, o Comando Militar do Leste disse que apenas que “trata-se de uma informação sigilosa”.
O preço do improviso
Decretada em 16 de fevereiro, a intervenção demorou quase 40 dias para receber do governo federal uma autorização de gastos de R$ 1,2 bilhão. Mas o início da liberação do dinheiro esbarrou na falta de estrutura burocrática, o que fez com que o Comando Interventor operasse por medida provisória, furando o teto de gastos estabelecido pelo próprio governo para congelar vários gastos federais. De acordo com a ONG Contas Abertas, nos primeiros quatro meses, só R$ 8.582,92 em compras haviam sido autorizados, mas nenhum centavo havia sido pago. O dinheiro foi utilizado para adquirir duas máquinas de picar papel, dois cilindros para impressoras e 16 cartuchos de toner.
Passados cinco meses, R$ 719.741,40 de compras foram aprovados — o que representa menos de 1% do orçamento disponibilizado pelo governo foi utilizado.
A confusão vai mais fundo também. O Comando Militar do Leste sustenta que “não há nenhum impacto no orçamento das Forças Armadas”, por causa da intervenção, “pois as despesas são provenientes da Lei Orçamentária Anual, cujos dados estão disponíveis no Portal da Transparência”. Porém, não há referência a intervenção federal no Rio no documento. A lei é aprovada no ano anterior aos gastos. Isso significa que, apesar de poder prever gastos semelhantes, não havia como saber o que seria gasto com a intervenção— ou mesmo que iria ocorrer uma intervenção federal na segurança do estado.
O Plano Orçamentário também foi solicitado pela Lei de Acesso, mas o Gabinete de Intervenção Federal informou que ele ainda está em elaboração e “conterá a previsão e programação da utilização dos recursos orçamentários disponibilizados para Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro”. Isto porque, “por se tratar de atividade inédita, sem disponibilidade de série histórica”, eles precisaram aguardar a conclusão de diagnósticos feitos pelo gabinete, “para definição dos investimentos a serem realizados”.
‘Isso revela um improviso da intervenção que atendeu as necessidades políticas e não as necessidades do Rio.’
“Entendo que, cinco meses depois de ter sido decretada, a intervenção ainda está na fase de planejamento, o que deveria ter precedido a medida. Isso revela um improviso da intervenção que atendeu as necessidades políticas e não as necessidades do Rio de Janeiro”, analisou Pablo Nunes, o coordenador de pesquisa do Observatório da Intervenção.
“Somado a isso, é difícil avaliar a eficiência dos gastos da intervenção porque não há transparência sobre todas operações. As informações sobre o efetivo das polícias, por exemplo, são insuficientes”, continuou Nunes. “Mas, mesmo assim, me parece excessivo haver uma operação que mobilize milhares de militares e se apreenda uma pistola e poucos quilos de droga. Isso reflete a insanidade que é essa política de guerra às drogas”, disse Nunes.
Essa avaliação acadêmica também está refletida na pista. “Eu não sou contra o Exército e muito menos contra a polícia. Eu sei que melhorou em relação aos tiroteios, a bagunça, até barricadas nas ruas”, desabafou um morador da Vila Kennedy. “Mas o que eu fico bolado é porque isso vai acabar daqui a alguns dias ou meses e vai voltar como era antes. Ou seja, não vai mudar nada”, finalizou, desanimado.
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