“Viram essa?”, piscou a mensagem de WhatsApp na tela do computador, seguida da propaganda de um candidato a deputado federal propondo o seguinte: “Se um pedófilo aborda o seu filho, você prefere que ele se defenda mostrando UMA ARMA ou MOSTRANDO A LEI DIZENDO QUE É CRIME? Os bandidos só tem medo de armas!”
“Contra os pedófilos: liberação do porte de arma para crianças e adolescentes”, disparou o Professor Michel Cascudo em sua página no Facebook. Minha primeira reação foi acreditar que o candidato e sua proposta fossem reais. “Era previsível que ia aparecer alguém assim”, devolvi, no grupo da redação. Lá, editores corriam ao site do TSE para conferir a situação do candidato e do seu Partido da Transformação Social, o PTS.
Faz sentido, afinal. Um candidato a deputado federal na Paraíba, Diego Dusol, do Novo (sic), disse que ruralistas devem ter direito a ter não apenas armas, mas “tanques de guerra” para se defenderem de trabalhadores sem-terra. Outro candidato do Novo incentivou crimes contra militantes da esquerda. Por que eu desconfiaria de Michel Cascudo?
Foi aí que nos tocamos que dar armas para crianças era absurdo demais até para os padrões da atual campanha eleitoral. O site do TSE não mostrava nada sobre o candidato.
Cascudo é fake.
Mais dois minutos e decidimos ir atrás dos criadores. Enviei uma mensagem pelo Facebook, não muito certo de que teria uma resposta – nem de qual seria ela. Foi com alguma surpresa que vi alguém bastante solícito responder em poucos segundos.
‘Oi, sou Rafaela quero trabalhar pra vc’.
“A ideia é satirizar a extrema direita”, me disse Renato, um gerenciador de mídias sociais de 33 anos, me passando seu número de telefone do Rio de Janeiro. Não contive um “Ufa” na resposta – até ali, me parecia possível que a ideia fosse espalhar propostas radicais para serem abraçadas por protofascistas de carne e osso. O que mostra o grau de irracionalidade que tomou conta do debate político no Brasil.
“Quisemos inventar o candidato mais bizarro possível para ver qual seria o potencial dele, com a galera odiando ou apoiando”, me contou Renato, que preferiu omitir seu sobrenome, mas disse ter alguma familiaridade com o universo político – revelou ter trabalhado em campanhas políticas desde 2010, inclusive na de um senador, em 2014.
Entre as “dezenas” de mensagens que a página recebeu – a maioria com ofensas às ideias defendidas ali –, uma chamou a atenção dos criadores. “Oi, sou Rafaela quero trabalhar pra vc Eu voto em vc”, disse uma moça que se identificou com o arrazoado do candidato fake. Espantado, Renato preferiu não responder.
“Por sorte, a maioria das interações ou leva a sério as propostas, mas reage indignado, ou percebe logo que é zoeira”, falou Renato, que não escondeu que isso também lhe trouxe algum alívio. “Eu estava realmente com medo das pessoas levarem o candidato fake a sério e começarem a espalhar isso em grupos de WhatsApp de família.”
‘Alcançamos meio milhão de pessoas.’
A inspiração do Professor Michel Cascudo é bem real e óbvia: Jair Bolsonaro. “Essa primeira postagem foi muito inspirada nele fazendo arminha na mão da criança. E o argumento é o mesmo que ele usa para defender o porte de armas para mulheres como solução contra estupros. Só usei crianças, em vez de mulheres. Está no limiar da realidade”, revelou Renato.
A página no Facebook é nova: entrou no ar na quarta-feira e, até o final da tarde seguinte, tinha 250 seguidores. Mas a postagem defendendo armas para crianças e adolescentes se espalhou rápido: mais de 4,5 mil compartilhamentos e 2,5 mil comentários. “Alcançamos meio milhão de pessoas. E sem patrocínio”, espantou-se o criador de Professor Michel Cascudo.
Renato trabalha auxiliado por uma amiga, Maria, de 29 anos, responsável pelo design da página. As fotos do candidato fake – negro, cabelos raspados e um sorriso amistoso perpetuamente no rosto – são na verdade de Michael Hancock, o prefeito democrata de Denver, cidade norte-americana do estado do Colorado, a primeira do país a liberar o consumo da maconha e que se tornou, por isso, uma espécie de Eldorado para hipsters e progressistas.
Trata-se de uma ironia calculada. “Procurei [fotos de um político] que tivesse um rosto que passasse por brasileiro e que fosse do Partido Democrata. Pesquisei a história dele [Hancock] e achei interessante. É um cara que está em evidência, e pode vir a ser um candidato a presidente dos EUA”, apostou Renato.
Enquanto eu batia esse texto, a segunda proposta do Professor Michel Cascudo já estava no ar: “Você prefere um país que invista na ciência, onde tenhamos pesquisadores descobrindo curas para doenças, pensando em novos meios de transportes, em novos combustíveis, em soluções arquitetônicas para as cidades ou FILÓSOFOS/ SOCIÓLOGOS falando em ‘direitos humanos’ para defender os bandidos e ensinando esquerdismo para as crianças? Acha justo nossos impostos pagarem faculdade de PINTURA e DANÇA em vez de pagarem cursos que serão úteis para a sociedade?”, ele bradou. “Minha ideia é: quer fazer faculdade de humanas? Faça, mas pague por ela. Faculdade pública deve ser de EXATAS.”
Quando eu já escrevia esse texto, veio a terceira. Proibição de votos para beneficiários do Bolsa Família – algo que já foi defendido, a sério, pela influente Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa, uma das maiores cidades do Paraná. “O perfil é fake, mas a ideia é correta”, empolgou-se um visitante.
“Nossa ideia, no final, é fazer um post revelando qual o objetivo da página e o perigo de uma candidatura assim”, contou-me um otimista Renato, ao final de nossa conversa.
Quando desliguei o telefone, vi que outra mensagem de WhatsApp piscava na tela. Uma colega compartilhava matéria sobre a visita de Jair Bolsonaro a Araçatuba, interior de São Paulo. “Você sabe dar tiro? Atira”, disse ele a uma criança. Em Glicério, a cerca de 40 km dali, o militar bradou a jornalistas: “Meus filhos todos atiraram com cinco anos de idade, real, não é de ficção nem de espoleta não, tá ok?”
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