HÁ UM SEQUESTRO em curso na esquerda. Os reféns são as políticas progressistas como Medicare [seguro-saúde] Para Todos, salário mínimo de US$15/hora, educação pública gratuita, um New Deal ecológico, e até mesmo a neutralidade de rede.
Os sequestradores? Acusações de preconceito feitas com má-fé.
De acordo com uma narrativa cada vez mais popular entre a centro-esquerda, uma parcela desanimadora dos progressistas seriam “reducionistas de classe”: pessoas que acreditam que a igualdade econômica seria a panaceia universal para os males da sociedade, e que, em razão disso, negligenciariam soluções políticas que procuram remediar disparidades de cunho identitário.
Obviamente, classe e raça são conceitos tão intimamente ligados que qualquer projeto político que pretenda resolver um desses problemas e ignorar o outro irá necessariamente prestar um desserviço a ambos. Como bem disse o senador independente Bernie Sanders, de Vermont, líder do movimento progressista, quando perguntei a ele recentemente sobre os debates intermináveis de raça vs. classe: “Não é uma ou outra. Nunca é uma ou outra. São ambas.”
O receio de que as questões de fundo identitário possam ser “jogadas aos leões” em prol de políticas mais populistas e “universais” tem fundamento. O Partido Democrata certamente já o fez no passado recente, por causas menos nobres que a igualdade de classe. A ironia, porém, é que a preocupação com o reducionismo de classe tem levado à adoção defensiva de uma ideologia igualmente regressista e improdutiva: o reducionismo racial.
Se você, como eu, é uma pessoa que está online, provavelmente já conhece o argumento principal. Funciona mais ou menos assim: se uma política não enfrenta o racismo “em primeiro lugar”, ela é racista, na pior das hipóteses, e, na melhor das hipóteses, não vale a pena investir nela.
Segundo uma variação popular desse tema, a proposta de Medicare Para Todos é supostamente racista e/ou machista porque não elimina a discriminação nos postos de atendimento, nem aborda completamente as necessidades reprodutivas femininas caso não seja adequadamente planejada. Talvez você se recorde da alegação do deputado James Clyburn de que faculdades e universidades gratuitas “destruiriam” as faculdades e universidades historicamente negras [instituições criadas durante o período de segregação racial nos EUA para atender à comunidade negra].
Ou quem sabe já tenha ouvido que o salário mínimo é “racista” porque “Acaba com os Empregos e Não Ajuda os Mais Pobres”, ou que seria uma demonstração de privilégio estar preocupado com a corrupção em Wall Street, porque só os ricos poderiam se importar com o que os bancos fazem com as hipotecas e aposentadorias de milhões de americanos. É possível até que você já tenha sido abordado pelo incrível discurso de que painéis solares em telhados causam danos às comunidades minoritárias.
O jornalista libertário Conor Friedersdorf recentemente entrou na briga com um artigo intitulado “Socialismo Democrata Ameaça as Minorias”. Qual argumento ele defende? Que o “socialismo hierarquizado” (que os progressistas desejam tanto quanto desejam um capitalismo hierarquizado) poderia criar uma tirania da maioria e colocar as minorias em risco. Ignorando completamente as falhas de mercado do sistema atual, e omitindo o preconceito e a violência disseminados que os negros americanos enfrentam no capitalismo, ele se faz de advogado do diabo ao mostrar preocupação com um mundo imaginário onde as mulheres negras teriam dificuldade de encontrar produtos adequados para o cabelo. Bem, esse já é o mundo onde vivemos.
Friedersdorf, porém, estava apenas aprofundando um argumento frágil usado por Hillary Clinton durante as primárias da campanha presidencial de 2016: “Se fatiássemos os grandes bancos amanhã”, ela perguntou, “isso acabaria com o racismo? Acabaria com o machismo? Acabaria com a discriminação contra a comunidade LGBT? Tornaria as pessoas subitamente mais receptivas aos imigrantes?”
Foi um engodo hábil e ousado: ignore essa saída estrutural que perturbaria o status quo, ela insinuou, porque isso não vai resolver as questões mais pessoais e viscerais que dizem respeito ao cerne da sua identidade.
Percebam que esse truque foi usado contra políticas que ameaçariam significativamente os interesses corporativos ou tradicionais: o setor de seguros, o setor bancário, o setor de energia, os credores. Como observou Ian Haney-López, professor da Faculdade de Direito de Berkeley e um importante estudioso da questão racial, quando discutimos a motivação por trás dessa forma de pensar, os Democratas tradicionais, da mesma forma que os Republicanos, “são financiados pelos grandes doadores. É claro que eles estão preocupados com os interesses dos 1% mais ricos.” Até parece que o verdadeiro interesse não é acabar com o racismo, mas impedir que liberais bem-intencionados apoiem políticas que perturbariam a base financeira do Partido Democrata.
Até parece que o verdadeiro interesse não é acabar com o racismo, mas impedir que liberais bem-intencionados apoiem políticas que perturbariam a base financeira do Partido Democrata.
A IRONIA CRUEL é que, embora isso não fosse acabar com o racismo, submeter os bancos ao fatiamento e a uma regulação adequada teria um efeito benéfico sobre a situação econômica, e, consequentemente, sobre o status social de americanos negros e hispânicos. Os bancos, se deixados por conta própria, sistematicamente concedem aos negros empréstimos com taxas de juros mais altas que as dos brancos com histórico de crédito pior. Ainda assim, pouco se falou de impacto racial quando, no começo do ano, 33 membros do Partido Democrata (incluindo 9 membros da Bancada Negra no Congresso) se juntaram a membros do Partido Republicano para derrubar proteções existente na Lei Dodd-Frank de Reforma de Wall Street.
Afroamericanos são desproporcionalmente prejudicados pelos empréstimos predatórios, e por isso estiveram entre os mais afetados pela crise financeira de 2008 (da qual os mais pobres ainda não se recuperaram). Obviamente, o propósito de fatiar os bancos era evitar a repetição do colapso que consumiu 40% da riqueza dos negros – o que está longe de ser apenas um problema incidental para os afroamericanos, que consideram a economia, o mercado de trabalho, a assistência de saúde e a pobreza questões mais importantes que as relações raciais, quando perguntados sobre suas principais preocupações políticas.
A alegação do deputado Clyburn de que faculdades e universidades gratuitas “destruiriam” faculdades e universidades historicamente negras também induz a erro. Essas instituições estão sofrendo uma escassez de recursos, e podem se prejudicar em alguma medida caso os pagantes de anuidade escolham outro destino. A defesa que Clyburn faz das instituições negras, porém, ignora o fato de que são os alunos negros que têm mais a ganhar com o perdão da dívida estudantil.
Embora exista uma disparidade entre brancos e negros no número de formados, os americanos negros na verdade se inscrevem e se matriculam com maior frequência do que os brancos no ensino superior. E por que não nos formamos? Um dos motivos no topo da lista é a impossibilidade de pagar. Alunos negros, mais do que qualquer outro grupo, são desproporcionalmente onerados pelo endividamento escolar. A ideia de que o ensino superior gratuito prejudicaria as instituições negras visa a insinuar que essa proposta seria “ruim para os negros”, e portanto, retrógrada (ou até mesmo racista). Tendo em vista que o oposto disso é verdade, seria fácil considerar que a interpretação de Clyburn é uma politização cínica contrária aos interesses da própria comunidade cujos interesses se considera que ele deveria representar lealmente. Dando a ele o benefício da dúvida por respeito à sua atuação histórica em defesa da comunidade negra, os comentários foram, no mínimo, equivocados.
Além disso, embora a imigração seja considerada a questão “hispânica” pela mídia, apenas um em cada dez latinos são ilegais – mas um em cada três hispânicos não idosos não tem seguro-saúde, o maior grupo demográfico do país nessas condições.
O excesso de policiamento é um problema crítico, mas enquanto um em cada seis negros será encarcerado em algum momento da vida, um em cada quatro negros americanos não tem seguro-saúde, em comparação com os 13% dos brancos não hispânicos. Mesmo a plataforma Black Lives Matter, que defende a assistência universal de saúde, reconhece que a assistência de saúde não é uma questão periférica para os negros nos EUA, mas existencial. A razão para que não seja percebida como um problema “não branco” é só uma questão de marketing, não de substância.
Então o Medicare para Todos vai curar o racismo? Não. Vai eliminar a discriminação nos postos de atendimento? Não, não vai. Mas continuar apostando no status quo também não vai. Aqueles que reprovam essas políticas macroeconômicas sob o argumento de que elas não irão acabar com o preconceito raramente propõem alternativas que o façam, nem sugerem reformas para aperfeiçoar as falhas dos programas universais. É esse fato, mais do que qualquer outro, que expõe a má-fé que move pelo menos uma parte dos reducionistas raciais.
Nina Turner, presidente do grupo Our Revolution [Nossa Revolução] e ex-representante de Bernie Sanders, descreveu como “ridículo” o reducionismo racial. “A identidade pode ser usada de forma positiva para dizer ‘olha, precisamos reconhecer que há uma preocupação subjacente a todas as questões deste país’, para a qual a raça é uma ‘variável fundamental’”, ela me disse. “Mas é completamente diferente dizer que vamos pegar algumas das propostas e dos avanços mais progressistas deste país e dizer que não podemos implementá-los porque eles são prejudiciais [às populações marginalizadas]. Para mim, isso é simplesmente idiota.”
Ela está certa.
NEM SEMPRE FOI assim. Antes dos anos 1980, o partido de esquerda era o partido do trabalho, e os movimentos de direitos civis dos anos 1950, 60 e 70 estavam indivisivelmente ligados a questões de classe. A. Philip Randolph e Bayard Rustin trabalharam em conjunto no Orçamento da Liberdade Para Todos [Freedom Budget For All], em 1966, uma iniciativa que atacava a pobreza dos negros atuando diretamente em sua origem: a escassez de empregos bem remunerados para trabalhadores de baixa qualificação. Descrita coloquialmente como a Marcha sobre Washington, o nome oficial da manifestação histórica era A Marcha por Empregos e Liberdade. Dali a cinco anos, Dr. Martin Luther King Jr. foi assassinado depois de declarar guerra à pobreza e ao imperialismo dos EUA – movimentos de amplo alcance que ameaçavam as instituições e questionavam não só a distribuição dos recursos pelos diferentes grupos raciais, mas a legitimidade do nosso próprio sistema econômico capitalista.
Mas esses dias ficaram para trás, massacrados pelos interesses corporativos que temiam a força popular e desenvolveram uma estratégia para derrotá-la. Os ataques à legislação trabalhista enfraqueceram os sindicatos exatamente no momento em que os negros estavam ganhando acesso a eles e obtendo incríveis benefícios da atuação coletiva. E, na sequência da humilhante derrota de George McGovern na eleição presidencial de 1972, o Partido Democrata se comprometeu com as empresas como fonte mais confiável de apoio. No fim das contas, tendo a direita se apropriado claramente do discurso pró-branco, para onde a “base” de pele mais escura deveria ir?
Quando o Partido Republicano fez a guinada rumo à “Southern Strategy” nos anos 1960 [“Estratégia Sulista”, uma estratégia eleitoral para angariar votos no Sul dos EUA], unindo brancos ricos e pobres sob a promessa de que sempre teriam superioridade racial, os Democratas posicionaram seu partido como um refúgio para todos os demais. Em consequência disso, a identidade passou a ter importância central para os liberais. Não é apenas uma forma útil de enquadrar as experiências que derivam de características amplamente compartilhadas, nem sua relevância política se limita a um importante valor de organização. Atualmente, as identidades que não sejam brancas, cisgênero, heterossexuais e masculinas são fundamentais à compreensão que o Partido Democrata tem de si mesmo, e à sua persistência. Assim como o significante desajeitado “pessoas não brancas”, o partido se define por meio de sua relação com um status quo branco e masculino. A coalizão depende disso por sua própria natureza.
Não é de se espantar, portanto, que a identidade tenha se tornado um para-raios, e que as críticas à política identitária causem tanta polarização.
BASTA ANALISAR A defesa da política identitária que a imaginada pré-candidata à presidência em 2020, senadora Kamala Harris, fez na conferência Netroots, no começo desse mês.
Aparentemente desconhecendo ou ignorando a crítica feita pela esquerda à política identitária, ela argumentou que o termo é usado para “dividir e para distrair. Seu propósito é minimizar e marginalizar questões que atingem a todos nós.” “É usado para tentar nos calar”, disse ela.
Isso certamente se aplica no caso da direita política, que em geral rejeita a política identitária porque reconhecer sua validade implicaria admitir que as identidades se tornam politizadas em resposta à opressão sistêmica (que eles negam que exista), não em rejeição ao individualismo.
Mas a crítica da esquerda não é realmente à política identitária, e sim, à instrumentalização cínica da identidade para fins políticos. Ao igualar as duas coisas, Harris, ainda que não tenha sido esse o seu intento, deslegitimou a crítica da esquerda e deu força para que o Partido Democrata continue instrumentalizando as identidades impunemente.
Esse reforço da política identitária não é apenas uma defesa contra os ataques da direita à igualdade material. É também uma preparação para a guerra contra os candidatos de esquerda que entrarão na arena em 2020.
Harris afirmou que não seria dissuadida de falar sobre os direitos dos imigrantes e das mulheres, sobre a justiça igualitária, e sobre outras preocupações relativas a grupos marginalizados. E nem deveria. Mas suspeito que esse reforço à política identitária não seja apenas uma defesa contra os ataques da direita à igualdade material. É também uma preparação para a guerra contra os candidatos de esquerda que entrarão na arena em 2020.
A RAZÃO ESSENCIAL para que alguns Democratas tenham adotado essa abordagem parece óbvia. No confronto com a contestação da esquerda, a tática usual do Partido Democrata de se comparar favoravelmente aos Republicanos não funciona. Quando as instituições ofereceram um salário mínimo de US$12/hora em 2016, Bernie Sanders argumentou que US$15 seria melhor. Quando Hillary Clinton buscou proteger o Affordable Care Act, Bernie Sanders disse que a legislação ainda não era o suficiente.
Em seu livro de 2017, “What Happened” [“O que aconteceu”, sem tradução no Brasil], Clinton falou explicitamente do quanto achou frustrante concorrer com Sanders:
“Jake Sullivan, meu principal consultor político, dizia que aquilo o lembrava de uma cena do filme de 1998 “Quem Vai Ficar Com Mary?” Um mochileiro destrambelhado dizia ter elaborado um plano brilhante. No lugar da conhecida rotina de exercícios “abdominais de oito minutos”, ele faria propaganda dos “abdominais de sete minutos”. É a mesma coisa, só que mais rápida. Então o motorista, representado por Ben Stiller, diz: “bem, então por que não abdominais de seis minutos?” Era assim que funcionavam os debates sobre políticas com Bernie. Nós propúnhamos um plano de investimentos ousado em infraestrutura ou um ambicioso novo programa de aprendizagem para os jovens, e Bernie anunciava basicamente a mesma coisa, mas maior.”
Hoje, a maior parte dos pré-candidatos para 2020 parece ter respondido à popularidade do movimento progressista simplesmente encampando várias das suas prescrições políticas. (De certa forma eles precisam: Medicare Para Todos deixou de ser algo que Clinton insistia que “nunca, jamais” aconteceria, e se tornou uma política apoiada pela maioria do público americano – inclusive pelos Republicanos.)
Alguns ainda usam uma estratégia híbrida, que combina uma virada à esquerda com o ataque ao progressismo sob o pretexto de combater o preconceito. Isso precisa acabar, antes que acabe mal.
NO ENTANTO, A preocupação de que políticas materiais amplas possam replicar, reforçar ou aprofundar padrões de discriminação é legítima. É verdade que, no passado, programas “universais” foram distribuídos de forma desigual, e, às vezes, racista.
Esse não é, porém, um motivo para evitar iniciativas que visem à igualdade econômica até um tempo distante em que o racismo tenha sido curado. É, na verdade, um incentivo para aprimorá-las.
Rhiana Gunn-Wright, a diretora de políticas do ex-candidato ao governo de Michigan Dr. Abdul El-Sayed e o cérebro por trás do seu abrangente conjunto de propostas políticas, compreende isso. Numa entrevista recente, ela explicou que adota uma abordagem “interseccional” das políticas, em referência à compreensão da professora de Direito da Universidade de Columbia, Kimberlé Crenshaw, de que as identidades interseccionam, sobrepõem e diversificam as prioridades dos indivíduos dentro das categorias amplas de grupos de identidade.
Gunn-Wright considera que programas “universais” são validamente criticados quando adotam uma filosofia de “fazer o bolo crescer”, que pode ignorar ou reforçar as disparidades entre os grupos. Mas ela diz que os responsáveis pelas políticas podem atuar na prevenção desse resultado. “A análise da interseccionalidade dizia respeito a como os sistemas são pensados: ou com desatenção a todas as identidades, ou em atenção a uma identidade de cada vez, ignorando assim as pessoas que vivem nas intersecções dessas identidades”, ela me falou. Esse é, porém, um problema de projeto – não um argumento contra os programas econômicos amplos.
“Acho muito interessante que a interseccionalidade tenha se tornado uma palavra da moda, e dá para ver que muitas pessoas captaram o sentido sem nunca terem lido nada da mulher negra que criou o conceito”, disse Gunn-Wright. “Jamais conseguiria imaginar Kimberlé Crenshaw dizendo: ‘Quer saber? Nós definitivamente não deveríamos ter um sistema de saúde pública até resolvermos a questão de raça’.”
“Jamais conseguiria imaginar Kimberlé Crenshaw dizendo: ‘Quer saber? Nós definitivamente não deveríamos ter um sistema de saúde pública até resolvermos a questão de raça’.”
Nenhuma identidade jamais deveria ser deixada de lado. Como me disse Haney-López, “há um risco em se pensar exclusivamente em termos raciais. Porém, é preciso de certa forma buscar um equilíbrio entre o que seria esse risco e como ele se relacionaria à dinâmica política dominante, e qual seria a solução, porque ao mesmo tempo em que existe um risco de se falar sobre a questão racial, há um risco imenso de apagá-la.” Ele está certo. Mas embora eu compreenda de onde vêm as preocupações com a “descentralização” da questão racial, não existe um “centro” fixo na interseccionalidade. Não é um jogo de soma zero.
“Nós pensamos que raça, em especial, é puramente uma questão social e não está ligada à economia ou à justiça reprodutiva ou criminal”, disse Gunn-Wright, argumentando que, na verdade, tanto classe quanto raça são sempre parte da equação. “Acho que as identidades são incrivelmente importantes e moldam a forma como nos movemos pelo mundo, movem a forma como as pessoas nos tratam e como o governo nos trata (…) Mas isso simplesmente foi empregado de uma forma que impede o progresso em vez de abraçá-lo, e que presume de uma forma muito estranha que as pessoas negras não desejariam esse tipo de progresso, ou não se beneficiariam dele.”
O Dr. Touré Reed, professor de História Estadunidense e Afro-Americana do Século XX na Universidade Estadual do Illinois, observou que a presunção de que os negros americanos não estejam igualmente ou até mais envolvidos nas intervenções econômicas em relação aos brancos está “repleta, é claro, de presunções de classe” que funcionam bem para a classe média profissional de pessoas negras e latinas – muitas das quais desempenham um papel significante na definição das narrativas públicas por meio de seu trabalho na política ou na mídia. Uma vez que “as principais beneficiárias das políticas universais seriam as pessoas pobres e da classe trabalhadora, que seriam desproporcionalmente negras e pardas”, ele me disse, “dispensar tais políticas ao argumento de que não estariam lidando com o racismo sistêmico é uma espécie de manipulação”.
“Dispensar tais políticas ao argumento de que não estariam lidando com o racismo sistêmico é uma espécie de manipulação”.
A interseccionalidade, a “palavra da moda” adotada com tanto fervor pelos Democratas tradicionais em 2016, exige o reconhecimento de que, da mesma forma que raça e identidade sexual, classe é uma dimensão que media a perspectiva dos indivíduos. Isso significa que a hashtag #trustblackwomen [“confie nas mulheres negras”] não deveria confrontar os interesses de Oprah, uma bilionária, com os de ninguém. Da mesma forma, não se deveria presumir que todos os negros ou latinos alcancem igualmente os interesses das pessoas não brancas pobres e da classe trabalhadora. Fica fácil assimilar a verdade dessa afirmativa quando os Democratas pensam em figuras como Ben Carson ou Ted Cruz. Mas é mais difícil engolir essa realidade quando pensamos em um dos nossos.
NADA DISSO SIGNIFICA que raça, gênero, sexualidade e classe sejam dados equivalentes em todos os cenários. Atletas negros abastados ainda são abordados pelos policiais a despeito de sua riqueza, e professores negros de Harvard ainda são presos enquanto tentam destrancar suas próprias portas. O fato de que o racismo também prejudica as pessoas com privilégios econômicos, porém, não é uma “prova” de que a classe não importa, como alguns reducionistas raciais alegam. É simplemente uma afirmação de que o racismo também importa.
Considerem, por exemplo, a revisão que meu colega Zaid Jilani fez dos dados abrangentes sobre tiroteios policiais em 2015, em que ele descobriu que 95% dos tiroteios policiais haviam ocorrido em bairros onde a média da renda familiar era inferior a cem mil dólares anuais. Lembrem-se que Philando Castile foi abordado, em parte, por ter recebido dezenas de autuações de trânsito descritas como “crimes de pobreza” pelo defensor público local Erik Sandvick. Deixar de apresentar comprovação de seguro, dirigir com a luz traseira queimada – são deslizes muito pouco aristocráticos. Privilegiada é a ficção de que não há diferença entre os abusos sofridos por atletas negros ricos e os negros das classes trabalhadoras como Philando Castile. A raça pode aumentar suas chances de ser alvo e sofrer abuso. O dinheiro pode ajudá-lo a sobreviver ao abuso e a buscar justiça – algo que infelizmente está fora do alcance de Castile [ele foi morto pelo policial durante a abordagem de trânsito].
“Há uma tendência a se reduzir problemas que têm muita relação com as oportunidades econômicas disponíveis para todos os americanos, inclusive os afro-americanos, e que muitas vezes são mais representados entre estes, a questões raciais”, explicou o Dr. Reed, que está escrevendo um livro sobre as consequências conservadoras do reducionismo racial. Ele apontou a crise hídrica em Flint, Michigan e o encarceramento em massa como exemplos. “Em ambos os casos, Flint e o sistema de justiça penal, os brancos são 40% ou quase 40% das vítimas”, disse. É um número absurdamente alto para ser apenas dano colateral.” E continuou: “Existe algo sistêmico em jogo , mas não pode ser reduzido, nem redutível, à questão racial.”
APROXIMADAMENTE UM MÊS atrás, em preparação para escrever este artigo, fiz um pedido no Twitter para que as pessoas me lembrassem de tuítes ou artigos que tivessem enquadrado políticas públicas injustamente como negativas porque não colocariam um fim no preconceito. Eu esperava receber umas dez ou doze respostas. Mas a thread já está com mais de 200 posts, e já foi retuitada mais de duas mil vezes. A escala disso é desanimadora.
Sally Albright, consultora de comunicação do Partido Democrata, defende que o ensino superior gratuito é “racista” porque são principalmente as pessoas brancas que vão à faculdade e isso reforça o status quo.
A Analista Jurídica Sênior do site Rewire News e figura popular no Twitter Imani Gandy deu a entender aos seus 124 mil seguidores que se preocupar com Wall Street é uma prova do privilégio branco: “Eu adoraria que, ao acordar de manhã, meu primeiro pensamento fosse ‘eu odeio Wall Street’. É a coisa mais branca que já ouvi.”
Num veio semelhante, Deray McKesson, autor de um conhecido podcast, defensor do sistema de “charter schools” e ícone do movimento Black Lives Matter retuitou um tuíte que dizia: “Wall Street não indicou um Sec de Educação que acreditava que armas e bíblias [sic] tinham mais espaço nas escolas que alunos LGBT e com deficiências”, insinuando que, uma vez que Wall Street não tem culpa das políticas anti-LGBT, a indústria financeira não merece qualquer crítica dos americanos negros e/ou LGBT.
Quando alguém comentou que o colunista do New York Times Charles Blow não deveria estar tão incomodado com uma alíquota de mais de 50% de impostos para os ricos porque os impostos eram ainda mais altos na época do New Deal, Blow respondeu com um tuíte: “Fique à vontade para voltar aos anos 30. Não foi tão bom para o meu pessoal” – como se uma alíquota alta de imposto exigisse um retorno ao terrorismo das leis Jim Crow.
Uma figura anônima, mas bastante popular no Twitter, desdenhou de um programa de garantia de emprego porque os negros “tiveram 100% de emprego durante 250 anos”, falando da escravidão, e isso “não ajudou” com o racismo.
Um artigo de Monica Potts na revista Vice declara apoio à assistência de saúde de pagador único, mas ao mesmo tempo alerta contra o plano de Sanders sob o argumento de que acabaria com os empregos das mulheres de baixa renda – como se não importasse o fato de que daria a essas mesmas mulheres a assistência de saúde que elas hoje não têm numa escala desproporcional. (O argumento de que qualquer programa que acabe com empregos causaria menos danos caso existisse uma forte rede de segurança social é bom, mas parece ignorar que o plano de Sanders é proposto em conjunto com medidas de fortalecimento exatamente dessas redes de segurança a que ela se refere.)
Terrell Jermaine Starr, um jornalista da revista The Root conhecido por escrever artigos sobre o suposto “problema negro” de Sanders, fez um relutante reconhecimento à nova proposta de lei do senador, que trata das desigualdades na aplicação das fianças judiciais, em uma coluna intitulada mesquinhamente: “Bernie Sanders Enfrenta o Injusto Sistema de Fiança Judicial, mas Ainda Não Faz Ligação Direta com o Racismo Institucional.”
Sally Albright destilou em um tuíte a essência dessa predominante variedade de crítica: “Desculpe, pessoal, não há como evitar, se você diz que uma política ‘ajuda todos os americanos igualmente’, essa política é racista. O racismo estrutural precisa ser enfrentado.”
Felizmente, alguns dos piores desses interlocutores não são muito conhecidos, embora tenham influência relevante no Twitter. O usuário anônimo que defendeu que é preciso manter o capitalismo porque “Acabar com o capitalismo IRÁ afastar os não brancos. Dinheiro é o que nos mantém no jogo”, ou o tuíte de Sally Albright dizendo que “’Desigualdade de renda’ só é uma prioridade para homens brancos cis” não importam, no fim das contas. O que me preocupa é que a crescente popularidade dessa forma de pensar tornará bem mais fácil para os políticos explorar a preocupação de boa fé da esquerda com as disparidades identitárias para dispersar o entusiasmo por políticas que busquem transformar o status quo econômico.
Acabar com o racismo é um objetivo necessário, fundamental. Mas esse objetivo deveria ser perseguido em conjunto com os esforços para enfrentar os efeitos do racismo. A disparidade salarial, educacional, de assistência de saúde, de endividamento – todas essas disparidades poderiam ser reduzidas por programas econômicos progressistas e interseccionais. À medida que a opinião popular se consolida em torno dessas políticas, é crucial que não deixemos nossos impulsos mais nobres serem instrumentalizados contra os nossos interesses, mais do que os conservadores instrumentalizam contra os interesses dos eleitores os seus piores impulsos.
Tradução: Deborah Leão
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