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Amazonino Mendes estava morto em maio do ano passado. Ao menos era a notícia que corria pelo WhatsApp. Mais longevo e influente político da região amazônica, Mendes estava afastado dos holofotes desde que deixara a prefeitura de Manaus, há cinco anos. Quando soube, ainda no hospital, sobre sua morte, ele correu à imprensa para dizer que, bem, estava vivo. A segunda vida do político de 78 anos o levou de volta para seu habitat natural depois de uma eleição extemporânea no estado – ele foi eleito governador do Amazonas em 2017 quando José Melo foi cassado por compra de votos.
Já que estava lá, Amazonino decidiu ficar. Hoje, ele concorre à reeleição com uma carta que tirou da manga: seu principal garoto-propaganda é o advogado de Donald Trump. Juntos, eles prometem nada menos do que resolver a crise de segurança pública do maior estado do Brasil com know-how importado. Existem motivos de sobra para acreditar que os mais de R$ 5 milhões gastos com o ex-procurador, ex-prefeito de Nova York e atual advogado do presidente dos Estados Unidos vá para o ralo. Nós voamos para Manaus para contar a história da consultoria de Rudolph Giuliani na floresta.
David dos Santos tinha apenas 17 anos quando foi morto com um tiro nas costas na periferia de Manaus. Ele correu quando viu homens armados descendo uma rua disputada pelo tráfico. Vimos o corpo de David no chão enquanto seus familiares se abraçavam, soluçando e lamentando, diante de homens do IML que o içavam numa prancha de metal até a caminhonete. Uma tia disse que ele frequentava uma igreja evangélica. Um vizinho disse que ele já tinha trabalhado para o tráfico. “Ele não queria essas coisas para a vida dele”, lamentou sua irmã. Como os demais, ela se recusou a fornecer seu nome por medo de retaliação.
A cena de corpos sendo carregados em caminhões do IML é corriqueira. Apenas em julho, a cidade de 2,1 milhões de habitantes – uma ilha abafada de asfalto no meio da selva – foi sacudida por 113 mortes violentas, muitas delas atribuídas à guerra entre as facções que disputam o controle do lucrativo comércio local de drogas. Capital do Amazonas, Manaus está situada na rota de fuga das lanchas que levam toneladas de cocaína e maconha rio abaixo, vindas dos vizinhos Peru e Colômbia. As disputas locais ganharam notoriedade mundial em janeiro de 2017, quando 56 presos foram esquartejados em uma sangrenta rebelião em um presídio.
A criminalidade brutal no norte do país aumenta o apoio aos candidatos linha dura. É nisso que reside a maior aposta de Amazonino Mendes: 63% dos amazonenses se preocupam com a segurança pública no estado, revela uma pesquisa do Ibope de agosto. De olho nisso, o governador pelo PDT resolveu chamar Rudolph Giuliani para ajudar sua campanha de reeleição, assinando um controverso contrato de consultoria no valor de R$ 5,6 milhões com sua empresa, a Giuliani Security & Safety (GSS).
Giuliani ficou famoso como procurador antimáfia na década 80, virou celebridade nacional como um prefeito linha dura contra o crime em Nova York na década 90 e ficou internacionalmente conhecido exercendo este mesmo cargo depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. Antes mesmo de sair da prefeitura, já estava formando sua equipe para lançar uma empresa de consultoria privada que o tornaria multimilionário, empregando sua experiência e seus contatos no poder público para empresas privadas e governos estrangeiros como o do Amazonas. Sua empresa já prestou serviços a várias cidades da América Latina, com resultados discutíveis.
Giuliani também virou a cara pública da equipe jurídica do presidente dos EUA este ano, e sua performance levou a revista New Yorker a chamá-lo de “o palhaço do Trump”: na primeira vez em que ele estava na TV como advogado de Trump, ele desmentiu afirmações do próprio presidente, sem se dar conta. Além disso, vozes proeminentes em Washington alegam que servir a governos estrangeiros e ao presidente dos EUA simultaneamente seria um conflito de interesse, mas ele discorda.
Rudolph Giuliani é uma figura.
“Ele diz que precisamos fortalecer a polícia. Mas isso é lógico!”
O contrato assinado em 7 de maio entre o governo do Amazonas e a empresa de Giuliani prevê uma consultoria em três fases: analisar a situação da criminalidade, seu sistema prisional e sua estratégia de fronteira. Isso em um estado que nada tem a ver com NY: 1,57 milhão de quilômetros quadrados, onde os rios são o principal meio de transporte, tomados por facções mais equipadas e bem pagas do que a polícia. O departamento de combate ao narcotráfico tem apenas cinco lanchas para percorrer dois rios imensos que chegam a tomar uma semana de viagem até a fronteira extrema da Amazônia com Peru e Colômbia.
A primeira parte do trabalho é uma “avaliação de campo” sobre legislação brasileira e eficiência da Polícia Civil. Basicamente, se informar sobre como funcionam as leis, olhar dentro da corporação e dizer o que precisa ser mudado, algo que estudiosos e agentes locais já sabem de cor, há anos. “Essa consultoria veio nos dizer o que já sabíamos”, disse Ney Gama, um dos agentes da trabalhosa divisão de homicídios da Polícia Civil do Amazonas. “Que nós precisamos fortalecer a polícia. Mas isso é lógico!”
A GSS já recebeu R$ 1,6 milhão para isso. O juiz João Medeiros e os outros magistrados da Vara de Execuções Penais se reuniram com quatro integrantes da empresa: San Luongo, Steven Haimowitz, Peter Cursio e Sebastian Cruz. “Eles queriam informações sobre como funcionava a audiência de custódia [quando o juiz ouve o preso logo depois da prisão e decide se ele será solto ou não]. Conversamos em um dia, e no outro visitamos um presídio”, nos falou Medeiros.
Rudolph Giuliani esteve em Manaus no final de junho para entregar os resultados da primeira fase. Ele participou de uma entrevista coletiva. O evento foi amplamente divulgado, mas o conteúdo do relatório é um mistério. De concreto, até agora, Amazonino Mendes disse em sua propaganda política que “a primeira orientações da GSS foi criar o programa GuardiAM 24h”, um trocadilho com as siglas do Amazonas que promete “usar tecnologia para monitoramento e prevenção de crimes”.
Se já pagou R$ 1,6 milhão aos americanos por essa parte do contrato, o governo do Amazonas não parece ainda ter investido no programa em si. Nenhum gasto ligado ao GuardiAM 24h pode ser encontrado no portal Transparência do estado. Curiosamente, o link onde deveria estar a lista de programas está vazio.
O site do governo estadual tampouco ajuda. Ele está fora do ar sob alegação de “atendimento ao TSE e à Lei Eleitoral”, para, “no período de 07 de julho até o final das Eleições 2018”, tirar de circulação “todas as informações governamentais de cunho institucional contidas neste endereço eletrônico”. Uma interpretação convenientemente criativa da lei. Ao contrário de outros estados – que mantém em seus sites toda a parte de serviço ao cidadão – o governo do AM derrubou todo o site em pleno ano eleitoral, escondendo informações.
A fase dois, que começou em agosto, examina as unidades prisionais do Amazonas, que, como na maior parte do país, são perigosamente superlotadas, violentas e estão sob forte influência das facções do tráfico. Vai custar R$ 1,9 milhão. O resultado desse trabalho deverá ser entregue em outubro. “Uma pessoa que vem de Nova York não conhece o sistema penitenciário da América Latina”, diz Luís Valois, juiz da vara criminal que ajudou a negociar o término da rebelião de 2017. “Nós temos pessoas, inclusive policiais e professores, que têm muito mais conhecimento”.
“As facções disputam o domínio da cidade, da rota, à base de violência”, disse Paulo Mavignier, chefe do Departamento de Investigação sobre Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil no Amazonas. A principal delas é a Família do Norte, que liderou a rebelião de janeiro de 2017 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, com o objetivo de eliminar os adversários do Primeiro Comando da Capital, o PCC, criado em São Paulo. O saldo foi tenebroso: 56 corpos esquartejados, estripados e decapitados. Depois disso, dezenas de presos foram assassinados violentamente em rebeliões de retaliação em outros estados.
O coronel Cleitman Coelho, secretário de administração penitenciária, nos contou que recebeu uma equipe com experiência em administração prisional no Texas. “Eles foram mais ouvintes. Nós apresentamos aquilo que entendemos que possa melhorar, mostramos o que estamos fazemos e quais são as nossas necessidades.”
A última parte do contrato diz respeito às fronteiras. É a mais cara: R$ 2 milhões. É justamente nessa fase que está um dos maiores obstáculos enfrentados pela GSS. Em um ofício ao qual o Intercept teve acesso, datado de 15 de maio, a Polícia Federal em Manaus se recusou a marcar uma reunião técnica com a equipe de Giuliani. “Informo a impossibilidade de agendamento da visita técnica solicitada, nos termos propostos, em razão de não estarmos autorizados a iniciar tratativas institucionais dessa natureza”, diz o ofício. “Foi determinado que a gente não tivesse nenhuma participação. É uma relação entre o estado e uma instituição privada”, disse o delegado da Polícia Federal Leandro Almada. Na prática, a PF se recusou a passar informações estratégicas sobre as fronteiras do Brasil para uma empresa privada estrangeira, com ligações próximas a um governo de outro país.
Jacqueline Muniz, professora adjunta do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, considera que o que a GSS está oferecendo “funciona como um cardápio de soluções pré-estabelecidas” com o efeito de “publicidade e marketing”. Ela entende que o dinheiro deveria ter sido empregado em um programa de redução de violência para jovens pobres.
A GSS não respondeu às perguntas enviadas sobre o contrato e o trabalho da empresa em Manaus. Por e-mail, sua representante na América Latina, Kellen Dunning, encaminhou os questionamentos sobre a consultoria para o governo do estado. “A GSS não discute com terceiros quaisquer questões relacionadas a contratos e propostas submetidas a quaisquer clientes”, disse Dunning.
A ressurreição de Amazonino
Amazonino Mendes virou governador há menos de um ano e lidera nas intenções de voto com 30%, de acordo com o último levantamento do Ibope. Na campanha, segurança é um palanque forte, e a consultoria da GSS é central. Giuliani virou personagem frequente nos programas de TV do candidato. O segundo colocado, o senador Omar Aziz, do PSD, criticou o acordo em propagandas eleitorais, citando reportagens do jornal The Washington Post que questionam a eficácia da consultoria. Amazonino tentou barrar as peças e criticou o jornal americano. O TRE negou o pedido.
O que para Aziz é custo injustificável, para Amazonino é ótimo negócio. “O que são R$ 5 milhões para uma consultoria desse nível? Para a equipe do Giuliani é preço simbólico. Ele só aceitou porque é a Amazônia”, defendeu o governador, apelando ao exotismo.
Em um vídeo de campanha, Amazonino coloca a GSS na linha de frente: “Quando se tem uma doença grave, o ideal é procurar o especialista. Foi o que fizemos. Procuramos a melhor consultoria de combate ao crime no mundo. Chama-se Rudolph Giuliani.” Nas ruas, adversários e desafetos não deixam de notar um esqueleto no armário do Amazonino que hoje se mostra internacionalmente preocupado com a segurança.
Em 2009, quando Amazonino era prefeito de Manaus, seu vice, Carlos Souza, foi preso por suspeitas de envolvimento com o tráfico de drogas. Wallace Souza, um dos irmãos do vice-prefeito e um famoso apresentador de TV local, também foi preso. Ele foi acusado de assassinar traficantes para aumentar a audiência do programa de televisão que apresentava à época, uma espécie de Datena.
O procurador da República no Amazonas Alexandre Jabur criticou a “atitude midiática” do governo atual ao assinar o contrato sem licitação em um estado onde a corrupção é endêmica. “Há desvio de dinheiro, obras inacabadas, obras não feitas”, disse ele. “Os órgãos de controle, no geral, são pífios.” Jabur liderou a investigação que culminou na prisão do ex-governador José Melo em dezembro de 2017.
Com oito meses de mandato, o governador foi acusado pela oposição de já ter dispensado 301 licitações, o que equivale a cerca de R$ 290 milhões. Enquanto contraia débitos, ele também deixou de pagar fornecedores da gestão anterior. “Paga quem ele quer, quando quer. E isso é uma porta aberta à corrupção, porque, se você é amigo do secretário ou tem uma influência política, você pode receber mais cedo”, critica o procurador Jabur.
Resultados questionados em Nova York e na América Latina
Como prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani e seu chefe de polícia William Bratton receberam o crédito por uma queda brusca nos índices de criminalidade depois de implementarem a “teoria das janelas quebradas”, que pretende reduzir a criminalidade por meio de uma abordagem dura a todas as infrações e contravenções menores como mendicância, pichação ou vandalismo.
Esses resultados, porém, estão sendo cada vez mais questionados. Alguns críticos observam que, ao longo dos anos 1990, a criminalidade diminuiu em várias cidades americanas, acompanhando a melhora econômica. Outros argumentam que as estratégias de “tolerância zero” levaram a abusos policiais e mortes.
“Não há absolutamente nenhuma boa evidência empírica de que a estratégia dele tenha funcionado”, diz Bernard Harcourt, professor de ciência política e direito na Universidade de Columbia e um dos principais especialistas no assunto. Ele acrescenta que há um consenso na comunidade acadêmica de que “ela foi implementada de forma racialmente discriminatória na cidade de Nova York”.
Os sucessos que a GSS alega ter obtido em outras cidades latino-americanas também foram contestados. Em 2002, a empresa de Giuliani assinou um contrato de consultoria de 4 milhões de dólares com a Cidade do México. Os crimes se reduziram em 8% no primeiro ano, mas em 2004 os homicídios caíram apenas 0,5% e os sequestros dobraram, segundo um relatório do jornal Seattle Times.
“Embora possam ter acontecido algumas mudanças superficiais ligadas ao Plano Giuliani, ele não conseguiu obter uma redução substancial dos crimes graves ou um aumento da sensação de segurança entre os habitantes urbanos”, concluíram em um estudo de 2006 os geógrafos das universidades de Syracuse e DePaul, Alison Mountz e Winnifred Curran.
O governador Mendes usa a diminuição das taxas de criminalidade em Medellín, Colômbia, em um de seus vídeos de campanha, atribuindo essa queda ao trabalho de Giuliani por lá. Em 2016, o embaixador da Colômbia nos Estados Unidos, Juan Carlos Pinzón, elogiou o apoio do ex-prefeito de Nova Iorque na “transformação” da Colômbia.
“O prefeito Giuliani emprestou sua perícia na luta contra o crime e na liderança da transformação da segurança de Nova Iorque em projetos relacionados na Colômbia, ajudando nosso país a virar a página do passado rumo a um futuro próspero baseado na estabilidade, esperança e paz”, disse Pinzón.
As recomendações de Giuliani foram seguidas “até certo ponto” em Bogotá, Medellín e Cali, reportou o Washington Post.
Juan Galvis, um geógrafo especializado em questões urbanas na América Latina e professor assistente da Universidade Estadual de Nova Iorque, contestou que o trabalho de Giuliani tivesse reduzido o crime em cidades como essas.
‘Ele é como uma peça de exposição política.’
“As estatísticas de homicídios estão diminuindo na maioria das grandes cidades colombianas há cerca de 20 anos, e eu não tenho conhecimento de nenhum estudo que tenha encontrado uma causa principal”, disse ele em um e-mail. “De políticas de regulação da vida noturna a proibição de armas de fogo, aumento do policiamento, desmobilização paramilitar e de guerrilha (ainda que parcial) e entre outras tiveram a ver com isso.”
Outros acadêmicos também expressaram dúvidas sobre o trabalho de Giuliani no continente.
“Ele é como uma peça de exposição política”, disse Kate Swanson, professora assistente de geografia na Universidade Estadual de San Diego, que já escreveu sobre o trabalho de Giuliani na América Latina, defendendo que os métodos de Nova York não se aplicam às cidades da América Latina, onde as condições são bem diferentes.
“Quando você não lida com a corrupção nas forças policiais que são mal remuneradas por seu trabalho, e tem índices muito altos de desigualdade racial, isso exacerba o problema”, disse Swanson. Os PMs amazonenses tiveram a quarta pior remuneração do país em 2017 – R$ 2,7 mil por mês. Neste ano eleitoral, a Assembleia Legislativa aprovou um aumento de 24%.
A GSS não divulga demonstrações financeiras, mas essas críticas aparentemente não prejudicaram seus resultados: em seus primeiros cinco anos de funcionamento a empresa faturou 100 milhões de dólares, e desde então conquistou muitos clientes importantes.
O desempenho de Giuliani como advogado de Trump também tem gerado dúvidas sobre sua competência. Durante sua primeira entrevista televisiva nessa função, o advogado de 74 anos contradisse a posição adotada publicamente pelo próprio Trump sobre um assunto de alta atenção midiática e gravidade legal: o pagamento para garantir o silêncio da atriz pornô Stormy Daniels, com quem teve relações, durante a eleição presidencial de 2016. Trump insistiu que o dinheiro jamais saiu do bolso dele. Giuliani falou que saiu, sim, para surpresa do apresentador do programa. Em outro caso, em defesa do presidente, ele declarou desafiadoramente que “a verdade não é a verdade”.
No mês passado, senadores do Partido Democrata pressionaram o Departamento de Justiça a investigar se a atuação de Giuliani nas consultorias internacionais durante seu serviço ao presidente viola a legislação federal. Giuliani insiste no argumento de que “nunca fez lobby [sobre Trump] a respeito de nada”, e por isso não precisaria se registrar como agente estrangeiro.
Recursos de menos, problemas demais
A partir de notícias-crime de cidadãos e de um deputado estadual, segundo o promotor Edilson Queiroz, o Ministério Público Estadual em Manaus abriu uma investigação sobre o contrato, que tem o prazo de um ano para ser concluída. Os contratos públicos normalmente estão sujeitos à licitação, mas, em alguns casos previstos na Lei 8.666/93, ela pode ser dispensada caso a empresa seja a única que pode prestar esse tipo de serviço, explicou Queiroz. “Minha função é ver a legalidade, se há mesmo a necessidade, se essas informações [prestadas pela GSS] serão pertinentes.”
As suspeitas do MPE não são em vão. Antes de assinar o contrato com a empresa de Giuliani, o Diário Oficial do Estado registrou que o governo do Amazonas fez uma intensa movimentação nos cargos que estariam diretamente relacionados à consultoria.
No dia 28 de abril, Arthur César Zaluth Lins tomou posse na Secretaria da Casa Civil. Seis dias depois, ele exonerou a secretária executiva de finanças, Maria Lenise Mafra Negreiros, e deu a Lourenço dos Santos Pereira Braga Nunes, chefe da Consultoria Técnico-Legislativa, os poderes de determinar gastos e gerenciar atividades legislativas.
‘A GSS já orientou a troca nos comandos da Polícia Militar e da Polícia Civil.’
Lourenço parece ter assumido o cargo com a missão de assinar, em 4 de maio, mesmo dia em que sentou na cadeira, uma portaria que dispensava a licitação para contratar a empresa de Giuliani. A justificativa é de que a GSS é “mundialmente reconhecida no ramo de assessoria em segurança”. O governo esperou passar apenas o final de semana e selou o contrato na segunda-feira.
Recém-chegada, a GSS já orientou a troca nos comandos da Polícia Militar e da Polícia Civil. Acompanhamos a cerimônia de posse do novo delegado-geral, Frederico Mendes, no dia 17 de setembro, e observamos que todos os discursos exaltavam o trabalho do ex-prefeito de Nova York. Para o coordenador do projeto, o coronel Walter Cruz, “essa consultoria vai trazer pra nós o que há de melhor em tecnologia”.
O coronel também destacou que treinamento, inteligência, integração e tecnologia são os pilares do programa que promete reduzir os índices de criminalidade no estado, mas chama atenção o fato de que a verba para pagar a empresa de Giuliani foi retirada de projetos relacionados justamente a tecnologia, informação, comunicação e pesquisa.
O governador Amazonino Mendes assinou um decreto que determinava a retirada de quase R$ 2,7 milhões que deveriam ser destinados para “ampliação, modernização e manutenção da infraestrutura tecnológica da informação e comunicação” de diversas secretarias, entre elas a de Segurança Pública e de Administração Penitenciária. Os outros R$ 3 milhões foram pegos na Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas que iriam financiar projetos de “ciência, tecnologia e inovação”.
O governo do estado marcou reuniões entre o Intercept e o coordenador do projeto, o coronel Walter Cruz, em Manaus, e cancelou todas. Eles não responderam às perguntas enviadas por escrito.
Velhos problemas
A Polícia Militar não é sequer mencionada no contrato da GSS — uma omissão notável, considerando que é a força policial com maior efetivo, que faz o policiamento “ostensivo” e que é, de fato, comandada pelo governador, ao contrário da Polícia Federal com a qual a GSS quis se reunir.
Por isso os policiais militares, assim como os civis, desconfiam do trabalho de Giuliani no Amazonas. Eles se sentiram desprestigiados pelo governo, que escolheu buscar a solução no exterior.
O capitão Alberto Neto ganhou fama depois que começou a postar na internet vídeos da sua rotina de trabalho nas ruas. Ele disse que viu o relatório entregue por Giuliani. “Apenas mostrou o que qualquer pessoa a que você perguntar aqui na esquina vai te dizer. Não trouxe nenhuma novidade.”
O policial é candidato a deputado federal e acredita que a imagem do advogado de Trump está sendo usada politicamente. “Vi o quanto ele fez em um trabalho em Nova York. Só que a segurança pública não é só atividade policial. Lá teve um crescimento econômico na época do governo Rudolph Giuliani. E a gente pode observar que, nas cidades com maior qualidade de vida, o índice criminal é baixo”. A situação da polícia é de fato um dos maiores problemas da área de segurança no Amazonas.
Em 2015, 12 policiais militares e três civis foram presos em uma investigação sobre um “grupo de extermínio” que teria executado 19 pessoas e tentado matar outras 13. Muitos inocentes, escolhidos aleatoriamente em um ataque de vingança pela morte, em um assalto, de um policial que trabalhava como segurança. O delegado Leandro Almada conduziu a investigação. “Os policiais envolvidos se autodenominavam Motoqueiros Fantasmas”, nos contou, uma homenagem ao filme americano de super-herói com o mesmo nome, com Nicolas Cage no papel de um motoqueiro vingativo que fez um pacto com o diabo. Foi isso o que revelaram escutas telefônicas e mensagens de celular.
“As conversas deles eram muito claras durante os crimes que cometiam, muitas vezes contando vantagem: ‘atirei na cabeça’, ‘gosto de matar depressa’, ‘prefiro deixar agonizar'”, conta Almada. “Essas ondas de crimes na sequência de mortes de policiais aconteceram com frequência em vários estados.” Onze pessoas estão atualmente em julgamento por acusações de homicídio, entre outras.
Outros agentes da Polícia Civil com quem conversamos consideram que o principal problema é a falta de pessoal e de equipamento. Eles não conseguem, por exemplo, conversar por rádio com seus colegas da Polícia Militar porque as corporações usam uma rede diferente. A despeito de novos esforços de recrutamento, muitas cidades ainda têm apenas um delegado, contou Henrique Brasil, delegado encarregado do vasto interior do estado, enquanto reclamava com um superior sobre um corte de energia que impediu que agentes de uma cidadezinha registrassem a prisão de um suspeito de assassinato. “A gente tem alguns populares que estão revoltados na frente da delegacia. Estamos precisando de reforço”, disse ao superior.
Paulo Mavignier, chefe do Denarc, tem apenas 23 agentes e suas cinco lanchas, nenhuma delas com blindagem, muito embora eles se envolvam em combate armado com traficantes na imensidão amazônica.
“É como uma doença.”
A equipe da GSS já visitou unidades prisionais em Manaus, todas administradas por empresas privadas, disse o coronel Cleitman Coelho, secretário de administração penitenciária do Amazonas. Coelho contou ter instalado scanners corporais e transferido os líderes das facções para outros estados, mas ainda não há bloqueadores de sinal de celular nos presídios do estado, e a administração está contratando novos agentes prisionais porque só restam 67. “Os que tenho já não servem”, disse ele. “O nível de corrupção entre eles é muito alto.”
As empresas que administram as unidades prisionais do estado têm cerca de 900 “agentes de ressocialização” para controlar 9.700 detentos, mantidos em prisões com capacidade para 3.500. Uma nova unidade prisional foi inaugurada em 2017, mas já foi entregue a uma empresa privada depois que 35 presos fugiram por um túnel em maio. Segundo o juiz João Medeiros, da Vara de Execuções Penais, na unidade faltavam cuidados médicos e até lâmpadas. O coronel Coelho espera que a GSS faça um trabalho inusitado: os ajude a encontrar materiais de construção mais resistentes para evitar fugas.
Depois da rebelião de janeiro de 2017, o estado fechou uma prisão dedicada ao semiaberto. Desde então, segundo Coelho, os presos condenados a menos de oito anos são colocados em liberdade provisória, com uso de tornozeleiras eletrônicas.
Carlos Bruno Miranda, de 26 anos, usava uma dessas quando foi morto com vários tiros no bairro União, na periferia de Manaus, numa noite recente. Os nomes “Fabio” e “Regis” foram rabiscados em um bilhete sobre seu corpo ensanguentado, deixado encolhido em um degrau ao lado de um riacho poluído e uma fileira de barracões de madeira. Muitos não tinham janelas — um desafio irônico para a política de “janelas quebradas” de Rudy Giuliani.
Um amigo de infância de Carlos Bruno, que pediu anonimato por medo de retaliação, disse que ele havia se envolvido com o tráfico no final da adolescência e que ultimamente dirigia um táxi. Em março de 2017, foi preso quando tentou roubar um carro. Foi liberado com a tornozeleira depois de receber condenação de cinco anos.
Antonio Carlos de Paiva, 31 anos, assistente de contabilidade, coordena um grupo sem fins lucrativos chamado Equipe Sonic, que leva as crianças de um bairro controlado pelo tráfico para andar de patins. Assim, esperam, elas se distraem e não ficam à disposição do crime. Ele diz que o governo deveria financiar mais instalações de esporte e educação para manter os jovens fora do crime, em vez de gastar dinheiro com consultorias duvidosas.
“É como uma doença”, disse Leonardo dos Santos Junior, 35 anos, um estivador que venceu o vício em cocaína por meio da patinação com o grupo de Paiva. “Você não consegue tratar os sintomas. É preciso tratar a causa.”
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