O Marco Civil, debatido ao longo de 2009 a 2014, é uma carta de proteção das liberdades individuais na internet. Trouxe compromissos, como a garantia da liberdade de expressão, fundamento básico do texto. Buscou, em essência, preservar espaços para o desenvolvimento racional dos indivíduos.
Em sua cláusula central, porém, o artigo 19, que isenta as grandes plataformas de internet de qualquer responsabilidade pela essência de suas atividades, o Marco Civil se desviou do paradigma que defendia. Esse desvio, talvez não tão claro à época, está na raiz dos problemas que culminaram na eleição de Jair Bolsonaro. Foi a traição de todas as ideias abstratas que Marco Civil representa.
O Marco Civil talvez tenha eleito Bolsonaro literalmente. Talvez o tenha feito ao eliminar incentivos para que práticas responsáveis de moderação de conteúdo emergissem. O resultado, além dos óbvios custos sociais, é esse descontrole do WhatsApp, as redes turbulentas a que está conectado (até ontem sem qualquer fricção) a grave disfunção política que assistimos.
O professor Ronaldo Lemos, amigo que tanto admiro, idealizador da lei e de tanta coisa boa, nota em texto recente que
“essa ressaca é uma tragédia anunciada. Desde 2014, a população brasileira vem sendo alimentada com conteúdos inflamatórios de forma incessante. (…) Robôs e perfis falsos usados pela primeira vez na campanha eleitoral de 2014 jamais foram desligados. Eles continuaram na ativa. Mais do que isso, continuaram crescendo de forma exponencial e incessante”.
Lemos, como de costume, tem razão. Mas 2014 não foi só o ano das eleições presidenciais. Foi o ano em que o Marco Civil foi aprovado.
Literalmente ou não, o Marco Civil elegeu Bolsonaro simbolicamente. O fez ao se desviar do paradigma moderno – da liberdade, da racionalidade – e nos jogar em direção a esse momento sombrio.
Esse desvio reflete um contraste entre a nossa modernidade tardia e a modernidade clássica, de Locke e Tocqueville. A primeira foi marcada pela necessidade de proteger o indivíduo da opressão sobretudo do próprio Estado – inclusive das formas pelas quais o Estado pode se tornar um veículo da onipotência das maiorias. Essa proteção forma o coração das constituições modernas, cujo espírito ainda vigora, embora mais frágil, em nossos dias.
A modernidade atual, ainda não constitucionalizada, é diferente. Ela se caracteriza por novas formas de poder público que ascenderam sobretudo com o advento da internet – o poder invisível e onipresente dos algoritmos privados, de plataformas de internet, como Facebook e Google. São mercadores de atenção que determinam o que vemos e sabemos, como pensamos e vivemos nossas vidas – e, ao fim, como formamos e representamos a vontade coletiva.
Armas de destruição matemática, esses algoritmos aparentemente desgovernados estão solapando as formas de organização política das democracias ocidentais. E, de desgovernados, eles não têm nada. Para muito além das fake news, eles são conduzidos por interesses poderosos e se alimentam da matéria mais viral, e, portanto, mais lucrativa que há: o ódio.
Principais reguladores dos nossos tempos, os algoritmos privados colocam em xeque o papel do Estado-Nação como local de exercício da razão pública. A tarefa constitucional do novo milênio, do novo Estado de Direito, é regular os novos reguladores. Fazer com que essas novas formas de exercício do poder público sirvam verdadeiramente à vontade coletiva e às liberdades individuais.
O Marco Civil, porém, se desvia da tarefa constitucional do nosso tempo. Para ele, esses novos atores políticos estão acima de qualquer regime, privado ou público, de responsabilidade pela essência de suas atividades. Podem agir com culpa ou mesmo com dolo (com intenção) na tomada de decisões sobre conteúdo que disponibilizam. Não estão obrigados sequer a um mínimo de razoabilidade – que dizer dos princípios mais robustos que regem o exercício do poder público nas constituições atuais.
A sensação de ausência de normas é sentida de forma extrema em nossos tempos.
O paradigma que o Marco Civil escolheu foi, em vez da modernidade, o das capitulações, do relativismo, das desconstruções pós-modernas. Nesse modelo, nos sujeitarmos a tomadas de decisões pelas plataformas de internet é nos sujeitarmos a um moralismo arbitrário. Simplesmente porque não há padrões claros entre certo e errado, legal e ilegal. Se houvesse, por que não decidir?
Tudo – a realidade em si – é parte de um discurso socialmente construído por formas de poder difusas, capilares. Um universo de extrema subjetividade, em que não existem valores intrínsecos. Em que não há fronteiras claras entre o humano e o tecnológico, o moral e o ambiental. Pouco importa que você, todo dia, ao sair de casa, tenha de tomar decisões racionais nesse universo de extrema subjetividade.
A sensação de ausência de normas trazida por esse paradigma é sentida de forma extrema em nossos tempos. E ela leva a tentativas de fuga refletidas em diferentes formas de suicídio. Desde o suicídio literal ao suicídio de nossas democracias, pela realização de escolhas aparentemente fáceis, mas, ao final, profundamente equivocadas e destrutivas.
Trump, Duterte, Brexit, Bolsonaro, todos eles são tentativas desesperadas de fugir sem refletir da sensação de ausência de parâmetros, do vale-tudo dos tempos atuais. Da tentativa de fugir do do paradigma pós-moderno que o Marco Civil reflete ao negar a possibilidade e a necessidade de se ser responsável, de se buscar caminhos ponderados para a reflexão sobre valores.
Essas tentativas de fuga são um retorno à barbárie, à guerra de todos contra todos que precedeu, em teoria, o advento do Estado Moderno.
O problema é que essas tentativas de fuga, em vez de abordar racionalmente a essência dos problemas, não resultam em um retorno à modernidade. O retorno à modernidade não se dá pela escolha pela brutalidade, pela violação de direitos humanos, pela ofensa aos direitos das minorias, pela negação da ciência, da cultura e das artes. Ou pela negação da responsabilidade de qualquer agente para com todos esses valores.
Essas tentativas de fuga, na verdade, são um retorno à barbárie, à guerra de todos contra todos que precedeu, em teoria, o advento do Estado Moderno.
Um retorno que fica ainda mais evidente quando os atores mais poderosos são aqueles que menos responsabilidade têm. E que está aí para todo o mundo ver no espetáculo de mau gosto que é nosso cenário eleitoral. Pelo menos não é uma exclusividade nossa.
Como ser moderno em tempos brutos
Diria um amigo querido, citando Rimbaud, que é preciso ser absolutamente moderno. Como no poema de Rimbaud, é preciso dar um adeus ao outono de nossos infernos pessoais e seguir mais confiantes a primavera.
Mas o que fazer? No cenário eleitoral, foi um quadro complexo, para dizer o mínimo. O PT – ao menos um PT sem autocríticas profundas – não é também nenhum exemplo de modernidade. Em relação ao Marco Civil, porém, a resposta não poderia ser mais clara. Se havia dúvidas sobre o que fazer quando o atual artigo 19 do Marco Civil foi adotado, hoje já não há mais.
O Supremo Tribunal Federal se debruçará, em breve, sobre a questão. Terá de decidir se o artigo 19 é constitucional ou não. Essa decisão é tão ou mais importante que qualquer decisão que venhamos a tomar em 28 de outubro.
Jair Bolsonaro encontrará um quadro institucional estabelecido. Será difícil promover mudanças mais radicais sem uma intensa resposta social.
Na internet, o quadro institucional está por ser feito onde mais importa. O Marco Civil criou um vácuo no sistema de responsabilidade das plataformas de internet, que é não somente inconstitucional, mas a antítese de nossa Constituição. O quadro foi melhorado com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, mas está longe de estar resolvido, inclusive em relação à convivência entre ambas as leis.
No mundo todo, mesmo nos EUA, pioneiro na construção de um modelo parecido ao brasileiro, as opiniões acadêmicas atuais são em sua maioria contrárias às ideias por trás do artigo 19.
Quem defendeu e mesmo quem levou adiante o artigo 19 do Marco Civil – tenham eles tido, como tenho certeza que tiveram, as melhores intenções em ver a lei aprovada – hoje têm a responsabilidade jurídica de se insurgir contra a manutenção desse regime de nulidades que o Marco Civil estabeleceu.
A função do Direito é estabilizar nossas expectativas em relação a normas. Só assim o Direito é um instrumento de liberdade e de modernidade. Não há estabilidade, nem liberdade, nem modernidade sem responsabilidade.
Os Leviatãs dos nossos tempos precisam ser regulados. Precisamos estender, não revogar, nosso contrato social.
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