Sou cria da favela Nova Holanda, na Maré, zona norte do Rio de Janeiro, onde moro desde que nasci. Gosto muito da NH, como costumamos chamar. Nem sei explicar o porquê. Aqui estão meus amigos, minha família. Não pretendo sair da Nova Holanda nunca!
Por mais que ame viver aqui, admito que o dia a dia na favela já foi melhor. Na minha infância, eu tinha mais liberdade para ficar na rua, ainda que meu pai pegasse no meu pé. Ele trabalhava à noite, então me vigiava bastante ao longo do dia. Era preocupação normal, porque eu era seu único filho. Ele me paparicava com dinheiro para ir à lan house. Se eu não estivesse na escola, com certeza estaria jogando CS com os outros garotos. A minha avó, por outro lado, era mais fácil de vencer no ‘desenrolo’. Eu a convencia a me deixar jogar bola na rua. Sempre fui bom de bola, até cheguei a jogar nas categorias de base do Fluminense, em Xerém, por volta dos 11, 12 anos de idade.
Nessa época, era raro acontecer operação policial e, quando eles vinham, a ação ocorria de forma diferente. Eles chegavam de blazer, não de caveirão. E não era tão violento também.
O clima na favela piorou de 2014 para cá. Quando a polícia e o Exército passaram a vir com mais frequência e intensificaram a guerra às drogas, a insegurança na Maré aumentou, e eu comecei a ver o lugar onde moro como uma área de risco. A presença deles e a forma como atuam sempre geram conflito com arma de fogo, o que impede os moradores de realizar suas atividades. Eu sou um deles.
Minha rotina é simples. Acordo às 8h para estar na aula às 9h. Participo de uma agência-escola de jornalismo, a Narra, vinculada ao Observatório de Favelas, também na Nova Holanda. As atividades acontecem três vezes na semana, pela manhã. No tempo livre, converso com meus amigos na rua. Em dia de operação, não dá para fazer nada disso: em menos de três meses, já perdi oito aulas. Sem contar os momentos de lazer. E não sou só eu. De acordo com o laboratório de dados sobre violência armada Fogo Cruzado, ao menos 170 escolas e creches de ensino públicas foram afetadas durante os tiroteiros e disparos com arma de fogo em 2018, um aumento de 204% em relação a 2017. Ontem, dia 24, o caveirão voador disparou próximo a uma colônia de férias.
Da minha casa, na Rua Tatajuba, até a agência, na Teixeira Ribeiro, é um trajeto bem curto, uns 10 minutos a pé. Entretanto, é inviável chegar lá. A minha rua faz parte da divisa entre a Nova Holanda e a Baixa do Sapateiro. Alguns traficantes costumam ficar por aqui, por isso, geralmente há confronto com a polícia.
Minha mãe trabalha em um hospital e, frequentemente, precisa faltar para ficar comigo e com meu sobrinho, de 10 anos. Já perdi a conta de quantas vezes ele deixou de ir à aula também, no Ciep Elis Regina, na Rubens Vaz. Ela fica com medo de sair, e os policiais entrarem na casa e fazerem alguma covardia em nome da guerra às drogas, como já os vi fazer muitas vezes aqui na favela.
Fui alvejado na costela quando tinha 16 anos, em junho de 2016.
Nesta última operação mais violenta, os policiais entraram na favela à noite. Minha família e eu ficamos até as 16h do dia seguinte sem conseguir sair de casa. Não deu nem pra ir comprar pão. A casa nunca chegou a ser atingida por disparo, porém a toda hora chegava notícia de mais alguém morto ou ferido. A Zezé da loja de tatuagem, o MC Rodson, até morador de rua a polícia matou. O Daniel, um dos mortos na operação, era gente boa, todo mundo gostava dele. Os feirantes davam a ele o que ficava para a ‘chepa’, e alguns moradores doavam refeições também.
A comunicação entre a galera da favela rola o tempo todo, seja por ligação, pelas páginas de bairro no Facebook ou pelo WhatsApp. Um informa ao outro o que está acontecendo para que se protejam. O perigo que eu sofro é o mesmo para todos, pois os policiais não respeitam os moradores.
Eu procuro me preservar um pouco mais nas operações, porque em uma delas aconteceu uma fatalidade comigo. Fui alvejado na costela quando tinha 16 anos, em junho de 2016. Desde então, me sinto mal em dia de operação, me vem à mente a imagem do momento em que fui baleado. Não gosto de pensar sobre isso, pois também perdi amigos que eram como irmãos para mim nessa mesma ação da polícia. Lembro de sentir sede, muita sede… Passei quatro meses no hospital. Minha irmã dormiu comigo todos os dias, com medo de que eu não resistisse. Foi a pior experiência da minha vida. Sobrevivi e passei a andar de cadeira de rodas.
Passei dois anos sem ficar na rua. Até saía para longe, para o shopping, por exemplo, mas aqui na Nova Holanda eu sentia vergonha. Não queria suportar o olhar estranho das pessoas. Meu medo do que elas pensariam me fez enfrentá-las. Passei a encará-las de cara feia. Quem me convenceu foi um fotógrafo aqui da Maré, o Bira Carvalho. Ele também havia sido baleado na juventude. Quase todo dia ele vinha à minha casa para tentar me convencer a sair. A gente jogava videogame – ele é mais viciado que eu – e o Bira prometia me levar a vários lugares. Por insistência dele, me inscrevi na agência.
Foi bom voltar a andar na favela, porque todo mundo me conhece. Se eu estiver sozinho e cair, sei que alguém vai me ajudar. Estou até me sentindo meio famoso, porque, há uns três meses, consertaram um buraco na rua a meu pedido. Os meninos pediram a um vizinho se ele poderia utilizar um pouco do cimento da obra na casa dele para nivelar um trecho na Teixeira Ribeiro. No dia seguinte, enquanto eu ia à aula, reparei, e ele me contou.
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