Jair Bolsonaro toma posse nesta terça-feira amparado por um movimento que, apesar de recente no país, é constituído de elementos muito conhecidos de nossa história republicana. O bolsonarismo, o fenômeno que transformou um congressista radical do mais baixo clero em presidente, está assentado sobre três pilares: o autoritarismo militar positivista, o cristianismo conservador e o liberalismo autoritário.
O mais óbvio desses elementos é o autoritarismo militar positivista. Apesar de estar afastado do Exército há quase 30 anos, Bolsonaro ainda cultiva a imagem de soldado. É um patriota, um homem simples, incorruptível e disciplinado. Apartado da classe política tradicional e corrupta, ele é o único que pode resolver os problemas do país, reeditando o velho mito do Dom Sebastião de coturno.
Nossa república nasceu de um golpe militar contra a monarquia, liderado por republicanos civis (com predominância do Partido Republicano Paulista) e por militares entusiastas do positivismo. O próprio lema de nossa bandeira, em substituição ao brasão imperial, foi retirado das escrituras de Augusto Comte: “Ordem e Progresso”.
O historiador e filósofo uruguaio Arturo Ardao (1963) afirma que “no Brasil, o positivismo de Comte, como filosofia política, derivou-se da Sociedade Positivista do Rio, fundada em 1876 por Benjamin Constant”. Constant foi um dos mais importantes e influentes militares do Brasil daquele período. Ardao argumenta ainda que “apesar de ser Republicano”, Comte “era contrário ao liberalismo democrático”. Preferia o filósofo francês uma terceira via entre a aristocracia e a democracia, “baseada no que ele chamava de ‘ditadura republicana’”. Na visão positivista, para controlar e fazer avançar uma sociedade, é preciso um governo forte, apartado dos baixos interesses da política tradicional, capaz de modernizar a sociedade de cima para baixo.
Os governos de Deodoro (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) encarnavam essa visão militar. Porém, os republicanos civis conseguiram tomar as rédeas do governo a partir de 1894, com Prudente de Morais.
Apesar do insucesso relativo no campo nacional, o positivismo sentou raízes profundas no Rio Grande do Sul, possivelmente por conta da histórica concentração de tropas naquela região de fronteiras secas do país. A constituição daquele estado, “escrita” por Júlio de Castilhos, refletia essa visão mais positivista da política. Borges de Medeiros, por exemplo, governou o estado quase que ininterruptamente entre 1898 e 1928. Um verdadeiro caudilho.
Talvez não seja por acaso que Vargas, Costa e Silva, Médici e Geisel – quatro de nossos seis ditadores desde 1930 – tenham nascido naquele estado.
A ideia positivista de “democratura” estava por detrás dos movimentos de 1930 e 1964. Ambos esses autoritarismos estavam baseados na ideia de um governo forte, centralizado e capaz de modernizar o Brasil de cima para baixo. A cereja do bolo era que eles se diziam representantes da luta contra a corrupção, o populismo e o comunismo.
O anticomunismo paranoico é outro pilar do bolsonarismo, manifestado em sua plenitude no “olavaodecarvalhismo”, já analisado por mim e outros autores no Intercept.
Aqueles que clamavam por “intervenção militar” durante os protestos contra Dilma. Esses que acreditam que só o Exército pode acabar com a baderna (política e social) e a roubalheira em nosso país são representantes tardios dessa tradição do século 19.
Teologia da danação
O segundo pilar do bolsonarismo é o cristianismo reacionário, fortemente influenciado pelo Velho Testamento. Quem já leu a Bíblia percebe que há uma grande descontinuidade entre os dois livros.
A mensagem do Cristo, presente no Novo Testamento, muito facilmente se presta a uma leitura “progressista”, como a da Teologia da Libertação.
Do Evangelho de São Lucas, há essa famosíssima passagem em que “uma pessoa importante perguntou a Jesus: ‘Bom Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Jesus lhe diz que é preciso obedecer aos mandamentos, mas complementa:
“Falta ainda uma coisa para você fazer: venda tudo o que você possui, distribua aos pobres e terá um tesouro no céu”.
Com a evidente tristeza no rosto do homem, Jesus completou:
“Como é difícil para os ricos entrar no Reino do Céu! De fato, é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus”.
Em vez de “Deus é amor”, tem-se aí a teologia do “Deus é vingança”.
Como compatibilizar essa mensagem clara e cristalina, com os pastores mi e bilionários que apoiaram entusiasticamente Bolsonaro? A mensagem fundamental de Jesus é de amor: “ame ao próximo como a ti mesmo”. Mas o que menos sai da boca desses fariseus é amor. Eles só vomitam ódio, rancor, desprezo, violência.
Jesus perdoou “certa mulher conhecida na cidade como pecadora”, Jesus impediu o apedrejamento da mulher adúltera, Jesus disse “não julguem, e vocês não serão julgados”, Jesus pregou que se deve sempre oferecer a outra face. Jesus disse “Eu não vim para chamar os justos, e sim os pecadores para o arrependimento”.
Na cruz, clímax da narrativa cristã, um bandido ao lado de Jesus lhe disse: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres em teu Reino”, ao que Jesus respondeu: “Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo no Paraíso”.
Como casar essa mensagem de amor, de empatia, de compreensão, de caridade, com a baba odiosa que escorre da boca desses pastores picaretas?
O fato é que eles esquecem Jesus e se apegam a passagens selecionadas e mais raivosas do Velho Testamento, em vez de “Deus é amor”, tem-se aí e teologia do “Deus é vingança”, que massacra os infiéis e salva apenas os escolhidos. Como no Livro de Samuel, em que Javé (um dos nomes de Deus) diz:
“Agora, vá, ataque, e condene ao extermínio tudo o que pertence a Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos”.
Eis o embasamento da Teologia da Danação.
A justificativa econômica
O terceiro pilar do bolsonarismo é o liberalismo de Chicago à moda chilena. Assim como o cristianismo – capaz de ser a base das atitudes de Madre Teresa, mas também do reverendo assassino Jim Jones –, a ideologia liberal pode ser usada para justificar objetivos diametralmente antagônicos.
De uma ideologia revolucionária, que defende o Estado Democrático de Direito e as liberdades econômicas (inclusive da circulação de capitais, mercadorias e trabalhadores), o liberalismo de raízes mais profundas no Brasil é aquele reacionário, que clama por um governo autoritário para ser posto em marcha. Chicago boys que mandavam “às favas quaisquer escrúpulos” – como disse Jarbas Passarinho durante uma reunião do AI-5 em 1968 –, felizes com a possibilidade de pegar um país autoritário e utilizá-lo como uma folha em branco, uma tábula rasa de seus projetos.
Chicago boys mandavam “às favas quaisquer escrúpulos”, felizes com a possibilidade de pegar um país autoritário e utilizá-lo como uma folha em branco.
Como afirma o especialista em história moderna da América Latina Patricio Silva (1991), no caso do Chile, os “Chicago boys desempenharam um papel-chave na institucionalização da ditadura. Agindo como intelectuais orgânicos, eles elaboraram respostas sofisticadas para a latente contradição existente entre liberalismo e o autoritarismo político”. O discurso era que o país só havia vivido até então uma falsa democracia, na qual apenas grupos organizados tinham seus interesses atendidos, em detrimento da maioria da população.
“Eles enfatizavam a necessidade de um governo forte que fosse capaz de impor um sistema de regras gerais e imparciais sobre toda a sociedade, sem permitir a pressão de grupos de interesse”. Seria através desse grupo de abnegados que se conseguiria modernizar o país. Um grupo de interesse detestado por esses economistas são os sindicatos. Qualquer interferência legislativa ou de ordem sindical sobre os contratos de trabalho é vista como perniciosa. Não por acaso, a tal carteira de trabalho verde e amarela é uma das bandeiras do plano de governo de Bolsonaro.
No caso do Brasil, durante a ditadura, com o desmonte dos sindicatos e com a imposição de uma regra oficial que comprimiu o salário mínimo, o que houve desde o início foi uma forte tendência à concentração de renda, como demonstra Pedro de Souza (2016) em sua premiada e já clássica tese. Pedro é economista do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, o Ipea, e foi orientado no seu doutoramento em Sociologia na Universidade de Brasília por Marcelo Medeiros, que é o principal pesquisador sobre desigualdade de renda no Brasil.
Para esses liberais, porém, desigualdade não é problema. Eles acreditam que dando maior liberdade aos ricos, maior serão os benefícios sociais para todos no longo prazo. Ou, numa versão famosa no Brasil dos anos 1970, distribuir renda significa tirar recursos dos ricos, o que reduz o nível de investimentos e de crescimento econômico do país.
Em resumo, são esses os pilares filosóficos do bolsonarismo. Note-se que todos eles são defensores, apologistas ou plenamente compatíveis com o autoritarismo. Com o agravante de que talvez pela primeira vez em nossa história, um presidente assumirá o poder já contando com uma base assustadora de entusiastas fanáticos.
Quem chama político de “mito”, pode facilmente se confundir e acabar o chamando de “duce”.
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