Em entrevista recente, o atual ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez disse:
“A ideia de universidade para todos não existe… As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica [do país].”
O ministro está certo, “universidade para todos” é uma quimera, particularmente no caso brasileiro. Em nosso país, 52% das pessoas entre 25 e 64 anos, segundo dados da OCDE, não têm sequer o ensino médio completo. Na Argentina e no Chile, essa cifra cai para 39% e 35%, respectivamente. Se comparamos com a média dos países da OCDE (grupo de países ricos), a proporção brasileira é quase o dobro registrado por eles.
Ou seja, o ministro poderia ter dito que “a ideia ensino médio para todos não existe”, pois essa é a realidade do Brasil. E mesmo nessa população dos que têm ensino médio completo, o nível médio de qualificação é extremamente baixo. Em 2015, mais de 23 mil estudantes brasileiros participaram do exame PISA, que avalia o desempenho de estudantes em ciências, matemática e leitura, em 70 países. Os estudantes brasileiros têm desempenho sofrível nas três áreas. Ficamos em 66° em matemática, 63° em ciências e 59° em leitura.
Também de acordo com a OCDE, 15% da população brasileira entre 25 e 34 anos têm curso superior, enquanto nos países ricos é de 41%. O Brasil precisa, portanto, passar por uma revolução no acesso ao ensino superior para atingir o patamar médio dos países ricos. Mas nosso ministro tem a pachorra de afirmar que a educação deve ser reservada para “uma elite intelectual”.
Educação superior é ainda uma mercadoria rara entre os jovens adultos brasileiros.
Educação superior é ainda uma mercadoria rara entre os jovens adultos brasileiros. Mas o ministro parece achar 15% um valor excessivo. Talvez ele deseje o retorno para os patamares de 2000, quiçá os de 1960, quando o ensino superior era um caviar apreciado por apenas uma meia dúzia de gatos pingados, em termos estatísticos.
Das duas uma: ou Vélez desconhece os números – o que mostra ignorância – ou quer condenar uma fração ainda maior de nossos jovens a não terem curso superior – o que sinaliza crueldade. Não bastasse a estupidez factual da primeira frase, a segunda é ainda mais medonha. Todos nós conhecemos a história de um ou outro indivíduo, nascido na mais hedionda pobreza e que através dos seus próprios esforços, atingiu os mais altos patamares acadêmicos, de renda e de prestígio.
Esses indivíduos existem, mas eles são a exceção que confirma a regra. O desempenho de uma pessoa ao longo da vida, tanto em termos de renda quanto de anos de estudo, está fortemente correlacionado com a renda e a educação de sua família. É o que se chama na literatura econômica de “background familiar”. Em termos simples: quanto maior a renda e maior a quantidade de anos de estudos dos pais, maior a renda e os anos de estudos esperados dos filhos.
Nascer em um família rica ou pobre não está relacionado a nenhum mérito particular do indivíduo, trata-se de um resultado aleatório, uma “loteria da Babilônia”, como no conto de Borges. Enquanto para o filho de uma família rica, cujos pais têm ensino superior, entrar na faculdade é algo tão natural quanto aprender a engatinhar, numa família pobre, cujos pais têm baixa escolaridade, entrar na faculdade é uma vitória digna de Hércules. Jovens pobres, de periferia, muitas vezes não se enxergam como “bons o bastante” para entrar numa universidade. São até motivo de chacota de colegas, quando externam esse desejo.
Como afirma Naércio Menezes-Filho, que, ao contrário do nosso ministro, é um acadêmico de relevância internacional e versado em questões de educação:
“Os dados da Pnad de 2014, por exemplo, mostram que a probabilidade de uma criança filha de pais analfabetos concluir o ensino superior é de apenas 3%. Por outro lado, se essa criança teve a sorte de nascer numa família em que os pais cursaram a faculdade, essa probabilidade vai para 71%. Poucos países do mundo têm uma mobilidade educacional tão baixa entre as gerações.”
Dizer que “elite intelectual” não significa dizer “elite econômica” é uma mentira comprovada por fatos, números. Mas esse é o tipo de material que os olavistas, como o ministro da Educação, têm alergia. O que Vélez está dizendo, explicitamente, é que universidade é lugar pra rico. E para um ou outro pobre que, desafiando todas as leis da probabilidade, conseguir tal proeza.
E quando falamos de pobreza no Brasil, estamos de falando de pobreza em níveis desumanos. Segundo dados do Ipea, em 2014 – ou seja, antes de toda a crise econômica que veio a partir dali –, havia 8,1 milhões de brasileiros extremamente pobres, que não consumiam sequer a quantidade mínimas de calorias diárias. Em termos mais simples, somos 8 milhões de famintos. Naquele mesmo ano, havia 25,8 milhões de brasileiros pobres. Ou seja, quase 34 milhões de desvalidos. Para quase 17% dos brasileiros o desafio não é sequer atingir uma universidade, é conseguir o que comer.
Vélez claramente não está capacitado para o cargo que ocupa.
Vélez claramente não está capacitado para o cargo que ocupa e deveria passá-lo para alguém que o seja. Prestaria assim um enorme favor a esse país de canibais e ladrões de toalhas de hotéis no exterior. Vélez se tornou ministro da Educação não por ser um membro da alta burocracia da área, ou por ser um acadêmico de renome, ou mesmo um político militante da causa. Chegou ao cargo por três motivos básicos: ser anticomunista, ser discípulo de Olavo de Carvalho e ser entusiasta do golpe de 64.
Enquanto expõe suas ideias equivocadas sobre o ensino superior, segue firme no propósito para o qual assumiu o posto: combater o marxismo cultural. Nomeado por Vélez, o novo presidente da Capes, Anderson Ribeiro Correia, egresso da cúpula do ensino militar no país, determinou nesta sexta, dia 15, novas regras para abertura de novos cursos de mestrado e doutorado no país que afrouxam os critérios ao mesmo tempo que exigem provas sobre “adequação e justificativa da proposta ao desenvolvimento regional ou nacional e sua importância econômico-social”. Com isso, o ministro abre brechas para questionar cursos não alinhados com o pensamento da extrema direita com a alegação de que eles não contribuem para o desenvolvimento nacional ou regional.
Vélez era professor de filosofia da Faculdade Arthur Thomas, do interior do Paraná. Seu currículo Lattes, aparentemente portentoso aos olhos de um leigo, é um amontoado de erros, meias verdades e mentiras. Oficialmente, as publicações científicas no Brasil são ranqueadas na seguinte ordem decrescente de prestígio e impacto: A1, A2, B1, B2, B3, B4 e B5. Há ainda os periódicos ranqueados como “C”, que, por sua baixa qualidade, têm peso zero, para quaisquer fins que se possa imaginar. O recomendado, pelos próprios órgãos do governo, é que o pesquisador não publique em periódicos de nível “C”.
Na parte “artigos completos publicados em periódico”, Vélez elenca uma produção mastodôntica: mais de 200 trabalhos. Porém, mais de 50 desses, saíram na “Carta Mensal do Conselho Técnico da Federação Nacional do Comércio”. Essa publicação sequer é ranqueada nos sistemas do governo para a Filosofia, área de atuação de Vélez. A tal revista aparece ranqueada apenas na área de Direito, mas com nota “C”. Ou seja, quase ¼ de tudo que o ministro produziu é, por definição, absolutamente irrelevante. Trata-se de uma engorda de currículo que, ainda que não ilegal, é totalmente imoral para o meio acadêmico. O paradoxo é que sob os critérios de “importância econômica e social” ou “desenvolvimento regional e nacional”, que ele mesmo instituiu para a Capes, sua produção seria rejeitada.
Já na parte intitulada “textos em jornais de notícia/revista”, Vélez enumera textos publicados em seu blog pessoal. Uma deturpação completa, que se presta, mais uma vez, a inflar o número de páginas de seu currículo com vento. Esse pecadilho, ainda que inofensivo para o grande público, já corrói a credibilidade que Vélez poderia ter entre os acadêmicos. Mas isso é o de menos.
O jornal O Globo afirmou que a UERJ não tem registros de Vélez ter atuado como professor naquela instituição, ainda que ele diga que lecionou por lá nos anos 1980. Talvez seja equívoco da instituição, talvez Vélez tenha se tornado um canibal brasileiro.
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