Durante minha infância, nos anos 1980, escutava com frequência pessoas falarem que queriam que Silvio Santos fosse presidente. A Xuxa também teria o seu lugar na política. Nas eleições de 1989, eles não concorreram, mas não faltou diversão na propaganda eleitoral: de Marronzinho a Enéas, todo mundo tinha o seu “cômico” de estimação. Enéas Carneiro, por sinal, foi o deputado mais votado da história do Brasil por um bom tempo, superado posteriormente pelo comediante Tiririca.
Não é à toa que Bolsonaro tentou criar um projeto de lei para homenagear Enéas como herói da nação – posição ocupada por apenas 41 personalidades brasileiras, como Santos Dumont e Getulio Vargas. Apesar de Enéas ter sido eloquente com as palavras, e Bolsonaro ser um incapaz nesse aspecto, os dois têm muito em comum. Isso se dá não apenas na defesa da família tradicional brasileira e no anticomunismo, mas principalmente na capacidade de “causar”. De cabeça quente, eles teatralizaram, especialmente em programas de TV de grande audiência, uma indignação patriótica que gera grande audiência.
Bolsonaro é um palhaço de palco. Passou por diversos programas de auditório na TV e se tornou um fenômeno midiático, como bem apontaram os pesquisadores Victor Piaia e Raul Nunes. Entender sua eleição passa menos por teorias de escolha racional e mais pelas vísceras e pela emoção.
Ele tampouco é uma exceção: faz parte de uma tradição da cultura popular que vê a política como entretenimento e espetáculo. A apresentadora de televisão Cathy Barriga, no Chile, ou o ator Arnold Schwarzenegger e o boxeador Jesse Ventura, nos Estados Unidos, são alguns exemplos fora do Brasil de como famosos conseguiram seu lugar na política. O último, em especial, exatamente como Bolsonaro, começou com um nicho engajado em sua figura caricata, com 7% de intenção de votos, e foi eleito governador de Minnesota em 1998 como um outsider do sistema político “profissional”, proferindo um pioneiro discurso antiestablishment.
Como mostra o documentário Trump, the American Dream, Dean Barkley, o coordenador da campanha de Jesse Ventura, acreditava que: “dizer coisas audaciosas, mesmo que te achem uma pessoa burra, funciona, pois você terá mídia de graça”. E os eleitores de Ventura diziam: “ele é um cara direto, ele diz o que ele realmente pensa” ou “ele é como a gente”. Trump aprendeu muito com Ventura, especialmente porque entendeu que existe uma sede por figuras conectadas com a cultura popular “gente como a gente”, bem como uma grande rejeição às elites intelectuais.
Trump é um fenômeno do entretenimento. Ele é uma criação de muitos outros homens, mas principalmente do marqueteiro Roger Stone, Mark Burnnet (produtor do The Apprentice) e do estrategista Steve Bannon (Cambridge Analytica) – todos responsáveis por sua composição midiática. Como mostra o imperdível perfil da New Yorker, Burnnet, em especial, criou a imagem de Trump como assertivo, um “mito” e um ícone de sucesso por meio de um longo (e manipulador) processo de edição.
Stone, por sua vez, conhece a cultura popular como poucos e usou isso para gerar fama aos seus candidatos. Entre as suas “leis”, encontra-se a que mais se aplica a Trump e Bolsonaro: “melhor ser infame do que não ser famoso”. Quando surgiu a ideia da eleição de Trump, eles decidiram lançar um primeiro tuíte com uma frase que chocasse a muitos, mas que tocasse no âmago racista de tantos outros: “vamos construir um muro”.
A estratégia, tão adotada por Bolsonaro pelo menos desde 2010 (muito antes de ele começar a imitar Trump), é simples: você fala qualquer aberração na mídia – aquilo que ninguém tem coragem de dizer. Toda a imprensa se voltará para você e você conquistará um lugar na memória das pessoas, especialmente porque isso terá eco no ressentimento daqueles que mantiveram seus preconceitos no armário.
A filósofa Judith Butler entende que Trump é um fenômeno midiático em que a vulgaridade enche a tela e se passa por inteligência. Mesmo sem carisma e envolvido em escândalos de abuso sexual, Trump conseguia se vender como alguém que diz o que quer e consegue o que quer, permitindo a identificação subversiva de quem “infringe as regras”, especialmente por ter como seu símbolo de campanha o gesto de armas.
Para os especialistas em política e entretenimento Keith Hall, Donna Goldstein e Matthew Ingram, Trump se alia a um gênero de comédia grotesca que tem muito apelo na cultura popular. Este trecho é particularmente revelador sobre o contexto norte-americano, mas serve para descrever os eleitores de Bolsonaro: “rindo junto com Trump, seus eleitores se sentem empoderados, suas diferenças diminuem (…) os insultos contra minorias se passam como engraçados ”. E os autores ainda lembraram que, com George W. Bush, todo mundo queria tomar uma cerveja.
Bolsonaro é um político da mesma laia. É uma figura durona e igualmente sem carisma. Além disso, ele foi um deputado medíocre por 28 anos, um militar de escalão médio e inteligência limitada. Como que um homem como esse se tornou um fenômeno midiático? Em uma interessante artigo, Mauricio Stycer mostrou o papel crucial dos programas de auditório na eleição de Bolsonaro, comparando justamente com Trump e as (indignas) leis de Stone: “O consultor político de Trump diz ainda: ‘Política é show business para pessoas feias’. E acrescenta: ‘Você acha que os eleitores não sofisticados sabem diferenciar entretenimento de política?’”
Em um vídeo de 2014, os berros, Bolsonaro manda todo mundo se foder diversas vezes. Funcionou.
Como mostraram Piaia e Nunes, Bolsonaro ocupou um lugar imenso na mídia de TV aberta entre 2010 e 2018, somando 33 participações em programas como SuperPop, Pânico e CQC, tendo como centro do programa suas opiniões polêmicas. Após cada participação de programa, ele foi se sentindo mais confortável e entrando nas brincadeiras, como o homofóbico jogo da verdade que perguntava “você já teve sonho erótico com macho?”. Segundo os autores: “como ocorre no humor, o deputado acertava a audiência ao disparar o gatilho entre o cotidiano e o inusitado”.
Após 2013, em plena crise política e econômica, ele ganhou repercussão nas guerras culturais, atacando Dilma Rousseff e alavancando brigas com Benedita da Silva, Maria do Rosário e Jean Wyllys. Falando coisas criminosas, a mídia toda se voltava para ele. E ele se colocou a como o grande herói anti-esquerda.
Em um de seus vídeos mais famosos, em 2014, a grande imprensa de todo o país o rodeia como uma verdadeira celebridade e lhe dá todo o holofote para que ele falasse atrocidades, como “que tem que endurecer com vagabundo”, que “existe kit gay”, que a “única coisa que presta no Maranhão é o presídio”. Neste vídeo, ele se comporta muito diferente do tiozão do pavê que usa ridder e come pão com leite condensado: aos berros, ele manda todo mundo se foder diversas vezes. Funcionou. Ele encenava indignação contra o sistema – algo, aliás, que nossos políticos não demonstram sentir há muito tempo.
Infelizmente, o único nome que chegou na periferia, depois de Lula, foi Bolsonaro.
Uma rápida busca no Google Trends mostra que o interesse por Bolsonaro cresceu justamente por meio desse envolvimento em polêmicas com políticos, e assim foi caindo nas graças do povo que achava que ele era autêntico e sincero. No final do turbulento ano que mudou o Brasil – 2013 –, uma das categorias mais buscadas no Google em relação a ele, e que teve crescimento repentino, foi “Bolsonaro zuero”. Em 2014, quando ele se tornou o deputado mais votado do Rio de Janeiro, a busca que predomina em seu nome já é por “Bolsonaro presidente”.
No meu trabalho de campo em uma periferia de Porto Alegre, vi o fenômeno aparecer desde 2016. Como observou Lúcia Scalco (minha parceira de pesquisa), ele ficou conhecido inicialmente por meio de instituições que tinham acesso à internet, como escolas e igrejas. Extremamente popular entre a juventude, os meninos que conhecemos achavam as ocupações secundaristas coisa de vagabundo e compartilhavam vídeos de Bolsonaro com suas “mitadas”. Infelizmente, o único nome que chegou na periferia, depois de Lula, foi Bolsonaro, por meio de um engajamento (inicialmente) orgânico: os meninos faziam questão de editar os vídeos em que ele aparecia para se sentir parte da política.
De 2016 a 2018, vimos seu nome se fixar na memória do povo, sempre por meio de polêmicas que despertavam amor ou ódio. Meses antes da eleição, com Lula fora da parada, muita gente que outrora dizia que odiava ele, disse-nos algo como: “ele é péssimo, mas vou votar nele porque é a única opção” ou “acho ele muito radical, mas não tem outro candidato, tem?” Bolsonaro reinou sozinho porque soube usar dos espaços da cultura popular: primeiro indo a programas de auditório TV e da TV virando memes “zuero” na internet.
Eleito presidente, diante de um governo que já começa fracassado e com envolvimentos de corrupção até o pescoço, só resta a Bolsonaro seguir investindo em sua imagem “mito”, agora na versão “homem simples de família”. Pode funcionar, mas não acredito que por muito tempo.
Os problemas de político-celebridade são muitos. Eles não conseguem sair do pessoal e entrar para a política de fato. Políticos celebridades esvaziam o coletivo, promovem o caráter anti-democrático e reforçam modelos autoritários que cultuam a personalidade. E imagens, torcidas e emoções que negam os dados e os debates, e estimulam o “nós” contra “eles” – são, em última instância, expressões fascistas.
Por fim, diante de todo esse cenário de pão e circo, é ainda possível tirar algumas lições para a esquerda. Boa parte de seus analistas e seus principais líderes não viram o fenômeno Bolsonaro crescer e, quando viram, desdenharam. Isso é muito sintomático de uma esquerda completamente ignorante e avessa do que se passa na cultura popular. É a prova cabal de seu distanciamento das pessoas comuns e de seu encastelamento.
O problema de uma parte da esquerda é achar que representa os interesses do povo, mas não sabe o que se passa na televisão ou no WhatsApp da vendedora de pastel. Estava evidente desde 2014 que Bolsonaro tinha grandes chances porque ele era o famoso infâme. O que assombra é que poucos viram isso. Não creio que a solução para a esquerda seja adotar a estratégia apolítica de criar líderes celebridades, mas entendo que é nosso dever reaprender a nos comunicarmos com o Brasil profundo.
Correção: 07 de março de 2019
O nome do jornalista Mauricio Stycer estava grafado incorretamente.
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