“Os fracos não entram. Os indecisos desistem. Só os fortes permanecem.”
Essa era a frase que ficava exposta no CTBM-PF, no Rio Grande do Sul, para receber seus novos alunos. Um dos muitos bordões falados no colégio, que havia sido inaugurado em 2009. Eu fui uma dessas novas alunas, em 2013. Entrei com a expectativa de que a disciplina levasse a um ensino melhor. Ilusão.
Saída de um colégio particular, com muitos sonhos, resolvi que faria a prova para o militar. Escolhi ir, não foi algo imposto, como pode vir a ser para muitas crianças e adolescentes se as escolas começarem a trocar sua administração regular por administrações militares. Fiz até cursinho para passar na prova.
Comparada à antiga escola onde eu estudava, a infraestrutura deixava a desejar. Mas o colégio era novo. Fomos a quinta turma a entrar. Deixei passar, um pouco desapontada. A minha grande decepção foi a biblioteca. No ano em que entrei, a biblioteca ficava em uma espécie de casinha no meio do pátio, que foi destruída para fazerem uma quadra de esportes. Os livros ganharam um canto apertado em uma sala de convivência, bagunçados e desorganizados. A pouca importância que a escola dava aos livros sempre me chocou.
Para entender o colégio, é importante entender o seu funcionamento. No meu ano, eram 60 vagas para entrar, 40 para a comunidade civil, 20 para filhos de militares – sim, havia cotas para filhos de militares. Todos os que pretendem entrar para o CTBM têm que fazer as três fases da prova: teórica, médica e física. A parte teórica possui 50 questões: 25 de português e 25 de matemática. Se tiver um bom número de acertos, passa para segunda fase: a médica, em que tem que se fazer uma série de exames – porque “aluno Tiradentes” tem que ter o corpo saudável. A terceira fase é a física, em que se deve correr 1.600 metros em 12 minutos, fazer 25 abdominais em 1 minuto e 8 apoios em tempo livre.
Passado a prova, entram os 60 alunos, e agora a história começa de verdade. Primeiro, os pais assinam um termo de compromisso, dizendo que vamos seguir as regras e que aceitamos nos basear no regulamento do Tiradentes. Os alunos do 1º ano têm que chegar uma semana antes, para participar da “Semana Zero”. Nela, aprendemos o que é e como “entrar em forma”, que é ficar parado um do lado do outro, cuidando a “cobertura e o alinhamento” (se os alunos estão em uma fila reta) e os comandos, como sentido, descansar, como virar para a direita e para a esquerda em forma. E é “em forma” que se faz a revista dos uniformes: é preciso estar sempre com a saia passada e o sapato lustrado. Até para a trança existem regras: não podem ter fios soltos. A unha deve ser curta e limpa, e só pode ser pintada com tons pastéis, como rosa e nude – uma vez fui com um azulzinho e fui “alterada”. Ah, sim, se você não está com o uniforme e aparência corretos, recebe uma “alteração”, fica de FT e é obrigado a ir para o colégio no sábado de manhã. Quem avalia se os alunos estão “certos ou errados” são os alunos do terceiro ano, os veteranos. Se o aluno do terceiro ano não gosta de você, as alterações tendem a ser frequentes. Eles comandam a formação. E essa formação se divide em duas companhias, uma feminina e uma masculina, que se dividem em pelotões.
Também nos ensinam a marchar e a cantar diariamente o hino. Temos de aprender os lemas das companhias. O da masculina diz “Brigada acima de tudo e Deus acima de todos” – qualquer semelhança com o slogan de Jair Bolsonaro não é mera coincidência.
Além de todo esse controle diário, existia o CAL, comandado por um tenente, que cuidava da disciplina dos estudantes. Porque em colégios militares, além de se preocupar com as notas das matérias, é preciso tomar cuidado com a nota disciplinar. Todos começam com a mesma nota, que podem aumentar se você faz coisas pelo colégio, ou diminuir, caso você cometa alguma infração – como ir à aula de unhas vermelhas.
Alguns comportamentos eram ainda mais combatidos, como pensamentos feministas. Apesar das “zero um” – primeiras colocadas na classificação – serem todas mulheres, o machismo estava entranhado naquele lugar. Tínhamos que nos provar mais capazes. Não acreditavam em nós. Lembro até hoje de uma das formaturas de sexta-feira em que um dos responsáveis pelo comando estava muito bravo.
Ou você puxava o saco dos militares, seguia todas as regras, ou seria uma espécie de pária, escanteado, criticado.
Ele destilou quase uma hora de xingamentos ininterruptos. Críticas a governos “populistas”, ao Bolsa Família. Lá pelas tantas, disse algo mais ou menos assim: “Mas vocês, meninas Tiradentes, não são meninas comuns, vocês são fortes, meninas comuns são fracas, vocês são fortes, porque, se não, não estariam aqui”. Lembram do lema de que só os fortes permanecem?
“Quem não puxa saco, puxa carroça”, outro famoso bordão dito pelo comandante. E, lá, isso era real. Ou você puxava o saco dos militares, seguia todas as regras, ou virava uma espécie de pária, escanteado, criticado. Eu estava nessa segunda posição. Eu incomodava muita gente. Muitos colegas. Muitos professores. Muitos militares. Quando descobri que as minhas posições e opiniões tinham esse poder de incomodar, passei a usufruir dele, apesar das represálias.
Muito do que acontecia no colégio ficava lá dentro. Não podíamos postar nas redes sociais e precisávamos nos comportar como “alunos Tiradentes” em todos os lugares. Não podíamos fazer comentários políticos em redes sociais. Não podíamos andar de mãos dadas com namorados. Não podíamos sentar na grama na praça perto do colégio. Não podíamos fazer piadas ou brincadeiras nas redes sociais com assuntos do colégio, porque manchava a imagem da instituição.
Em 2014, ano das eleições, eu e meus amigos apoiamos o petista Tarso Genro para o governo do estado e postamos uma foto nas redes sociais com a bandeira de um partido dito de esquerda. A legenda da foto era uma antiga música portuguesa, que dizia: “quem tem medo do comunismo, são os latifundiários, são os monopolistas, são os colonialistas, enfim, os parasitas”. Não acho que soubéssemos exatamente o que era o comunismo, ou se concordávamos com o partido, mas concordávamos com a parte dos parasitas. E essa foto rendeu. O comandante comentou que devíamos crescer e trabalhar antes de pensar em comunismo. Respondemos que o capitalismo não fazia bem para todos. Fomos elogiados, fomos criticados. Mas souberam quem nós éramos. E não esqueceram mais. Porque comentários políticos não eram comportamento de um “aluno Tiradentes”.
Encontrei outros métodos de provocar, inclusive nos trabalhos obrigatórios para todos os alunos. No segundo ano, os alunos têm que fazer um curta-metragem baseado em obras de autores nacionais. No meu ano, o escolhido foi Erico Verissimo. O meu grupo fez o curta baseado em Incidente em Antares, que é a história de sete mortos que, em dezembro de 1963, por não poderem ser enterrados devido a uma greve dos coveiros na cidade, voltam à vida e expõem todos os podres dos habitantes locais. O livro foi lançado em 1971, sendo uma forte crítica à ditadura militar. Como os militares da época (e os do meu colégio) não entenderam? Até hoje não sei. Mas as represálias pelo curta vieram. O colégio inscreveu todos os curtas para o CinEst, o Festival Nacional de Cinema Estudantil, e Incidente em Antares foi o único premiado. Melhor direção de arte. Estava com o meu nome. Eu não pude ir. Quando o prêmio chegou ao Tiradentes, não fui chamada para receber.
“Nem melhor, nem pior: diferente”. Um terceiro lema do Tiradentes. Não éramos melhores do que as outras escolas, só tínhamos o militarismo que nos diferenciava. Mas ninguém acreditava realmente nisso. A ideia de superioridade, de pertencer a uma elite, convencia muito bem. Os alunos tinham muito orgulho de estar ali – o que eu entendo, devido à dificuldade de entrar e de permanecer –, e concordavam e perpetuavam os ideais do colégio.
Assim que o sargento saiu, fui obrigada a revidar: “a buceta é de vocês, vocês dão pra quem vocês quiserem”.
Quando estava no terceiro ano, fui chamada para fazer parte dos alunos que ensinam os que ingressavam no primeiro. Viver a semana zero mais uma vez. E, um dia, eu e meus colegas estávamos na sala, conversando com os primeiro-anistas, quando um sargento entrou na sala e resolveu contar uma história: “era uma vez, uma chave e uma fechadura. Essa chave abre várias fechaduras, e era considerada uma chave-mestra. Agora, a fechadura que abre com muitas chaves é uma fechadura vagabunda. A fechadura que vale, é a que se abre com só uma chave”.
“Assim é a vida, meninas”, ele finalizou. Eu estava estarrecida e pulei da mesa que estava sentada. Assim que o sargento saiu, no exato momento que a porta fechou, fui obrigada a revidar. A única coisa que saiu da minha boca naquele dia foi impensada, mas significativa: “a buceta é de vocês, vocês dão pra quem vocês quiserem”. Algumas meninas me olharam indignadas. Outras concordaram comigo.
Também eram comuns comentários sobre nossas roupas nas festas – o controle e o militarismo iam além das portas do colégio. Qualquer mínima exposição de liberdade, de não seguir os padrões, de supostamente “não se respeitar”, virava assunto no colégio. As meninas tinham medo de “ficarem faladas”. E todos falavam! No dia seguinte às festas jovens promovidas pelo colégio, o assunto era quem ficou com quem. Os meninos eram vangloriados; as meninas, criticadas.
Lembro de uma vez que o julgamento partiu dos militares, e não dos colegas. Estava abraçando e brincando com uns amigos, não lembro direito o que estávamos fazendo, mas ríamos bastante. E fui chamada no CAL. Não chamaram meus amigos. Só eu.
Finalmente, depois de muito estresse, chegou o dia da formatura. Era dezembro de 2015. Uma nova liberdade desconhecida. Entrei com a música Survivor, da Destiny Child, na versão de Clarice Falcão, que casava perfeitamente com o que eu senti e queria expressar – bom, menos a parte de que eu não falaria na internet, pois é o que estou fazendo agora. Quando recebi o diploma, olhei diversas vezes para o comandante que tentou tornar minha vida um pequeno inferno por três anos. Ele não olhou para mim. Ficou com a cabeça baixa olhando para o celular. Incomodei até o último minuto.
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