“Minha casa está totalmente destruída, entendeu? E agora? Quem vai pagar? Tudo destruído aqui dentro de casa”, questionou Marcos*, enquanto caminhava pelo terraço, descendo as escadas e passando pela sala do segundo andar, pulando poças e rastros de sangue. Moradores da casa afirmam que quatro pessoas foram mortas no local. Parece uma cena que narramos há menos de três meses. Mas não é.
Treze quilômetros separam o Conjunto Esperança, no Complexo da Maré, onde Marcos vive, e o Morro do Fallet, em Santa Teresa – ambos no Rio de Janeiro. Mas outra situação os une: uma casa de família tingida de sangue durante uma operação policial. Na segunda-feira, 6 de maio, uma ação da polícia na Maré deixou pelo menos oito mortos. Quatro deles, dentro da casa de Marcos.
Era por volta de 11 horas da manhã e Marcos, que faz biscates, trabalhava a duas casas de distância da sua. “Na hora do tiroteio eu não saí na rua por motivo de segurança. Quanto aquietou um pouco, eu vi a minha sogra chorando em frente à casa em que eu estava trabalhando”, me contou Marcos. Ele começou a procurar a filha de 15 anos, que deveria estar em casa. “Aí ela me disse que minha filha estava lá em cima e que os policiais tinham matado dois bandidos no corredor.” Gorete, a sogra, contou que os dois bandidos estavam na laje, no último andar da casa.
No sobrado da família vivem Marcos, sua mulher, os três filhos e os sogros. Na hora da operação policial, Gorete e a neta adolescente estavam em casa. “O helicóptero veio dando tiro e a gente correu para dentro [de casa]. Os caras correram atrás. Eu falei: minha casa não tem saída. Sai! Aí quando eles tentaram sair, o helicóptero continuou dando tiro e eles voltaram”, conta Gorete, que assistiu toda a cena de abordagem e mortes.
Ainda segundo seu relato, os policiais chegaram 10 minutos depois. “Aí o cara foi e levantou os braços e falou ‘perdi’. E o policial disse: ‘perdeu, não. Eu vim aqui pra matar. Minha ordem é matar’”.
Goreti e a neta ainda assistiram à polícia arrastando os corpos para colocá-los no caveirão. “Ela [a filha de 15 anos] está meio que com trauma por conta de tudo isso porque ela teve que passar no meio dos corpos aqui no meu corredor”, lamentou Marcos, que vai procurar um psicólogo para a filha. “Eu não estou bem, imagina ela? Eles deviam ter o senso de pelo não matar os caras dentro da minha casa. Que matassem lá fora, na rua.”
Por sorte, Cláudia*, esposa de Marcos grávida de cinco meses, não estava no local. “Ainda bem que eu estava no trabalho, se estivesse aqui teria perdido meu bebê”, disse. O casal já denunciou o caso na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Indícios de execução
A ação na Maré aconteceu exatamente 86 dias depois da chacina do Fallet, quando 14 pessoas foram mortas numa operação da polícia com indícios de execução, ainda sob investigação.
Tanto o caso da Maré quanto o do Fallet seguiram o mesmo roteiro: os policiais entraram nas casas sem se preocupar se havia alguém ali. Em operações do tipo, os PMs invadem as residências sem mandado e matam pessoas nos lugares em que os moradores costumam ter seus almoços de domingo. Quando os donos da casa chegam, encontram tudo revirado, com eletrodomésticos perfurados a balas e rastros de sangue pelas escadas.
Os indícios de execução também não fogem do script. Na chacina do Fallet, parentes dos mortos afirmam que eles estavam rendidos e foram executados. O número de tiros nas vítimas, os disparos feitos à curta distância e a cena do crime desfeita indicam execução. A Defensoria Pública vê sinais de fuzilamento e tortura. Há relatos de mutilação de corpos, facada e pescoço quebrado.
Ainda seguindo o roteiro, o governador do Rio, Wilson Witzel, defendeu – quase imediatamente depois das operações – a ação da polícia nas duas favelas. “O que aconteceu no Fallet-Fogueteiro foi uma ação legítima da Polícia Militar”, disse Witzel em vídeo publicado no Twitter cinco dias após as mortes. Já sobre a Maré, ele foi ainda mais defensivo. Ao jornal “O Globo“, o governador endossou a ação da Core na Maré: “Se você reclamar da atuação da polícia, é melhor não ter polícia”.
Na Maré, assim como no Fallet, a cena do crime foi desfeita, e os corpos arrastados casa abaixo. Cinco inquéritos da Delegacia de Homicídios, que apuram a ação no Fallet, seguem abertos. É hora de abrir os inquéritos sobre a Maré.
*Os nomes dos moradores foram trocados para preservar a segurança deles.
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