Com corpo de halterofilista tatuado, vestindo calças e camisetas justíssimas e com a cabeça raspada, o escritor norte-americano Jack Donovan incorpora a hipermasculinidade em suas aparições públicas. Sua vestimenta remete à guerra, caça, vikings.
Donovan está listado como um 15 mais influentes pensadores da extrema direita de todos os tempos e um dos cinco mais relevantes e inovadores da nova geração de intelectuais segundo a seleção organizada pelo historiador Mark Sedwick, na obra Key Thinkers of the Radical Right, recém-lançada pela Oxford University Press. Longe de ser um fenômeno isolado, o pensador da moda move corações e mentes, inclusive no Brasil.
Segundo o perfil realizado pelo escritor Matthew Lyons no livro, Donovan é o responsável pela radicalização da misoginia na extrema direita. Os cristãos da direita norte-americana veem na mulher um papel submisso aos homens, mas elas ainda têm um lugar de afeto e significado. Já o movimento de nacionalistas e supremacistas brancos, o alt-right, considerou por muito tempo que as mulheres podiam contribuir para o movimento. Donovan sequer eleva as mulheres ao status de humanidade. Sua teoria de supremacia masculina – ou “anarco-fascista” – glorifica o corpo do homem e exclui o das mulheres.
Jack Donovan é homossexual, mas repudia a cultura gay.
Suas ideias? O globalismo e a civilização feminilizam a humanidade, enfraquecendo a natureza viril do homem que encontra sua essência na hostilidade. Recorrendo à filosofia de Nietzsche, ele naturaliza a escravidão e genocídios e recomenda libertar as mentes tribais. O “tribalismo bárbaro” significa atuar em gangues, seguir sua natureza predadora e violenta, criando comunidades de esportes, artes marciais e caça.
Donovan é homossexual, mas repudia a cultura gay. Para muitos machistas como ele, a heterossexualidade e a família nuclear são degenerativas porque pressupõem uma associação com mulheres. O autor se coloca como um “evolucionista”, reivindicando a volta a um passado em que a mulher teria uma função apenas reprodutiva, e as relações sexuais entre os homens seriam as desejadas. Mulheres são meros troféus da bravura desses guerreiros.
Tanto em seus livros, traduzidos em diversas línguas, quanto em suas palestras, que arrancam aplausos emocionados da plateia, Donovan faz um alerta: as mulheres estão tendo um papel dominante no mundo em todas as esferas da vida social. Elas estão atacando os homens, que são vítimas. Desse modo, ele faz também um chamado revolucionário: os homens estão confusos e perdidos em sua essência. Eles precisam se unir para resgatar a honra e reencontrar o propósito da existência.
Ideias de Donovan e o tio do pavê bolsonarista
A analista feminista Joanna Burigo vem chamando a atenção em várias de suas colunas para como devemos interpretar o momento político atual via lógica do patriarcado: basta lembrar da famosa foto da composição ministerial do governo Temer, contando apenas com homens brancos. Antes disso, o impeachment da primeira mulher presidenta do Brasil veio com a mensagem “tchau, querida”. Cidadãos comuns estampavam adesivo do carro de uma bomba de gasolina sendo enfiada na vagina de Dilma Rousseff.
E por falar em vaginas, houve também quem dedicasse o voto do impeachment ao coronel Ustra – não coincidentemente um torturador que enfiava ratos nas partes íntimas das mulheres. E também não coincidentemente este homem se tornou presidente da República com uma única promessa: liberar as armas.
Esses episódios não são aleatórios. Nos últimos anos, o Brasil tem legitimado e mobilizado a misoginia, outrora dispersa e envergonhada. Donovan é, na verdade, uma caricatura de uma moral masculina que está por toda a parte: do Palácio do Planalto ao homem comum que se sente autorizado a matar uma mulher-propriedade. (Provavelmente, não é mera coincidência o fato de que, na era bolsonarista, os casos de feminicídio têm aumentado exponencialmente).
Com uma ajudinha de dólares, bots e “Bannons“, ideias extremas viajam longe – e se disfarçam em piadas e memes. Seguidores de Donovan – assim como os de Olavo e Carvalho, por exemplo – fazem vídeos e textos explicando sua teoria. De maneira mais palatável, eles dão o passo a passo de como ser homem de verdade, como organizar uma gangue ou explicam por que a violência é necessária para manter a ordem.
Aos poucos, esses pensamentos chegam no grupo de WhatsApp da família. Basta lembrar de qualquer mensagem “inocente” que diz que o PT fez muito pelas minorias e que problema do mundo é o feminismo.
Ideias como a de Donovan terão sempre eco no universo de homens ressentidos economicamente e rejeitados sexualmente. É claro que a reprodução mais direta de sua obra no Brasil ocorre nos grupos de masculinistas organizados pela internet. Mas como antropóloga que estuda grupos populares – “pessoas comuns” mais do que movimento organizados –, intriga-me como tais ideias extremas podem fazer sentido para o pai de família, o motorista de Uber, o vigilante e o jovem que se alia ao tráfico. Muitos desses perfis podem não ler os livros de Donovan, mas vivem em um país que, cada vez mais, autoriza a eliminação de “fraquejadas” no plano simbólico e concreto e que mantém uma relação de idolatria com as armas.
Crises econômicas têm um papel fundamental na conformação de subjetividades, emoções e frustrações das pessoas. Como tenho argumentado, no Brasil, é impossível separar a crise econômica da crise do macho. Ao longo de minha pesquisa e de Lúcia Scalco sobre eleitores de Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que nos deparamos com a moral machista extrema dissolvida em água com açúcar.
A questão econômica desestabiliza o papel estruturante da identidade de muitos homens: o de provedor.
Era o homem que não conseguia nos explicar com argumentos por que apoiava Bolsonaro, mas logo depois postava no Facebook que seu voto se justificava porque “Pabllo Vittar deixaria do país” em caso de vitória do ex-capitão. Eram os adolescentes que sonhavam em ter armas e chamavam as meninas do grêmio estudantil de “vagabundas maconheiras”. Era o motorista de Uber que falava que “agora é tudo ‘viva as vadia’… O mundo tá de cabeça para baixo”.
Esses homens não eram monstros nem militantes machistas. Muito pelo contrário: eram gentis, estudantes que sonhavam ter um emprego, trabalhadores honestos. Em comum, o fato de serem machos em crise e que experimentaram o que filósofo norte-americano Jason Stanley chama de ansiedade sexual – o que, no fim das contas, é um dos pilares do fascismo. E aí volto à questão da crise econômica porque ela desestabiliza o papel estruturante da identidade de muitos homens: o de provedor.
No trabalho de campo, encontrávamos o tempo todo homens desorientados, endividados, sem perspectiva de futuro e desesperados para ter um revólver. No plano prático, motoristas de aplicativos diziam querer se armar para se defender do assaltante. No plano simbólico – rodeado de uma narrativa moral acerca de um mundo perdido –, ficava evidente que eles queriam se armar contra uma realidade que liam como desgovernada e, principalmente, que não governavam mais.
No livro “The Angry White Man”, Michael Kimmel faz o relato do medo do cidadão branco norte-americano que apoiou Donald Trump. São sujeitos que, segundo ele, fundem dois sentimentos potentes: o senso de privilégio perdido e o senso de vitimização. É o sujeito que acha que merece ganhar, mas pensa que tudo tem sido dado às minorias. São homens que se sentem humilhados e desonrados. O voto em Trump é um voto de raiva, mas é também um ato de fé na promessa a um retorno a um passado perdido.
No patriarcado, em tempos de recessão, um homem em crise de identidade é um ser reativo que vê a ascensão das mulheres como uma ameaça.
No crescimento econômico, nossos sentimentos e, principalmente, nossa esperança tendem a se expandir junto com a ambição nacional. Na retração econômica, nosso “eu” também se retrai. É como um corpo com baixa imunidade que fica propenso a infecções, onde afloram colônias bacterianas adormecidas. No patriarcado, em tempos de recessão, um homem em crise de identidade é um ser reativo que vê a ascensão das mulheres como uma ameaça. A ideia de que existe um plano de dominação feminista pode fazer todo sentido para um sujeito desempregado, frustrado e destituído de sentido. Formar o clube do Bolinhas, culpar e até matar as Luluzinhas pode ser um caminho fácil para a satisfação imediata do ego. O que autores como Donovan fazem é – por meio de uma narrativa simplista, mas perfeitamente encaixada – atingir o âmago íntimo da constituição desses sujeitos, oferecendo-lhe um propósito de vida e o paraíso perdido.
Relendo especialistas em fascismo e masculinidade como Jason Stanley, Michael Kimmel e Matthew Lyons, dei-me conta de algo óbvio. Esses autores levantam diversos exemplos que mostram como tempos de recessão são um terreno fértil para o retorno de narrativas supremacistas que vão e voltam desde o século 19. Mas nesse vai-e-vem discursivo, há algo incontestável e que não pode ser esquecido: o ataque é uma reação (backlash) a uma trajetória consistente e ascendente de conquistas feministas. Como escreveu Kimmel, apesar de ainda termos muito pelo que lutar na conquista dos direitos dos mais vulneráveis, o arco da história caminha em direção à justiça. Alguns podem reivindicar a volta ao tribalismo bárbaro, mas a única verdade nisso tudo é que a história de conquistas das mulheres é um caminho sem volta.
Correção, 28/5, 9h15: Uma primeira versão deste texto chamou erroneamente o Coronel Ustra de general.
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