Há três anos, o premiado jornalista investigativo Lúcio de Castro descobriu que Paulo Henrique Cardoso, filho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, atuava no ramo do petróleo — um fato até então desconhecido pela opinião pública. PHC era sócio de uma empresa de comércio de produtos petroquímicos. Essa empresa mantinha negócios com empresas investigadas pela Lava Jato, como a Odebrecht e a Braskem, e possuía uma offshore em paraíso fiscal. Lúcio de Castro descobriu também que o filho de FHC era sócio, em outros negócios, de um argentino, braço direito do presidente Mauricio Macri, que se suicidou após se ver envolvido em escândalos de corrupção na Argentina.
À época, o jornalista mostrou que a Polícia Federal havia descoberto e-mail do Instituto FHC recebendo doação da Braskem. Os negócios nebulosos da família de FHC não eram meras suposições. Lúcio de Castro tinha tudo documentado. A reportagem foi oferecida para todos os grandes veículos da imprensa. Nenhum quis publicar. Os possíveis crimes contidos ali ainda não haviam sido prescritos.
Diferentemente do filho de Lula, o filho de FHC jamais teve seu nome martelando nas manchetes do noticiário nem ganhou o apelido de “Cardosinho”. A grande imprensa não queria melindrar o filho do príncipe. Em uma série de tweets publicada nessa semana após novas revelações da Vaza Jato, Lúcio de Castro lembrou como seu trabalho foi ignorado: “a reportagem que fiz mostrava outras tantas conexões da família FHC. Fiz outras tantas de mazelas dos governos Lula e Dilma, mas essas iam adiante. Sempre lembro dessa reportagem como um símbolo pra mim do que é a seletividade. De como nunca foi contra a corrupção. E não vou cansar de repetir: o filho de FHC tinha uma offshore de petróleo num paraíso fiscal.”
Os novos diálogos publicados pelo Intercept mostram que não foi só a imprensa que desviou do assunto. A Lava Jato também preferiu evitar a fadiga. Enquanto procuradores fingiam investigar FHC só para construir uma imagem pública de imparcialidade, o ex-juiz considerava que “melindrar” um apoio desse calibre teria um custo alto. O então juiz Sergio Moro deixou claro para o procurador Deltan Dallagnol que requentar um crime prescrito apenas para forjar imparcialidade não era um bom caminho a se tomar. Os sucessivos e rasgados elogios de FHC à Lava Jato tinham visibilidade internacional, o que sempre foi um ponto importante para os integrantes da força-tarefa. Não valeria a pena perder o apoio de um ex-presidente, ainda mais quando se pretendia prender outro sem provas sólidas. Esse era o cálculo político de Moro. Blindar politicamente a operação cujo trabalho viria a julgar era uma de suas prioridades. Respeitar a Constituição era secundário.
Foram muitos os casos em que FHC e seu governo apareceram na Lava Jato. Nenhum deles mereceu investigação profunda. Vamos relembrar alguns. O estaleiro Keppel Fels de Cingapura, um dos maiores do mundo, admitiu ter pago propinas a integrantes do governo FHC para a construção de uma plataforma da Petrobras. Em delação premiada, Emílio Odebrecht disse ter financiado o caixa 2 das duas campanhas presidenciais de FHC. Pedro Barusco e Nestor Cerveró, ex-diretores da Petrobras, revelaram em delação que propinas milionárias foram recebidas pelo governo FHC em negócios da empresa (lembram do “Podemos tirar se achar melhor”?). Fernando Baiano, o operador das propinas do MDB, revelou em delação premiada que a presidência da Petrobras lhe deu ordens para beneficiar a empresa do filho de FHC. Muitos desses supostos crimes não haviam sido prescritos e ficaram por isso mesmo. Hoje sabemos que, em pelo menos em um desses casos, Sergio Moro operou nas sombras para poupar o príncipe tucano, ainda que o intuito não fosse protegê-lo, mas garantir seu apoio. Não foi à toa que FHC chamou as revelações explosivas da Vaza Jato de “tempestade em copo d’àgua”.
Em outra parte dos diálogos, procuradores debatiam sobre a possibilidade de se fazer uma busca e apreensão simultânea nos institutos Lula e FHC. O objetivo não era de ordem técnica, mas de ordem política. Pretendia-se mais uma vez incrementar a narrativa de imparcialidade da Lava Jato. O diálogo prossegue e se chega à conclusão de que a falta de provas contra FHC poderia beneficiar Lula. Ou seja, o que impediu a abertura de investigação criminal e a busca e apreensão contra o Instituto FHC não foi a falta de provas, mas o fato de que isso poderia beneficiar Lula. A imparcialidade era apenas de fachada. O que valia para Luis não valia para Fernando. Era com esse nível de seriedade e profissionalismo que as decisões eram tomadas na Lava Jato.
Moro mentiu no Senado
O ministro da Justiça esteve na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para esclarecer as conversas que teve com Dallagnol. O senador do PSD Nelsinho Trad, do Mato Grosso do Sul, perguntou a Moro se ele interferiu na composição da bancada acusatória do caso do triplex de Lula. O ministro negou.
Mas, conforme revelou o jornalista Reinaldo Azevedo, em parceria de apuração com o Intercept, 17 minutos após Moro reclamar do desempenho de Laura Tessler com Dallagnol, o coordenador da força-tarefa retransmitiu a insatisfação do juiz para o procurador Carlos Fernando Lima. Para aplacar a insatisfação de Moro, Dallagnol sugeriu mudar a escala para evitar que Tessler participasse da audiência de Lula. E foi exatamente o que aconteceu. O ministro da Justiça, portanto, mentiu aos senadores.
A cada diálogo revelado fica mais cristalino como os desejos de Sergio Moro soavam como ordens aos ouvidos dos procuradores. Confirma-se, mais uma vez, que o juiz atuava como o comandante da acusação. Ele se certificava de que a acusação faria o melhor trabalho possível e evitava dar espaço para mais um “showzinho da defesa”.
A cada diálogo revelado fica mais cristalino como os desejos de Sergio Moro soavam como ordens aos ouvidos dos procuradores.
Moro disse aos senadores que não lembra de ter feito esse pedido, mas também não negou. A linha de defesa do ex-juiz e da Lava Jato carece de um sentido lógico. Eles insistem em não reconhecer a autenticidade dos diálogos e ao mesmo tempo os justificam como se fossem autênticos. Pior: estão dando corda, ainda que indiretamente, para as teorias de conspiração mais absurdas que brotam na internet e no jornalismo de aluguel. A tentativa de associar o Intercept a criminosos é uma groselha servida em mamadeira de piroca. É uma tentativa desesperada de criminalizar o jornalismo que não tem rabo preso com os poderosos.
O fato é que até agora nenhum lavajatista negou peremptoriamente nem uma vírgula dos diálogos vazados. Talvez esse seja o melhor atestado de autenticidade que a Vaza Jato poderia receber.
Os fatos estão sobre a mesa. A quebra da imparcialidade jurídica está dada. Ou a opinião pública reconhece isso como inaceitável ou seguiremos cavando a cova da democracia. O país deseja que esses arbítrios sejam sacramentados como um padrão da justiça brasileira? Os fanáticos pela Lava Jato precisam entender que, no futuro, haverá outros procuradores, outros juízes, outros réus, outro cenário político. Essa justiça freestyle, que burla preceitos constitucionais básicos em nome de um bem maior, pode se virar a qualquer momento contra quem hoje a venera.
Dizem que as pessoas não comeriam as salsichas se soubessem como são feitas. Até a chegada da Vaza Jato, não se sabia exatamente o que acontecia nas entranhas da força-tarefa. Graças ao bom jornalismo, agora se sabe. Continuar ou não comendo essa salsicha vai da consciência de cada um.
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