A cidade de Portland, no noroeste dos Estados Unidos, passou o 17 de agosto na expectativa de uma onda de violência de extrema direita. E não sem motivo: em julho, Joe Biggs, ex-integrante do site conspiracionista Infowars, convocou uma manifestação contra o movimento antifascista intitulada “End Domestic Terrorism” (“Chega de Terrorismo Interno”, em tradução livre).
Biggs, que já incentivou o estupro e agressões contra transgêneros, pediu que seus seguidores do Twitter levassem armas, bradando “MORTE AOS ANTIFA!!!!!! ”, posou com um porrete dizendo que “faria bom uso dele” e postou memes sobre esquadrões da morte assassinando esquerdistas antes de ter o perfil suspenso na rede social.
Entre seus organizadores, além de Biggs, a manifestação contou com Enrique Tarrio, líder do violento Proud Boys, classificado como grupo de ódio pelo Southern Poverty Law Center, e “Rufio Panman”, apelido de Ethan Nordean, um valentão bombado que virou garoto-propaganda dos Proud Boys depois de nocautear um antifascista em Portland, em junho de 2018.
O protesto do dia 17 foi convocado depois que Andy Ngo, agitador e personalidade da mídia de extrema direita, foi agredido em Portland, no dia 29 de junho, enquanto filmava uma marcha da Patriot Prayer – outro grupo de extrema direita – onde havia mais antifascistas do que manifestantes. Ele atacado por mascarados aparece em um vídeo, sendo atingido por socos, chutes, bebidas e até jatos de serpentina em spray.
Portland, junto a Berkeley, Nova York, Charlottesville e Seattle, entrou para o rol de cidades progressistas que começaram a sofrer com a violência de extrema direita depois da posse de Donald Trump.
Desde então, as ameaças de morte contra antifascistas proliferam nas redes sociais. Em uma delas, uma mira telescópica foi colada sobre a foto de dois ativistas de Portland, com as palavras “Chega de Terroristas Internos”. Em outra imagem, uma faca corta a garganta de uma pessoa com o rótulo “Rose City Antifa”, uma das organizações antifascistas mais antigas do país.
Portland, junto com Berkeley, Nova York, Charlottesville e Seattle, entrou para o rol de cidades progressistas que começaram a sofrer com a violência de extrema direita depois da posse de Donald Trump, em 2017. Mas Portland se destaca por ser constantemente um palco de violência para extremistas.
Mas por que em Portland? Por uma série de razões: a presença histórica do nacionalismo branco na cidade, uma polícia leniente com a extrema direita, lideranças políticas frágeis e uma tradição de organizações antifascistas. Combinados, esses fatores permitem que os espetáculos de violência da extrema direita contra seus inimigos ideológicos – Antifa, esquerdistas, e a chamada “cultura do politicamente correto” – tenham poucas consequências legais. E esses atos são usados pelos extremistas para glorificar a violência, provar sua virilidade e recrutar novos membros nas redes sociais.
Tudo começa com a história do Oregon. Idealizado como uma utopia branca, até 1926 os negros não podiam ser residentes do estado – do qual Portland é a cidade mais populosa. E até hoje a chamada Rose City é a capital mais branca dos EUA, com 77% de brancos e menos de 6% de negros. Essa homogeneidade racial é, há décadas, um terreno fértil para o recrutamento de grupos racistas.
Joseph Lowndes, professor associado de Ciência Política na Universidade do Oregon e coautor de Producers, Parasites, Patriots: Race and the New Right-Wing Politics of Precarity (“Produtores, Parasitas, Patriotas: Raça e a Nova Política de Precariedade da Extrema Direita”, em tradução livre), afirma: “Nos anos 1980, Portland era o lugar perfeito para grupos como o White Aryan Resistance, de Tom Metzger, e a chamada ‘estratégia dos 10%’. Segundo essa doutrina, seria mais fácil mobilizar a classe trabalhadora branca em cidades com 10% ou menos de pessoas de cor, que não seriam numerosas o suficiente para oferecer resistência.”
O Oregon conta atualmente com um número desproporcional de milícias e grupos de ódio. Diversos grupos de extrema direita do noroeste dos EUA participaram ou ao menos ganharam força com a invasão armada da Reserva Nacional de Malheur pela família Bundy, no leste do estado, em 2016.
“Existe também outra tradição em Portland: a esquerda antiautoritarista, os anarquistas e antifascistas, cuja militância se faz presente nas ruas desde os anos 1980”, explica Lowndes.
E é aí que entra o terceiro elemento: a polícia. Desde que, em diversas ocasiões a partir de 2017, a extrema direita transformou Portland em um campo de batalha, jornalistas locais têm revelado a afinidade das forças da ordem com os extremistas, e como isso propicia um comportamento violento por parte desses grupos.
Documentos internos obtidos pelos jornais Willamette Week, Portland Mercury e The Guardian revelam que, aos olhos da polícia de Portland, a extrema direita é “muito mais difundida” que a esquerda. Uma troca de mensagens entre um oficial da polícia e Joey Gibson, líder da Patriot Prayer e acusado de atos de violência em protestos, demonstra que este recebia da polícia informações em tempo real sobre os deslocamentos de grupos antifa durante confrontos. O líder extremista também foi aconselhado sobre a melhor maneira de evitar que Tusitala “Tiny” Toese, um dos mais notórios brigões da Patriot Prayer, fosse preso em duas ocasiões. Em junho de 2017, quando questionado pelo Intercept sobre Toese, um porta-voz da polícia afirmou não saber de quem se tratava, e que a real preocupação da polícia era com os atos dos contramanifestantes antifascistas.
E não é só isso. A polícia de Portland abriu um inquérito para investigar um ativista com base em elementos fornecidos pelo próprio Gibson. Além disso, durante uma marcha de extremistas no dia 4 de agosto de 2018, a polícia descobriu integrantes da Patriot Prayer armados no alto de um edifício-garagem. Eles não só foram liberados, como ninguém foi informado do ocorrido pelos próximos dois meses, nem mesmo o prefeito Ted Wheeler, que também é chefe da polícia da cidade. Na região metropolitana de Portland existem policiais islamofóbicos, uma prisão privada do Serviço de Imigração que contratou um integrante dos Proud Boys, e um xerife-adjunto filiado ao mesmo grupo radical. Em uma tendência nacional, os supremacistas brancos estão se infiltrando nas forças da lei e da ordem.
Quando os manifestantes são progressistas, o favoritismo das forças da ordem fica ainda mais evidente. No dia 4 de junho de 2017, a polícia disparou armas não letais contra ativistas de esquerda, manteve cerca de 400 pessoas sob um cerco ilegal, coletou números de identidade e fichou os participantes, apesar das garantias de que não o faria. Ao comentar o episódio, o escritório local da União Americana pelas Liberdades Civis declarou: “Nenhuma outra força policial americana emprega suas armas de controle de distúrbios com tanta frequência quanto a de Portland.”
Pouco mais de um ano depois, no dia 4 de agosto de 2018, a polícia investiu contra um protesto pacífico. Um manifestante quase morreu quando uma bomba de efeito moral perfurou seu capacete, causando uma hemorragia cerebral. Já no dia 1ºde maio deste ano, 20 membros da Patriot Prayer, encabeçados por Gibson e acompanhados por Ngo atacaram antifascistas em um bar, fraturando a coluna de uma mulher (que passou a receber ameaças de morte depois de ter seu nome revelado por Ngo). Segundo o dono do bar, a polícia demorou uma hora para chegar, apesar de inúmeras chamadas de emergência. Em um longo comunicado, a polícia tentou justificar por que só interveio depois do fim do ataque, mesmo sabendo ele estava acontecendo.
Depois da agressão contra Ngo, em junho, a polícia de Portland publicou no Twitter a mentira de que os milk-shakes distribuídos pelos antifascistas na manifestação haviam sido “batizados” com cimento. Conspiracionistas como Jack Posobiec ajudaram a viralizar o tuíte. Tratada como fato pela mídia de extrema direita e como plausível pelos veículos tradicionais, a postagem gerou um dilúvio de ameaças de morte contra antifascistas. Dias depois, a prefeitura de Portland teve que ser evacuada depois de um alerta de bomba – possivelmente relacionado ao incidente.
A parcialidade da polícia contra a esquerda não é algo incomum nos Estados Unidos. A diferença é que em Portland não existe um contrapeso. Depois da manifestação de 4 de junho de 2017, uma pessoa próxima ao prefeito Wheeler me disse que “o gabinete do prefeito tem medo da polícia”. Segundo a mesma fonte, ao ouvirem reclamações sobre o uso excessivo de força no protesto, policiais do centro de controle teriam dito a membros do governo municipal que não se metessem em assuntos táticos da tropa.
“A prefeitura tem medo de pressionar a polícia e provocar uma operação-padrão ou uma greve”, afirma a fonte. “Dentro da polícia existe uma simpatia institucional pela Patriot Prayer e pelo supremacismo branco”, completa.
“Essas afirmações são falsas. A prefeitura sempre respeitou e apoiou o trabalho do Departamento de Polícia de Portland”, diz Eileen Park, porta-voz da prefeitura. “Eles são verdadeiros profissionais, e podemos ter certeza de que eles vão sempre fazer a coisa certa e proteger a nossa cidade”, acrescenta.
Já em Nova York, quando dez Proud Boys agrediram antifascistas em Manhattan, em outubro do ano passado, a polícia “ficou parada sem fazer nada”, segundo o New York Times, e não prendeu ninguém. Mas, em uma cidade de “minoria majoritária”, com seus mais de 3 milhões de imigrantes, os políticos foram rápidos em criticar a letargia dos policiais, o que obrigou o Departamento de Polícia de Nova York a se esforçar para identificar e prender os suspeitos.
Em Portland, no entanto, a covardia política é a regra. Tudo indica que o promotor de justiça do Condado de Multnomah (uma das subdivisões administrativas do estado do Oregon) é tão negligente quanto a polícia nos casos envolvendo a extrema direita. Não que a promotoria não saiba quem são os criminosos: pesquisadores antifascistas de Portland já identificaram dezenas de extremistas que instigaram e participaram dos confrontos de 30 de junho de 2018, entre os quais o próprio Enrique Tarrio, atual líder dos Proud Boys. Mais de um ano depois, nenhum deles foi preso pelos atos cometidos na manifestação. A tranquilidade de Tarrio é tanta que seu nome chegou a ser anunciado como um dos cabeças da manifestação do dia 17.
E a mídia também não tem ajudado. À exceção de semanários alternativos e do The Guardian, a cobertura jornalística do tema tem, no melhor dos casos, se limitado a criticar ambos os lados, e, no pior, o posicionamento da imprensa é constrangedor. O conselho editorial do The Oregonian, o principal diário do estado, chamou os anarquistas de “fascistas punk” por causa de pequenos danos causados à propriedade (parece que ninguém no jornal conhece a história ou a definição do fascismo), mas permitiu que um de seus colunistas agisse como um idiota útil, descrevendo Gibson como “um profeta dos tempos modernos” que prega “o amor” e “a união”.
Segundo Lowndes, o silêncio em torno da extrema direita é algo que está entranhado no estado. “Não ouvimos nenhuma crítica do legislativo, do gabinete do governador, dos deputados”, diz. “Temos uma cultura política branca com uma alta tolerância às organizações supremacistas e de extrema direita. Parece que eles têm medo de perder votos conservadores”, pondera.
Se a manifestação do dia 17 não virou uma batalha campal, talvez seja graças ao nacionalista branco acusado de assassinar 22 pessoas em um acesso de fúria contra a população latina de El Paso, no início do mês. Parece que o incidente levou o FBI a visitar Joe Biggs, que então teria dito que “queria uma manifestação pacífica” e pedido “que seus seguidores deixassem as armas em casa”.
Em maio, o bando de Gibson agrediu antifascistas em um bar. Mas foi só alguns dias depois do massacre de El Paso que a polícia prendeu Gibson e cinco integrantes do grupo, embora o ataque e a identidade dos criminosos já fosse de conhecimento público havia mais de três meses. Ainda na semana passada, o líder dos Oath Keepers – uma milícia de extrema direita – anunciou que o grupo não participaria da manifestação, citando, entre outros motivos, o trabalho de monitoramento de ameaças de pesquisadores antifascistas
Kristian Williams, autor de Our Enemies in Blue: Police and Power in America (Nossos Inimigos de Uniforme: Polícia e Poder nos EUA, em tradução livre), afirma: “Se essas prisões são uma reação ao massacre de El Paso, isso confirma a ideia de que a polícia é leniente com a violência da extrema direita até um certo limite. Mas permite-se que a violência continue por muitos mais tempo e cause muito mais estragos do que se fosse com a esquerda”, compara.
Tradução: Bernardo Tonasse
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?