Em 1961, quando nasci, minha família precisou mudar os planos que tinha para uma vida ‘normal’. Em nossa casa humilde de mãe costureira e pai comerciário com três filhos, eu, o caçula, vinha com uma deficiência.
Eu não conseguia andar e só fui caminhar pela primeira vez aos dois anos. Também não conseguia falar: comecei somente aos cinco. Desde então, lembro das maratonas de médicos, psicólogos e outros profissionais. Logo perceberam que nasci com deficiência visual do tipo baixa visão, causada por uma toxoplasmose congênita. Até hoje, enxergo cerca de 10% de uma vista total.
Nessa época, o sonho de nossos pais era que eu e meus irmãos concluíssemos o antigo ginásio, ou ensino fundamental, que na década de 1960 já era complicado de terminar. Mas para mim a situação era mais difícil, pois como eu conseguiria estudar se não enxergava nada, principalmente de longe?
Ainda assim, apesar das dificuldades financeiras da família, hoje eu e meus dois irmãos somos todos formados no ensino superior. Um deles engenheiro e o outro cientista contábil. Já eu me formei em Estatística pela USP.
Fiz mestrado e doutorado na mesma universidade e, em seguida, engatei três pós-doutorados – todos já concluídos. Um deles como voluntário, sem bolsa. Hoje, estou no meu quarto pós-doutorado. Ao longo de oito anos como pesquisador, trabalhei em projetos estatísticos em áreas diversas como arqueologia e urbanismo.
Além disso, desde 2012 atuo voluntariamente em projetos ligados a aplicações estatísticas a dados sobre pessoas com deficiência e desigualdades. Hoje, meu maior sonho é conseguir atuar como pesquisador nessa área, em uma universidade ou centro de pesquisas.
Sigo um caminho de superação, mas que ainda impõe um obstáculo muito difícil para qualquer pessoa com deficiência no Brasil: conseguir um emprego estável. Em mais de 20 anos, nunca mais trabalhei numa empresa ou tive carteira assinada.
‘Vamos ver o que a medicina poderá fazer por ele’
Quando criança, para minha família, arranjar um médico era muito difícil porque não podíamos pagar. O tratamento que conseguimos foi me admitirem como estudo de caso no Instituto de Psicologia da PUC-SP. Ainda assim, como além da deficiência visual eu não conseguia andar ou falar, os médicos não tinham perspectivas boas. Em uma consulta, um neurologista disse a minha mãe: ‘vamos ver o que a medicina poderá fazer por ele.’
Por isso, passei boa parte de minha infância em conselhos de psicólogos e médicos. Acabei começando no ensino infantil tarde, aos oito anos, em 1970, e desde essa época já sentia uma discriminação das outras crianças e até de suas mães. Sofri bullying. Até os pais diziam para os filhos não chegarem perto de mim ou incentivavam que eles me hostilizassem.
Na escola, nunca tive amigos e sempre precisei estudar e fazer sozinho minhas tarefas. Eu não conseguia enxergar o quadro negro e sequer sabíamos da existência de lupas ou telelupas – que mesmo assim não poderíamos comprar porque eram caras demais para as condições da minha família. Tínhamos pouco conhecimento porque, na época, não se falava nas rádios ou na TV de pessoas com deficiência.
As aulas muitas vezes me serviam pouco ou quase nada, então aprendia pelos livros ou ia à biblioteca, onde eu lia as páginas com o papel praticamente em cima dos olhos. Ainda assim, eu ia bem nas matérias, principalmente matemática – uma surpresa para a turma porque acreditavam que eu era inferior por ter uma deficiência. Minha vida escolar continuou assim no ensino médio, e desde sempre me virei sem ajuda.
Meus pais também não tinham tanta instrução para me auxiliar, então eu sempre usava os livros didáticos. Me formei em tudo na base dos livros. E já adolescente, comecei a depender menos ainda dos outros e a ter mais autonomia, andar por aí e decidir certas coisas sozinho. Em meu contra-turno da escola, costumava estudar em casa ou ir às bibliotecas públicas do centro de São Paulo.
Entre 1979 e 1981, fiz meu ensino médio com um técnico em processamento de dados. Havia entrado na então Escola Técnica Federal de São Paulo (atual Instituto Federal de São Paulo), onde o volume das matérias, a discriminação e a competição aumentaram, e o meu rendimento piorou. Lá consegui o diploma do segundo grau, mas renunciei ao técnico porque não me adaptei à área.
No ano seguinte, em 1982, comecei a fazer um cursinho pré-vestibular porque queria cursar Medicina. Meus pais pagavam ajudando no que dava, e como meus irmãos já trabalhavam, eles ajudavam nessas contas também. Estudei até ser aprovado no vestibular de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), em julho de 1985.
‘Abandonei o curso por falta de apoio’
Viajei sozinho para ir cursar Medicina em Brasília. Morei em um dos apartamentos dos estudantes, em um quarto com seis vagas. Mas a convivência era complicada porque, às vezes, eu precisava estudar, mas não podia porque colegas usavam o espaço para festas, aí eu precisava sair de casa para poder ler. Nessa época, a biblioteca ficava aberta 24h, então eu ia para lá de madrugada acompanhar a matéria.
Pela falta de apoio à pessoa com deficiência visual na universidade, o volume das matérias era muito maior para mim, e eu não dava conta. Os próprios médicos achavam um horror uma pessoa com deficiência entre eles, e não se importavam com a acessibilidade.
Cursei Medicina na UnB de 1985 a 1990, mas desisti por essa falta de acessibilidade e apoio. Não consegui dar conta do volume das matérias nem me adaptar à vida em Brasília. Decidi voltar para São Paulo, onde passei em Estatística na USP, carreira a qual segui. Como minha família morava perto da cidade, havia menor dificuldade de adaptação, mas a inclusão ainda era difícil.
Eu me virava sozinho melhor com o transporte público paulistano. Às vezes, os próprios passageiros me davam um toque e me ajudavam a ir para onde precisava, mas também já me enganei e peguei os transportes errados (era mais difícil, mas acontecia). Depois da minha graduação em Estatística, já engatei um mestrado e um doutorado na área, o qual terminei em 2008.
Nessa época, pela primeira vez, consegui uma telelupa: um dispositivo que permite pessoas com baixa visão a enxergarem de longe – por exemplo, acompanhar o que está escrito num quadro negro ou uma apresentação de PowerPoint. Pude comprá-la por indicação de um médico, que foi meu aluno particular de Matemática. Ele me deu dicas e indicou onde eu poderia comprar a telelupa: desde então, posso acompanhar melhor aulas e palestras.
Após meu doutorado, ainda fiz três pós-doutorados na área de Estatística e atualmente curso o quarto. Só que essa escolha pela pesquisa acadêmica não é movida só por interesse, mas ocorre porque as empresas não têm interesse em contratar um PCD qualificado. Então executo hoje, por minha conta, sem remuneração, estudos estatísticos sobre as correspondências entre as deficiências e variáveis como educação, trabalho, condições de moradia, entre outras.
Os resultados dessas pesquisas que fiz têm sido apresentadas em congressos internacionais na Ásia, Europa, África, pelas Américas e por diversos estados do Brasil. Muito disso eu que corri atrás para garantir apoio e financiamento de ONGs, da Capes, do Banco Mundial e da Fapesp. Ainda assim, ninguém me contrata.
‘Pessoas com deficiência para vagas que pagam menos’
A maior parte das empresas me rejeita porque dizem que tenho idade elevada – tenho quase 60 anos –, qualificações demais e não tenho experiência na área privada ou corporativa. Aconselham que eu busque trabalho como pesquisador, cargo este que não existe oficialmente no Brasil senão via bolsas esporádicas oferecidas por agências de fomento.
Pelo mercado, sou considerado uma pessoa superqualificada, mas que ninguém quer. Já enviei muitos currículos por aí, e em uma das únicas entrevistas que consegui, a consultora se limitou a me perguntar se centros de pesquisa não contratavam. Já passei por inúmeros recrutadores que desconsideram meu currículo logo de cara, sobretudo por conta da idade.
Uma vez, em 2014, por exemplo, estive em Natal para um evento acadêmico, e o representante de uma empresa desenvolvedora de softwares de métodos estatísticos se interessou pelo meu trabalho. Antes disso, eu já havia apresentado essa mesma pesquisa na Itália e nos EUA. Ao conversarmos, ele pediu para ver meu currículo. Quando o mostrei, ele apenas respondeu ‘tudo isso de idade?’.
Inclusive, já tentei pedir acompanhamento de dezenas de recrutadores que me ajudassem em processos de seleção em empresas, mas todos falavam de cara que ‘empresa não é meu lugar’ e que minhas tentativas seriam ‘perda de dinheiro’.
Na época da minha graduação, ainda nos anos 1990, cheguei a trabalhar como concursado no Banco do Brasil. Me contrataram meio a contragosto, por ser PCD, e ficaram me jogando de setor em setor. Foi um desastre e acabei saindo porque decidi optar por um mestrado na USP.
Desde então, já tentei diversos outros concursos públicos, mas o gasto com autenticação de documentos para a comprovação de que sou uma pessoa com deficiência é muito alto.
Além disso, a lei de cotas tende a prejudicar o PCD com maior instrução: brechas na legislação permitem que autarquias públicas decidam qual cargo pode ou não ser ocupado por pessoas com deficiência. Na Petrobrás, por exemplo, um deficiente com bacharel em Estatística não é aceito.
Essa brecha se estende também à área privada. A Lei de Cotas costuma contemplar pessoas com deficiência para vagas mais humildes, que exigem até segundo grau completo e pagam salários bem menores. A legislação não especifica cotas por faixas salariais ou funções, mas apenas obriga que empresas a partir de 100 empregados tenham em seus quadros de funcionários ao menos 2% de pessoas com deficiência.
Desse modo, tanto faz se as companhias contratarem um faxineiro ou alguém para uma posição de diretoria, o peso é o mesmo: então, elas nos preferem para vagas que pagam menos. E quem tem maior qualificação não é absorvido pelo mercado porque não há esse interesse. Sobretudo sob um governo que ataca a lei de cotas e os direitos da pessoa com deficiência de acessar o mercado de trabalho.
‘Bolsonaro quer praticamente acabar com a Lei de Cotas’
Um dos projetos do governo Bolsonaro enviados à Câmara no final de 2019 praticamente acaba com a Lei de Cotas para pessoas com deficiência. Atualmente, mesmo com a legislação já sendo mal-executada, a ideia do governo é desobrigar as empresas de contratarem PCDs e substituir a cota de 2 a 5% de trabalhadores deficientes pelo pagamento de uma compensação ao governo.
Caso o projeto de lei seja aprovado, a contratação de pessoas com deficiência se tornará facultativa, e as empresas poderão optar por pagar uma multa de até dois salários mínimos ou empregar PCDs. Se hoje já faltam políticas públicas que garantam um maior acesso da pessoa com deficiência à educação e ao emprego, a aprovação desse projeto significaria o fim do pouco apoio ao PCD que existe.
Além disso, o empresário Luciano Hang, um dos principais apoiadores do governo Bolsonaro, recentemente atacou legislação da cidade de Chapecó, em Santa Catarina, que obriga grandes lojas a instalarem piso tátil e disponibilizar cadeiras de rodas para deficientes. Essas exigências servem para facilitar a locomoção de pessoas com deficiência em lojas.
Em vídeo publicado em sua rede social, Hang afirmou que a obrigação era ‘burocracia que nada serve’ e ‘não vale nada’, além de caçoar das instalações. Manifestações no mínimo infelizes.
Este meu relato é um testemunho da impossibilidade de trabalho e subsistência da pessoa deficiente no Brasil, situação que sempre foi difícil e que agora corre risco de piorar se depender das propostas do governo e do que pensam alguns de seus apoiadores.
O que dizem as empresas mencionadas na matéria
O Intercept perguntou à assessoria de imprensa da Petrobrás sobre as políticas de acessibilidade e cotas para pessoas com deficiências da empresa, por conta da afirmação de Paulo Tadeu de que “um bacharel em Estatística PCD não ser aceito” em seus concursos públicos. A companhia, no entanto, não respondeu em tempo hábil aos pedidos de esclarecimento que realizamos por e-mail e telefone.
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