O governo de Santa Catarina levou cinco horas para decidir comprar, receber uma proposta e bater o martelo sobre a aquisição de 200 respiradores a módicos R$ 33 milhões. A pressa teve um preço. Os aparelhos, que deveriam ter sido entregues no início de abril, em 48 unidades de saúde do estado, não chegaram. A previsão mais otimista, agora, é para junho.
Cada respirador, equipamento essencial durante a pandemia, já que um dos principais sintomas de coronavírus é a falta de ar, saiu por R$ 165 mil – valor bem acima dos R$ 60 mil a R$ 100 mil pagos pela União e por outros estados.
Além do preço, causa estranheza a escolha do fornecedor: a Veigamed, uma empresa da Baixada Fluminense, sem histórico de vendas desse aparelho e especializada no comércio de produtos hospitalares como gaze e mobília. Em seu site, não há menção a respiradores ou qualquer outro tipo de equipamento elétrico de maior valor. A empresa também nunca teve nenhum contrato com o governo catarinense e, nos últimos cinco anos, a soma de todos os produtos que vendeu à União é de apenas R$ 24 mil.
A primeira movimentação do governo catarinense para aquisição dos respiradores foi protocolada pela Secretaria de Estado de Saúde às 10h17 de 26 de março. Naquele mesmo dia, às 15h31, foi incluída no sistema a ordem de fornecimento dos equipamentos oferecidos pela empresa, finalizando o processo de escolha.
A empresa fica localizada em uma casa simples no município de Nilópolis, segundo os dados presentes na proposta feita ao governo catarinense. Em seu site há apenas a foto de um prédio com pinta de imagem adulterada no Photoshop e uma referência a outra cidade, Macaé, na Região dos Lagos do Rio, além de um telefone em que ninguém atende. Ao ligarmos para o telefone presente no cadastro da Receita Federal, fomos informados que o número correspondia a uma “casa de massagens”.
Na proposta de venda encaminhada ao governo pelo CEO da Veigamed, Pedro Nascimento Araújo, é informado que a empresa atuaria em conjunto com a Brazilian International Business, com sede na catarinense Joinville. Essa empresa seria, segundo o documento, a responsável pela parte internacional da transação. O modelo de respirador oferecido é o Medical C35, de um fornecedor no Panamá.
O nome do dono da importadora, Rafael Wekerlin, no entanto, aparece apenas nessa proposta inicial. Não há documentos dele ou o CNPJ de sua empresa no processo, e ele não assina qualquer outro documento posterior na realização do negócio. Quando o questionamos, ele disse primeiro que chegou a ser procurado para uma parceria, mas não obteve nenhum retorno. Depois, mudou de versão: disse que não conhecia a empresa.
Segundo Wekerlin, a Veigamed copiou o orçamento que a sua importadora fez ao governo de Santa Catarina. “Copiaram no Word minha proposta e encaminharam. Mas note que eles esqueceram de tirar o meu nome”, explicou ao nos enviar um arquivo em PDF com uma proposta em nome da Brazilian International Business, a BINTB, idêntica à feita pela empresa fluminense.
Na tarde do dia 27 de março, depois que o governo já tinha acertado a compra com a Veigamed, a assessoria jurídica da Secretaria de Gestão Administrativa aconselhou por escrito a busca por outros orçamentos “a fim de justificar o preço”. Veloz, o governo apresentou no mesmo dia uma proposta da empresa MMJS, que não tem sequer registro de venda de aparelhos hospitalares na Receita Federal, mas, ainda assim, ofereceu 200 respiradores modelo Medical C30 por R$ 45 milhões. No dia seguinte, uma proposta da JE Comércio, que apresenta o mesmo aparelho por R$ 39 milhões, também surgiu no processo.
Além de ambas estarem acima da oferta da Veigamed, as duas propostas possuem outras semelhanças: nenhuma delas tem CNPJ ou mesmo assinatura e nome do responsável, informações básicas em concorrências públicas. As duas empresas também dividem o mesmo endereço, conforme consta no site da MMJS e no rodapé da proposta da JE Comércio, o que leva a crer que tratam-se de propostas de fachada, para garantir a contratação da Veigamed.
Pelo menos até 2018, a MMJS se chamava Bau Holdings. Naquele ano, ela aparecia no cadastro do Tribunal Superior Eleitoral como uma das candidatas a organizar financiamento coletivo virtual de campanhas eleitorais. Em 2017, foi alvo de uma investigação aberta pelo Judiciário do Mato Grosso por suspeita de venda ilegal de bitcoins e formação de esquema de pirâmide.
Entramos em contato com a MMJS pelos telefones e e-mail informados no site da empresa, mas não obtivemos retorno. Não encontramos o contato da JE Comércio. Solicitamos informações como CNPJ ou nome do responsável pela empresa ao governo de Santa Catarina, que ignorou os pedidos.
Com a proposta vencedora da Veigamed corroborada pelas supostas concorrentes, no dia 1º de abril o governo de Santa Catarina pagou em duas parcelas os R$ 33 milhões acertados com a empresa – procedimento um tanto incomum, já que o pagamento só deveria ser realizado após a realização do serviço, quando os respiradores fossem entregues.
O primeiro lote de 100 respiradores deveria chegar até 7 de abril, o que não ocorreu. Em 8 de abril, a Secretaria de Saúde notificou a empresa sobre o atraso e afirmou que, caso isso não fosse regularizado em um prazo de cinco dias, a compra poderia ser cancelada. A ameaça não se concretizou. A empresa só respondeu oito dias depois, com duas mudanças drásticas no contrato: a primeira, alterando o modelo de respirador e, a segunda, esticando o prazo de entrega para junho, dois meses além da data combinada. As duas alterações, mostram os documentos no sistema do governo, foram aceitas sem questionamentos.
O empresário Pedro Nascimento Araújo, CEO da Veigamed, informou ao governo na resposta que eles tiveram problemas com o fornecedor do respirador Medical C35, da empresa panamenha. Em anexo, acrescentou uma fatura de negociação internacional de outro modelo de respirador, de um fornecedor na China. O novo aparelho, escolhido sem consulta técnica ao governo catarinense, é o Shangrila 510S. Trata-se do mesmo aparelho que aparece nas fotos apresentadas pelas supostas concorrentes da empresa dias antes como se fosse o Medical C35. Mais ou menos como mostrar a alguém a foto de um Gol dizendo se tratar de um Audi, o que leva a crer que a ideia era essa desde o princípio.
A mudança para um aparelho inferior baixou o custo da empresa em R$ 21 milhões, mas o valor do contrato segue o mesmo.
No documento, Araújo cita que, diante da indisponibilidade do modelo inicial, o próprio secretário de Saúde do estado, Helton Zeferino, teria manifestado preferência pelo “modelo Shangrila 510S, ao invés daquele descrito inicialmente na Ordem de Fornecimento 343/2020”. Mas a manifestação do secretário não aparece no processo e não fica claro qual foi a forma de comunicação estabelecida entre os dois.
Com menos funcionalidades, o que interfere na variedade de tipos de respiração a que um paciente pode ser submetido em uma UTI, segundo médicos consultados pela reportagem— ou seja, um modelo inferior—, o Shangrila 510S custa quase um terço do valor do Medical C35. O documento informa um equipamento de 12 mil dólares, cerca de R$ 60 mil no câmbio atual. A diferença, no entanto, não acarretou mudança nenhuma no valor final do contrato firmado e já pago pelo estado. Perguntamos ao governo de Santa Catarina para onde foram os R$ 21 milhões de diferença entre as duas compras, mas não tivemos resposta.
O documento de compra dos novos aparelhos não informa previsão de chegada dos equipamentos, apenas de embarque dos produtos. O primeiro lote de 100 respiradores parte da China entre os dias 25 e 30 de abril. O outro carregamento deve sair entre 15 e 30 de maio. Na melhor das hipóteses, os respiradores devem chegar com pelo menos dois meses de atraso, quando boa parte dos pacientes que poderiam ser socorridos já tiverem sucumbido ao vírus.
A docilidade diante da empresa só mudou depois que entramos em contato com o governo pela primeira vez, na sexta-feira, 17 de abril, pedindo esclarecimentos sobre o atraso na entrega dos respiradores. Enquanto pedia mais prazo para responder às nossas solicitações, o governo se apressou para fazer novas exigências à Veigamed. Na quarta-feira, 22, foi anexado no sistema uma notificação do procurador do Estado Gustavo Canto pedindo detalhes sobre o embarque dos equipamentos e exigindo que a entrega não ultrapasse o prazo de 30 de abril, o que, na prática, inviabiliza a chegada dos respiradores e pode levar ao rompimento do contrato.
Já com esse prazo estourando, nesta segunda, 27, a assessoria jurídica da Saúde produziu um parecer pedindo o cancelamento da compra, multa de 10% do valor do contrato (R$ 3,3 milhões) e suspensão de seis meses para a Veigamed firmar novos contratos com o governo do estado. Só esqueceram de citar os R$ 33 milhões já pagos à empresa.
Para justificar compra, vale até fake news
Além de um pedido da assessoria jurídica por mais orçamentos, dois pareceres foram produzidos para referendar a compra urgente e os valores contratados com a Veigamed. Um assinado por um assessor jurídico da Secretaria de Saúde em 27 de março; e outro feito pela superintendente de Gestão Administrativa do estado, Marcia Regina Geremias Pauli, em 18 de abril.
O primeiro cita uma reportagem de um site de notícias de Santa Catarina que afirma que os valores de respiradores ficaram “cinco vezes mais caros” durante a pandemia. Mas o texto não informa a fonte da informação, e as únicas pessoas entrevistadas são Carlos Moisés, do PSL, governador do estado, e o secretário de saúde, Helton Zeferino. O segundo parecer tem como base uma notícia atribuída a um site mato-grossense que diz que o Mato Grosso do Sul adquiriu respiradores por espantosos R$ 680 mil. Entramos em contato com a Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul, que esclareceu que o valor era referente à compra de oito aparelhos, a R$ 85 mil cada, que acabou cancelada.
Preocupados com a capacidade de atendimento do respirador Shangrila 510S, a Gerência de Desenvolvimento dos Hospitais Públicos de Santa Catarina chegou a solicitar em memorando enviado à Secretaria de Gestão Administrativa, no dia 17 de abril, que uma comissão de médicos intensivistas da Secretaria de Saúde seja consultada “a fim de validar, ou não, as especificações técnicas e a aceitação do item informado”. Era tarde. O parecer da superintendente, Marcia Pauli, do dia seguinte, também reforçava a necessidade de avaliação, mas informa que isso só deveria acontecer no “momento do recebimento das peças”.
Na quarta-feira, 22 de abril, enviamos 14 perguntas sobre os erros encontrados no processo de dispensa de licitação dos respiradores, como a ausência de identificação das empresas candidatas e a falta de análise técnica do modelo substituto ao contratado. A assessoria de imprensa do governo se limitou a responder que o secretário de Saúde, Helton Zeferino, “não conhece Rafael Wekerlin” e que “instaurou um processo administrativo para apurar a compra dos respiradores pulmonares da empresa Veigamed”.
Também conseguimos, enfim, contato com o CEO da Veigamed, Pedro Nascimento Araújo, por um número de celular presente em um ofício assinado pelo diretor de licitações da Secretaria de Saúde e direcionado à empresa no dia 22. O número é atribuído ao médico Fábio Guasti, descrito como representante da Veigamed, mas quem atendeu foi Araújo. Na conversa, ele disse que o médico não representava a empresa e que achava se tratar de “um consultor” do governo, mas que desconhecia sua participação na licitação. Tampouco soube explicar por que foi ele e não o médico que atendeu a ligação.
Questionado sobre o sem fim de irregularidades que parecem acompanhar o seu contrato com o governo de Santa Catarina, Araújo disse que não conhecia muito bem os detalhes da licitação que rendeu possivelmente o maior contrato da história da sua empresa. Informou apenas que a proposta apresentada ao governo foi construída em conjunto com uma trading, que ficará responsável pela liberação das máquinas na Alfândega e pagamentos no exterior, mas não soube dizer sequer o nome da empresa.
Ou seja: o governo comprou um modelo de respirador acima do preço, mas o vendedor trocou o aparelho sem consultar o poder público; os equipamentos só devem chegar com dois meses de atraso; e só então os técnicos da Secretaria de Saúde vão analisar se o respirador é apropriado para tratar pacientes de covid-19. Caso não sejam, todo processo de escolha de comprador e equipamento, que começou em março, estará descartado, e o governo terá que entrar em uma batalha para reaver os R$ 33 milhões pagos antecipadamente. Enquanto isso, equipes de saúde de 48 unidades hospitalares do estado seguem aguardando pelos aparelhos para salvar vidas no combate à covid-19. Até o dia 26 de abril, Santa Catarina já tinha 43 mortos pelo novo coronavírus há 1.337 casos da doença confirmados.
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