Na cobertura dos protestos que tomaram as ruas de várias cidades norte-americanas após o assassinato de George Floyd por um policial branco, ouvi uma jornalista pronunciar esta frase ao vivo narrando a cena de um policial branco detendo um homem negro com truculência:
“A gente supõe que tenha sido alguém, talvez, até querendo bater carteira”.
Dita ao vivo no Jornal da GloboNews de sábado à noite, 30 de maio, a frase fez meu sangue ferver. Eu tremi. Tremi porque é normalizado que uma jornalista branca, loira, de olhos claros, se sinta à vontade para, mesmo diante da falta de informações, conjecturar que um homem negro em meio a um protesto antirracista só podia estar roubando alguém.
As imagens mostradas eram do protesto em Nova York contra a morte de Floyd em Minneapolis, Estados Unidos. Quatro policiais foram demitidos após o homicídio filmado. Derek Chauvin, que ajoelhou sobre o pescoço de Floyd e o asfixiou até a morte, foi preso.
A jornalista Leila Sterenberg narrou a cena, dizendo não ter mais informações sobre o assunto. Mesmo assim, sem saber o que de fato houve, fez comentários racistas na descrição dos fatos: “A gente não sabe por que motivo, se ele estava tentando roubar alguém. A gente não tem os detalhes”. A dedução me enojou.
Em um vídeo gravado em Seattle e mostrado em um telejornal norte-americano, a abordagem se repetiu. Na cena, era possível ver uma pessoa branca saindo de uma loja depredada com as mãos cheias de sacolas. A repórter comentou: “Eu espero que essa pessoa não esteja roubando e que seja uma funcionária.” O que há de diferente entre as abordagens e a deduções da repórter americana e de Sterenberg? A raça.
“Coisa de preto”, agora na CNN
Na CNN, emissora criada para se contrapor a líder no segmento, a GloboNews, acabou seguindo o mesmo caminho da rival. Escalou o jornalista William Waack para comentar os protestos antirracistas nos EUA. O âncora, demitido da Globo em 2017 após ser flagrado fazendo uma piada racista, foi contratado pela CNN. Por óbvio, a internet não perdoou. Para coroar o momento, a legenda da cobertura era: “morte de negro”.
A cobertura da nova emissora é discrepante em relação a da sua matriz norte-americana. O texto inicial no site da CNN Brasil sobre a prisão de um jornalista negro que cobria os protestos em Minneapolis pela CNN americana não mencionou o detalhe da raça, apontado pelos repórteres no local. Josh Campbell, o jornalista branco que fazia cobertura com Omar Jimenez, que foi detido, explicou ao vivo que “o que aconteceu com Omar é claramente diferente”. Josh foi liberado na mesma abordagem na qual Omar foi preso, sob a alegação da polícia de que ele não respeitou ordens de sair do local. A diferença entre eles? A raça.
Horas depois o texto – sem assinatura– foi atualizado, e as menções raciais, incluídas.
Na mesma CNN Brasil, o jornalista Leandro Narloch, autor do “Guia politicamente incorreto da América Latina”, que baseou a série do History Channel de mesmo nome, também foi chamado para debater os protestos. Em 2017, os jornalistas Lira Neto e Laurentino Gomes e a historiadora Lilia Schwarcz reclamaram de falta de ‘transparência’ na produção da série e solicitaram retirada de suas participações da produção que se propôs a revisar a história do Brasil. No livro, Narloch afirma, por exemplo, que Zumbi dos Palmares possuía escravos e que os portugueses ensinaram os índios a preservar as florestas.
Como dar certo? A pergunta é retórica.
Caminho longo, mas inicialmente pavimentado
“Se fosse branco, George Floyd não iria morrer (…) muitas pessoas querem nos matar”, disse o jornalista Thiago Oliveira no jornal Hora 1, da Rede Globo, na semana passada. Ele, que é negro, ainda explicou que matar é um conceito amplo. “Com vocabulário, com escolhas, de uma maneira silenciosa”, explicou ele, que finalizou ser “isso o que dói mais. Aquilo que vimos nos EUA, dói demais e acontece aqui no Brasil”.
As pessoas falam daquilo que vivem pessoalmente ou em seu círculo mais próximo. E isso revela a distância social e racial entre quem vive o racismo e quem o noticia.
Anos atrás nasceu, na GloboSat, o Coletivo Diáspora, um grupo de profissionais negros que discute raça, cobertura jornalística e tudo o que permeia o trabalho de profissionais negros no Grupo Globo. Hoje, eles já são quase 200 pessoas e atuam em outras empresas do grupo. Mas apenas ter mais negros numa empresa não muda o status quo. Se eles não tiverem poder de decisão ou um cargo de gerência, com o mesmo salário, respeito e espaço dado a profissionais brancos, nada muda. Não podem fazer apenas figuração para fotos do setor de marketing.
Na década de 60, o Congresso americano constituiu uma Comissão Consultiva Nacional sobre Distúrbios Civis. Em meio a luta pelos direitos para pessoas negras, o governo queria investigar as causas dos protestos e “prover recomendações para o futuro”. Um dos capítulos do relatório final era sobre imprensa, e as diretrizes para cobertura de assuntos relacionados à raça no país. A comissão era presidida pelo governador de Illinois, Otto Kerner Jr., que à época, disse que “a imprensa há muito se deleita com um mundo branco, olhando para fora dele, se é que existe, com olhos de homens brancos e uma perspectiva branca”. O trabalho norteou mudanças na imprensa por lá, inclusive influenciou as concessões de licença para empresas – mas ainda vemos que não é o suficiente. Caso tenha curiosidade sobre o assunto – e espero que você tenha –, o relatório está na íntegra neste link.
Por aqui, o Estatuto da Igualdade Racial, lançado meio século depois, em 2010, prevê em seu capítulo sobre os meios de comunicação que “na produção de filmes e programas destinados à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas deverá ser adotada a prática de conferir oportunidades de emprego para atores, figurantes e técnicos negros, sendo vedada toda e qualquer discriminação de natureza política, ideológica, étnica ou artística”. Isso pode nos ajudar a reduzir a discrepância de visões nas abordagens jornalísticas – e o racismo.
Mas quero frisar aqui os 50 anos de diferença entre uma publicação e outra. A imprensa dos EUA está meio século na nossa frente nessas recomendações e olhe onde eles estão. Apesar dos avanços, estão muito mal. Onde estaremos daqui a 50 anos? Espero que melhores.
Mas confesso que estou em um momento especialmente pessimista.
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